Governação Ambiental: O que é que os não-humanos fariam?

Por João Afonso Baptista

A certa altura, Thomas e o departamento onde trabalha foram invadidos por muitas tarefas administrativas. Essas tarefas trouxeram desafios distintos e exigiam muito trabalho. A desorientação, o cansaço e o terror da improdutividade instalaram-se na sua equipa. Thomas e os seus colegas tinham de fazer alguma coisa para resistir a tamanha sobrecarga administrativa. Empregar mais pessoas? Contratar terceiros? Renunciar às suas novas responsabilidades administrativas? Em vez disso, Thomas aproveitou o momento difícil em que vivia para repensar a forma de trabalhar da sua equipa, e decidiu implementar uma nova forma de organização no departamento. Implicaria as mesmas pessoas, mas as atividades e os processos de tomada de decisão iriam mudar radicalmente. Para tal, Thomas adotou e pôs em prática a forma como se governa noutros locais e por outros seres. Ele adotou e pôs em prática a forma de governar das abelhas nas colmeias. Numa palestra que deu em 2011, Thomas D. Seeley revelou qual a questão que passou a surgir com mais frequência no Departamento de Neurobiologia e Comportamento da Universidade Cornell, onde trabalha, sempre que têm de resolver problemas administrativos: “O que é que as abelhas fariam?”

A adoção de formas de organização inspiradas em não-humanos é algo compreensível, no entanto incomum.

O que é comum é a engenharia, a química e a medicina procurarem (e encontrarem) respostas nos não-humanos para questões técnicas aplicadas aos humanos – a área da biomimética. Este é, por exemplo, o caso dos drones. Cada vez mais usados em intervenções militares ou de vigilância, mas também para fotografia, operações de resgate, limpeza de lixo tóxico ou até no auxílio a atividades agrícolas, os drones são robôs voadores criados com base na biologia das abelhas e dos morcegos. Outro exemplo é o velcro. O velcro foi inventado pelo suíço George de Mestral após reparar na forma como o pelo do seu cão detinha materiais exteriores durante as suas caminhadas nos Alpes. Cientistas da NASA inspiraram-se na pele de tubarões para criarem películas de cobertura para barcos velozes. Empresas na área do desporto de aventura copiaram as características biológicas dos pés das lagartixas para desenvolverem luvas de escalada. No Japão, engenheiros de uma companhia ferroviária inspiraram-se no bico dos pássaros guarda-rios para resolverem o problema do ruído produzido pelos comboios de alta velocidade.

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Pássaro guarda-rios e um comboio da rede ferroviária Shinkansen, no Japão. Fonte: Xing (2017)

Podíamos referir muitos e diversos exemplos. E acredito que o/a leitor/a tenha ainda muitos outros exemplos em mente. A ideia desta curta lista é apenas realçar como tem sido útil e sensato aos humanos procurarem soluções técnicas e científicas fora da sua espécie. Mas se assim o é, por que não recorrerem a espécies não-humanas para os ajudarem também a governar melhor?

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Formigas a cooperarem na construção de uma ponte – ou no preenchimento de uma lacuna?
Fonte: Quanta magazine (2018) 

A forma como os humanos governam está cheia de problemas. Pensem, por exemplo, nas políticas ambientais ou, mais especificamente, nas políticas de governação dirigidas ao combate às alterações climáticas. Estas políticas carregam ambiguidades que arruínam os seus resultados práticos. Apesar de surgirem associadas a expressões como “estado de emergência”, “guerra”, “mudança radical de hábitos de vida”, estas políticas não desafiam as causas e motivos que as suscitaram. São ineficazes, e por isso precisam de ser corrigidas, inovadas e revolucionadas: a temperatura global no mundo não para de aumentar, o oceano está a aquecer, o nível das águas do mar continua a subir e as águas do oceano estão cada vez mais ácidas.

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Com sede na Suíça, a MSC é a terceira maior companhia de cruzeiros do mundo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a poluição no ar causa 7 milhões de mortes humanas a cada ano.
Foto: hfr. Fonte: MOPO – Hamburger Morgenpost

Por que não “entregar” (está entre aspas) a governação ambiental a certos não-humanos? Por que não desenvolver políticas ambientais inspiradas na forma como certos não-humanos superaram coletivamente os desafios ecológicos? Talvez, assim, a ineficácia e a ambiguidade que infetam a forma humana de governação ambiental sejam eliminadas. Essas questões não visam promover, por exemplo, o “naturalismo romântico” ou o “conhecimento ecológico”. Muito menos visam promover a adoção direta e acrítica de comportamentos não-humanos pelos humanos. Mais humildes e moderadas, essas questões visam promover a importância de os humanos aprenderem com os não-humanos sobre formas eficientes e adequadas de estar e de agir no mundo (nomeadamente sobre formas de adaptação, resiliência e cooperação).

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Dos organismos mais antigos do mundo, os fungos são seres que alimentam a vida que os alimenta.
Fonte: Meteobox

Escrevo em momentos conturbados, e as palavras que teclo não são imunes à tristeza e angústia do presente. Um vírus está a espalhar-se pelo mundo e a contaminar os humanos. Estamos “em guerra”, disse na semana passada o Presidente da República Portuguesa, enquanto decretava o “estado de emergência” e as respetivas medidas que, nas suas palavras, serão “um desafio enorme para a nossa maneira de viver”. Usou palavras fortes, curiosamente as mesmas palavras que costumam estar presente na retórica política e governamental sobre as alterações climáticas.

Mas hoje, com a disseminação do novo coronavírus, o peso dessas palavras é outro. Têm outro impacto e levam a políticas com impactos imediatos e globais. De repente a diminuição drástica na circulação aérea é possível, a redução do turismo (uma das indústrias mais poluentes no mundo) decresce e os académicos já não fazem viagens transcontinentais para falarem durante 15 minutos para outros académicos. Embora a COVID 19 seja responsável pela morte trágica de mais de 3000 vidas humanas na China, alguns cientistas afirmam que entre 50 000 e 75 000 mortes prematuras humanas foram evitadas simplesmente devido à melhoria da qualidade do ar que as políticas de saúde pública (e, inadvertidamente, ambientais) trouxeram ao país.

Talvez demasiado tocado pelo ambiente de incerteza e impotência global entre os humanos, não consigo deixar de pensar na forma como o novo coronavírus veio revelar o absurdo na governação humana. Foi preciso (mais) um vírus “não-humano” vir morar dentro de nós para que as políticas ambientais, as ideias de “estado de emergência” e de “guerra” e a “mudança radical de hábitos de vida” sejam, finalmente, postas em prática.

A COVID 19 revela que o problema da ineficácia das políticas ambientais estava mesmo dentro de nós. Denuncia o quão infetadas essas políticas estavam pelo autocentrismo e pela arrogância da superioridade da nossa espécie em relação “ao resto”. Mas eis que o novo coronavírus nos vem relembrar, impiedosamente, de algo fundamental: que os humanos não estão nem nunca estiveram sozinhos nos seus corpos, tal como não estão nem nunca estiveram sozinhos no mundo. O grande desafio (ambiental, e não só) que se coloca aos humanos não é o de fazerem políticas para esses “nossos outros”, os não-humanos, mas de aprenderem a contar com os não-humanos para a elaboração e implementação de políticas. Tal como o Thomas promoveu no seu departamento, precisamos de renovar as questões que servem para (des)orientar a governação ambiental. O que é que os não-humanos fariam?


João Afonso Baptista é antropólogo e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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