Por Madalena Duque dos Santos
Entre 2007 e 2015 o estado português celebrou uma série de contratos de concessão para a prospeção, pesquisa, desenvolvimento e exploração de hidrocarbonetos no mar e território português, ao abrigo de legislação desatualizada, cuja revisão só se verificou em 2017. Este período foi igualmente marcado por ambiciosos compromissos climáticos nacionais, europeus e internacionais, que culminaram na promessa do cumprimento da neutralidade carbónica em Portugal em 2050.
Para a controvérsia em torno da atribuição destes contratos de concessão contribuiu o modo obscuro e pouco democrático que caracterizou a tomada destas decisões, em vésperas de eleições, não tendo sido aplicada qualquer metodologia participativa ou consultiva às populações, organizações ou autarquias locais, resultando numa ausência de coordenação e comunicação entre entidades e atores.
Com a proximidade das eleições autárquicas, em junho de 2017, cerca de 90 candidatos de todo o país aderiram à campanha Autarquias Livres de Petróleo. Contribuindo para uma maior transparência das suas agendas políticas, os candidatos opuseram-se publicamente à validade dos contratos de concessão em cerca de 25% dos candidatos em municípios do litoral.
O processo de atribuição de contratos de concessão para exploração de hidrocarbonetos em Portugal foi marcado por uma intensa contestação social e política, em particular na região algarvia, materializando-se em manifestações, debates e processos judiciais, e que rapidamente se alargaram à escala nacional. Desde logo, as associações de ambiente, ONGs e cidadãos uniram-se contra a exploração de combustíveis fósseis na região algarvia, resultando na criação da Plataforma Algarve Livre de Petróleo. O movimento cívico contra a exploração de petróleo e gás em Portugal é um dos exemplos de ativismo ambiental mais expressivos das últimas décadas no país. Tratou-se de um movimento cívico verdadeiramente transversal, unindo atores de diversos setores e com um objetivo comum: a eliminação de cenários de pesquisa e exploração de petróleo em Portugal (autarcas, cidadãos, empresas, sindicatos, escolas, organizações e associações).
No que diz respeito ao lítio, após um ligeiro abrandamento da exploração deste recurso em Portugal, no seguimento da crise dos minérios metálicos na década de 1980 (que resultou na desativação de várias minas no norte do país), verificou-se na década seguinte uma renovada aposta na caracterização tecnológica deste minério em território nacional, no sentido do seu aproveitamento estratégico. No contexto de alterações climáticas, o lítio posiciona-se como um recurso particularmente central para a descarbonização da mobilidade e armazenamento de energia elétrica, contrariamente aos combustíveis fósseis.
Em 2016 o interesse da indústria mineira nacional e internacional nos recursos geológicos portugueses reforçou-se, com a recepção de vários pedidos de atribuição de áreas para a exploração de lítio em Portugal.
Relativamente à articulação entre o poder central e poder local, verificam-se já em fase anterior à abertura do novo concurso para a exploração de lítio em Portugal vários conflitos de interesses entre as duas esferas de poder. São já conhecidas publicamente a oposição de representantes de municípios de Aguiar da Beira, Almeida, Boticas, Caminha, Idanha-a-Nova, Seia, Pinhel, Ponte de Lima, tendo por base preocupações relacionadas com os impactos socioeconómicos da indústria mineira no território, bem como com a preservação do património natural e paisagísticos das regiões centro e norte. Também nas atividades de pesquisa e exploração de lítio se verificou uma forte mobilização da sociedade civil, nomeadamente ONGAs, projetos comunitários, associações de defesa do património e cidadãos. Em fevereiro de 2020, 18 movimentos cívicos e associações endereçaram ao Primeiro-Ministro uma Carta Aberta apelando a uma maior transparência nos procedimentos concursais e à realização de sessões de discussão pública sobre as concessões de lítio em Portugal, revelando ainda descontentamento face à fraca atribuição de poder às autarquias locais, bem como à postura da Direcção Geral de Energia e Geologia e do Ministério do Ambiente e da Ação Climática na retirada do direito de veto municipal.

Muito está por definir sobre a governança territorial associada à exploração de lítio, nomeadamente no que diz respeito à sua conciliação com os interesses, valores e perspetivas das populações locais, mas também sobre a inclusão dos pareceres negativos dos decisores políticos locais das regiões centro e norte.

Apesar de ambos os processos evidenciarem problemas resultantes da desarticulação da vontade do poder local e da tomada de decisão do governo central, entendemos que na gestão e valorização de minerais de lítio este processo de tomada de decisão poderá ter sido mais transparente. Foi divulgada informação relevante à população e às autarquias locais sobre as medidas previstas e sobre as concessões em análise, contrariamente ao que se verificou nos contratos celebrados para a pesquisa e exploração de hidrocarbonetos. No entanto, em ambos os casos, o poder central assumiu uma postura top-down na tomada de decisões com elevado impacto sobre o desenvolvimento e ordenamento do território e a descarbonização da economia, assumindo no caso da exploração de lítio uma postura quase meramente informativa.
Na perspectiva da articulação entre decisores e políticas públicas, entendemos que também os dois processos podem ser quase antagónicos. Enquanto a exploração de petróleo e gás natural em Portugal era claramente conflituante com os acordos internacionais e as políticas nacionais em matéria climática (e.g. RNC 2050, PNEC 2030), a exploração de um recurso como o lítio afigura-se como uma mais-valia na concretização das metas climáticas europeias (e.g. descarbonização do setor energético para a neutralidade do continente europeu em 2050, assumida no Pacto Ecológico Europeu e na Diretiva de Matérias Primas Críticas), mas também de políticas e planos nacionais relevantes em matéria climática e de ordenamento do território (nomeadamente contribuindo para a promoção da mobilidade sustentável e a progressiva descarbonização da economia nacional, ambos objetivos definidos no PNEC; e no PNPOT, onde a valorização deste recurso é entendida enquanto potenciadora do desenvolvimento e economia regionais).
Por último, na dimensão da participação cívica sobre a tomada de decisões do governo central em relação aos hidrocarbonetos e ao lítio, entendemos que em ambos os casos se verificaram graus mais ou menos coordenados de contestação e manifestação dos interesses das populações locais, tendo assumindo dimensões nacionais. Nos dois casos em análise, as motivações para a participação e ativismo dos agentes locais são naturalmente diferenciadas, devido aos contextos sociais, económicos e ambientais diferenciados das regiões em análise, resultando em ideais diferenciados de desenvolvimento regional e governança territorial.
Madalena Duque dos Santos é doutoranda no Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, no ICS-ULisboa. Formada em Relações Internacionais (ISCSP-ULisboa) e Mestre em Estudos do Ambiente e da Sustentabilidade (ISCTE-IUL), desenvolveu a sua tese sobre a “Análise da decisão portuguesa de atribuição de concessões para a pesquisa e prospecção de petróleo na costa algarvia à luz do quadro europeu de combate às alterações climáticas”. Integra desde 2019 a equipa do ICS-ULisboa no projeto ODSlocal – Plataforma Municipal para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Faz parte do júri da Comissão Nacional do ECO XXI da ABAE (Programa Nacional de Avaliação da Sustentabilidade Municipal) e do ECO Freguesias XXI (Programa Nacional de Avaliação da Sustentabilidade nas Freguesias) em representação do ICS-ULisboa.
madalena.duque@ics.ulisboa.pt