Autor: João Ferrão
Um estudo recente estimou que cerca de 60% da população europeia e 80% dos residentes dos EUA não conseguem ver a via láctea durante a noite devido ao brilho das luzes das cidades. Este é apenas um indicador de como a crescente urbanização do planeta Terra afeta a nossa relação com a natureza. É certo que esta se encarrega, por vezes, de nos recordar que continuamos dependentes dela: foi o caso da erupção de 2010 do vulcão Eyjafjallajökull, ocorrida na Islândia mas cujas cinzas levadas para leste pelos ventos impediram o tráfego aéreo em diversos países da Europa e atingiram regiões tão longínquas como a Rússia asiática e o Próximo Oriente. Mas estes fenómenos, como os tremores de terra, são pontuais e não raro relativamente previsíveis. É o homem, e não a natureza, quem está a desequilibrar a relação entre ambos. Os vários alertas vermelhos emitidos nos últimos anos em Pequim por excesso de poluição, por vezes acompanhados por ordens de suspensão parcial da circulação automóvel e do funcionamento de empresas e de escolas, são um exemplo desse desequilíbrio que tem vindo a acentuar-se perigosamente.
Área afetada pelas cinzas da erupção de 2010 do vulcão Eyjafjallajökull (Islândia)
Fonte: https://commons.wikimedia.org/ (CC BY-SA 3.0)
Na verdade, as cidades constituem, ao mesmo tempo, os grandes polos de criação de conhecimento, inovação, emprego e riqueza e os principais focos de destruição dos sistemas biofísicos do nosso planeta. De acordo com um documento elaborado no âmbito da preparação da conferência HABITAT III sobre habitação e desenvolvimento urbano sustentável, que se realizará em Quito no próximo mês de outubro de 2016, a população a viver atualmente em cidades ocupa 3% da superfície terrestre, representa 54% da população mundial, emite 60% do total de gases com efeito de estufa, consome 76% dos recursos naturais do planeta e é responsável por 80% da riqueza global. Esses valores tenderão inevitavelmente a aumentar, se levarmos em conta que o serviço de População do DESA/Nações Unidas estima que em 2050 o peso relativo dos habitantes da Terra a viver em aglomerações urbanas será de 66%.
Embed from Getty ImagesAs cidades – ou, de forma mais correta, o capitalismo urbano-industrial – são o berço geográfico da Grande Aceleração que justificou a situação que alguns designam por Antropoceno: uma nova era geológica em que os seres humanos, de forma direta e indireta, se transformaram num poderoso fator condicionante da evolução dos sistemas biofísicos terrestres, com destaque para domínios como as alterações climáticas, as mudanças de uso do solo ou a extinção de espécies naturais. A destruição de recursos naturais finitos e a raiz antropogénica de muitos fenómenos ditos ´naturais`, como inundações, ondas de calor, desassoreamento das praias ou erosão costeira, são indissociáveis dos processos de urbanização e estes, por sua vez, são o reflexo de um modelo económico e social centrado na ideia de crescimento ilimitado e na crença de que a ciência e a tecnologia conseguirão superar os diversos problemas que esse crescimento vai suscitando.
A gravidade da situação reúne atualmente um consenso muito alargado, mesmo a nível político-institucional. Se consultarmos a agenda de desenvolvimento sustentável pós-2015 das Nações Unidas Transformar o nosso mundo: a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável (2015), o documento preparatório da Nova Agenda Urbana que será votado na Conferência HABITAT III sob a designação Declaração de Quito – Cidades para Todos, também das Nações Unidas (2016), a Agenda Urbana para a União Europeia (UE) / Pacto de Amesterdão, aprovada no Conselho Informal de Ministros dos Assuntos Urbanos durante a presidência holandesa da UE (2016), ou a Estratégia Cidades Sustentáveis 2020, adotada pelo governo português (2015), podemos confirmar a existência de uma preocupação recorrente com o desenvolvimento urbano sustentável. A Nova Agenda Urbana a ser aprovada na Conferência HABITAT III defende, mesmo, a necessidade de uma mudança paradigmática na forma como planeamos, desenvolvemos e gerimos as cidades.
Sucede que, num contexto de urbanização planetária, isto é, de processos com incidência e influência que ultrapassam em muito os espaços geográficos fisicamente ocupados pelo que designamos por cidades, debater futuros sustentáveis para as aglomerações urbanas é debater os modelos socioeconómicos e geopolíticos hoje prevalecentes. E, paradoxalmente, quanto mais ambiciosas forem as novas agendas urbanas mais evidente se torna essa inevitável imbricação.
A questão essencial deste novo ciclo de agendas urbanas ambiciosas não é, portanto, a ausência, em cada cidade, de condições políticas, institucionais, culturais e técnicas necessárias para concretizar soluções complexas e exigentes em termos de liderança e de coordenação de ações desenvolvidas por atores com visões, responsabilidades, prioridades e capacidades muito diversas. Naturalmente que a existência dessas condições é crucial. Mas discutir novas agendas urbanas ambiciosas como se elas fossem autonomizáveis de um debate mais amplo sobre a sociedade e a economia que queremos é uma ilusão que apenas tem sentido para quem possui uma visão pós-política do mundo em que vivemos, isto é, para quem defende que a mudança se baseia em soluções técnicas ditas inteligentes, formas de gestão eficientes, sucessivos acordos e consensos internacionais e crescente alinhamento das políticas nacionais com orientações globais.
Preso por ter cão, preso por não ter? Na realidade, as políticas urbanas têm sido alvo de críticas pelo facto de não serem suficientemente ambiciosas e integradas, surgindo demasiado associadas quer a políticas setoriais quer a temas da moda ou prementes, como a competitividade das cidades, as alterações climáticas, as questões de segurança, a inclusão de grupos vulneráveis ou as recentes ´soluções baseadas na natureza`. Mas, como vimos, a adoção de agendas que exigem um novo paradigma de desenvolvimento urbano sustentável implica, inevitavelmente, que as cidades sejam pensadas a longo prazo, não sobretudo a partir de si – ou seja, das suas características, condições e ativos – mas de cenários de futuro considerados desejáveis e exequíveis para as sociedades e as economias, recorrendo a metodologias de backcasting. É verdade que as cidades, pela centralidade que ganharam historicamente, são ao mesmo tempo um produto e uma condição dos modelos de crescimento e desenvolvimento. Mas em períodos de charneira como o que vivemos hoje, com as crises ecológica, económica e social associadas à falência da conceção moderna de progresso e aos efeitos predadores do capitalismo urbano-financeiro, as cidades têm de ser sobretudo encaradas como focos de mudança transformadora e não como palcos privilegiados de reprodução de tendências globais.
Neste contexto, os estudos sobre futuros urbanos, ou sobre o modo como essas realidades complexas que designamos por cidades – construídas quotidianamente por cidadãos, instituições, decisores – nos podem conduzir às sociedades e economias que desejamos, suscitam um debate para o qual o grupo de investigação ´Ambiente, Território e Sociedade`, na sua diversidade de interesses e perspetivas, não deixará de contribuir. A reflexividade crítica é, na verdade, a única forma de evitarmos o indesejável efeito de tenaz exercido pela pressão simultânea da crença na inevitabilidade da realidade presente, por um lado, e do temor da natureza apocalíptica do futuro que dela decorre, por outro.
João Ferrão é investigador coordenador do ICS-ULisboa