Risco Ambiental e Relocalização: O Futuro Incerto de Duas Povoações Costeiras

Por: Michelle Dalla Fontana

Como reagiria se lhe dissessem que precisa de abandonar a sua casa devido a riscos ambientais? Esse é o dilema enfrentado pelos habitantes de Pedrinhas e Cedovém, duas pequenas povoações situadas na costa noroeste de Portugal.

Originalmente formadas como comunidades piscatórias, as duas povoações seguiram trajetórias de desenvolvimento distintas ao longo do final do século XX. Pedrinhas, que mantém os seus edifícios bem conservados, conta atualmente com cerca de 40 habitações sazonais e 7 abrigos de pescadores. Já Cedovém, localizada 300 metros mais a sul, evoluiu para uma área de construção mais densa, tornando-se um centro de pesca ativo. Hoje, abriga aproximadamente 49 habitações, predominantemente segundas residências, embora cerca de 12 famílias ainda vivam ali permanentemente. Além disso, dispõe de 7 restaurantes, 9 abrigos de pescadores, e cerca de 50 anexos.

Ambas as povoações estão localizadas na duna primária, próximo da costa, numa área sujeita a rápida erosão. Essa realidade tem sido uma crescente preocupação para as autoridades responsáveis que enfrentam o desafio de lidar com os riscos associados ao avanço do mar.

A person walking on a beach

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Figura 1: Lado norte de Cedovém, Novembro 2023, Foto do autor.

Em junho de 2023, o município de Esposende submeteu a consulta pública o “Projeto de Regeneração Ambiental e Valorização das Atividades Tradicionais de Pedrinhas e Cedovém”, propondo intervenções destinadas a garantir a gestão sustentável das zonas costeiras e a proteção das populações em risco.

Centrado na sua primeira fase em Cedovém, o projeto prevê a demolição de todas as habitações e infraestruturas. No entanto, a atividade piscatória será mantida, e os restaurantes serão relocalizados para o interior, em estruturas de madeira amovíveis. O projeto ainda inclui alimentação artificial da praia, recuperação das dunas, passadiços de madeira e a renovação da Avenida Marginal.

Contudo, o plano não esclarece o destino das famílias que ainda residem permanentemente em Cedovém. O Presidente da Câmara garantiu, em reuniões com os moradores, que ninguém ficará sem casa e que a autarquia está a adquirir terrenos para a construção de novos apartamentos. Ainda assim, a proposta gerou forte oposição de várias partes interessadas.

A resistência à relocalização planeada não é incomum e, muitas vezes, está enraizada no apego das pessoas ao lugar. No entanto, cada caso apresenta circunstâncias únicas, e compreender esses fatores é fundamental para desenvolver políticas de adaptação às alterações climáticas que sejam justas e eficazes.

Para compreender essa resistência, passei seis semanas em Cedovém, alojado numa das casas previstas para demolição. Observei como a povoação é vivenciada, realizei entrevistas, identificando-me como investigador, e testemunhei os efeitos da erosão costeira, agravados por eventos extremos como as tempestades Bernard e Celine (outubro-novembro de 2023). O que encontrei foi uma interação complexa  de fatores sociais e estruturais, que leva muitas pessoas a recusarem a relocalização, indo além do simples apego ao lugar.

A house on a rocky shore

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Figura 2: Cedovém, Outubro 2023, Foto do autor.

Os habitantes de Pedrinhas e Cedovém percecionam o risco de forma diferente das autoridades. Embora reconheçam algum perigo, muitos — principalmente pessoas idosas — sentem-se seguros, confiantes na sua experiência de viver ali sem registo de incidentes graves. Essa familiaridade pode levá-los a subestimar a ameaça, acreditando que a erosão ocorre de forma lenta e previsível. Dependendo da proximidade das suas casas à linha de costa, alguns não sentem urgência em relocalizar-se ou sequer consideram essa hipótese. Em contraste, a Agência Portuguesa do Ambiente e o município avaliam o risco de forma uniforme em toda a área, considerando nos seus relatórios a possibilidade de eventos extremos capazes de causar devastação súbita. Com base nesse entendimento, defendem a necessidade de medidas radicais. Essa diferença de perspetiva cria tensão entre a experiência da comunidade e o planeamento oficial, influenciando a forma como as pessoas percecionam a relocalização.

Outro fator relevante é a idade avançada de muitos residentes. Embora reconheçam que as condições podem deteriorar-se, não veem isso como uma preocupação imediata, mas sim um desafio para as gerações futuras. Para quem tem um horizonte de vida mais curto, cenários climáticos projetados para 2050 parecem distantes ou irrelevantes. Como consequência, a relocalização preventiva pode ser percebida como desnecessária ou até absurda.

Além disso, muitos entrevistados expressaram um forte sentimento de injustiça, pois veem Pedrinhas e Cedovém desprotegidas, enquanto áreas próximas, como a Praia de Ofir, beneficiaram de medidas de proteção. Situada dois quilómetros a norte de Pedrinhas, Ofir tem moradias residenciais, três torres de apartamentos de quinze andares e um hotel. Embora esteja sobre a duna, numa zona de risco, nem o Programa da Orla Costeira nem o município preveem intervenções de relocalização. Na prática, os custos de compensação necessários para realojar ou compensar os proprietários tornariam essa medida inviável para a administração local. Há também evidências de que os esporões construídos a norte de Pedrinhas e Cedovém agravaram a erosão, interrompendo o fluxo natural de sedimentos e acelerando a degradação costeira. Isso reforça a desconfiança no governo e o sentimento de injustiça. Assim, a relocalização é entendida como uma continuação de injustiças históricas, levantando questões sobre até que ponto os erros do passado devem ser considerados na formulação de políticas de realojamento.

Figura 3: Torres de Ofir, Foto do autor.

O caso de Pedrinhas e Cedovém ensina-nos algumas lições. O desalinhamento entre a perceção de risco da comunidade e a avaliação dos peritos gera tensões. Isso não se resolve apenas com educação e informação, mas exige envolvimento ativo das comunidades no planeamento, garantindo que as suas preocupações sejam integradas. A composição demográfica, especialmente a presença de residentes mais idosos, influencia a resistência à mudança. Modelos de relocalização geracional ou parcial, que permitem uma transição gradual, podem ser uma solução viável, sobretudo em países como Portugal, onde o envelhecimento populacional é um fator relevante. Por fim, a resistência à relocalização intensifica-se em comunidades com histórico de discriminação ou cuja vulnerabilidade resulta não só de fatores ambientais, mas também de políticas falhadas de proteção costeira, urbanização e habitação. Reconhecer essas responsabilidades é fundamental para garantir que as práticas de relocalização sejam justas e equitativas.

Michele Dalla Fontana é investigador pós-doutoral MSCA (Marie Skłodowska-Curie Actions) na Wageningen University. A sua investigação recente foca-se nos processos de retirada planeada e na relação entre mobilidade humana e incêndios florestais em Portugal, contribuindo para a adaptação às alterações climáticas na Europa.

Ativismo pelos animais e redes sociais

Por: Ana Vidal

Nos últimos anos, o ‘animal turn’ despertou um interesse académico crescente pelos animais e pelas suas relações com os humanos, desafiando as hierarquias humano-animal e redefinindo o seu papel na sociedade. Este movimento reflete uma transformação interdisciplinar e multidisciplinar que reforça as metodologias multiespécies e a centralidade da questão animal, impulsionando a proliferação dos estudos humanos-animais e dos estudos críticos animais, contribuindo para lhes dar uma maior visibilidade. Simultaneamente, surgiram plataformas como o Facebook, o Twitter ou o Instagram, que possibilitaram às pessoas alargarem os seus contactos e conectarem-se, mas também dar visibilidade aos animais, através da criação de perfis e partilha de imagens.

Na continuidade do que acontece na vida social, os animais são frequentemente o tema de interesses compartilhados online. É neste contexto que as redes sociais têm desempenhado um papel importante no ativismo pelos direitos dos animais, constituindo ferramentas de divulgação de informação, denúncia, ação política e social e permitindo expor os horrores sofridos pelos animais à mão humana, para fins alimentares, turísticos, de entretenimento ou experimentação. As redes sociais também contam histórias inspiradoras e mostram os animais como indivíduos com valor intrínseco, senciência, estados emocionais e motivacionais. No caso dos santuários, as redes sociais são também indispensáveis para a sua subsistência, uma vez que estes dependem quase exclusivamente das doações dos seguidores e da ajuda dos voluntários.

 As redes sociais são também uma ferramenta de construção de comunidades e de identidade social. Nesse caso, de que forma podem elas conduzir a uma transformação efetiva das práticas sociais, ao expor a realidade dos animais, participando assim na construção de um mundo mais justo para todos os seres vivos? Estas reflexões surgem da minha experiência como ativista do Coimbra Animal Save, capítulo local do Animal Save Portugal e do Animal Save Movement, rede global de ativistas que lutam pela libertação animal.

Faço ativismo na rua, na sala de aula, no meu grupo de amigos e no seio familiar, mas é através das redes sociais que consigo um maior alcance. Através do Facebook e do Instagram, partilho imagens e vídeos de matadouros e de outros contextos de violência sobre os animais, mas também de santuários. Penso muitas vezes na eficácia das minhas partilhas. Que impacto terão nas pessoas que as veem?

Matadouros ou santuários?

Surgem então algumas interrogações: que tipo de conteúdo impacta mais as pessoas? Imagens de matadouros ou de santuários? Violência ou cuidado? Estes binários tendem a ser polarizadores. Imagens de matadouros podem gerar um sentido de urgência para a mudança e a ação, mas também provocar repulsa, afastando aqueles que se sentem atacados. Por outro lado, as imagens de santuários inspiram empatia, mas podem ser percebidas como menos urgentes, dificultando a procura de soluções.

Mia de Carvalho, uma das responsáveis e gestora das redes sociais do Coimbra Animal Save, do Animal Save Portugal e do Save & Care – Santuário Animal, partilhou comigo a sua opinião sobre estas questões. Da sua experiência, as imagens positivas, que mostram animais livres para expressar os seus comportamentos naturais e viver sem exploração e crueldade, têm um maior alcance, mais interações e partilhas. A opção por imagens negativas, que mostram animais em sofrimento, abuso ou exploração, pode resultar num menor alcance e, por vezes, na perda de seguidores. No entanto, imagens de violência extrema, embora impactantes, tendem a ter um maior alcance do que aquelas que mostram menor violência.

Vejamos, por exemplo, o caso comovente da porca Rosinha. A Rosinha foi salva de uma vida de negligência, fome e doença pelo Noel e pela Alice. Agora vive com dignidade e cuidado no Save & Care – Santuário Animal. Este caso foi acompanhado por muitas centenas de pessoas que se comoveram com a história da Rosinha e acompanharam a sua recuperação através das redes sociais.

Rosinha; Fonte: Imagem publicada no Instagram do Save & Care – Santuário Animal a 22 de julho de 2024

Ativismo pelos animais e redes sociais à luz do que dizem os estudos

Estudos que se debruçaram sobre estas questões evidenciam que, de forma geral, as pessoas preferem histórias felizes, com a positividade a exercer um impacto maior do que a negatividade no valor de partilha de uma notícia, especialmente no Facebook. Não obstante, outro estudo examinou em que medida o uso de imagens de violência explícita sobre os animais pode ser eficaz no combate ao especismo, isto é, à discriminação daqueles que não pertencem a uma determinada espécie. Para isso, foram analisadas estratégias de comunicação visual, centradas no uso estratégico do choque moral. Concluiu-se que o ativismo pela libertação animal pode beneficiar com esta abordagem.

Por outro lado, um estudo sobre expressões do veganismo no Facebook analisou o léxico usado nas publicações desta rede social, tendo encontrado palavras como “abate” e “assassinato” ao lado de termos compassivos como “cuidar” e “salvar”, sugerindo a coexistência de estratégias para atrair públicos variados, combinando choque e empatia para estimular a ação e o envolvimento dos utilizadores.

Um outro estudo analisou as reações dos consumidores de carne ao ativismo pelos animais, através das redes sociais. Estes consumidores veem este tipo de ativismo como “slacktivism”, isto é, “ativismo de sofá”, considerando as publicações pouco credíveis e os ativistas pessoas ignorantes. O estudo concluiu que é improvável que a informação gerada através das redes sociais mude as perceções dos consumidores de carne, pelo menos na forma como está a ser transmitida. Embora as redes sociais tenham ampliado a comunicação sobre questões relacionadas com a causa animal, o modo como a mensagem é percebida por pessoas que não se sensibilizam com a causa permanece inalterado. Para os autores do estudo, a atual estratégia de comunicação das organizações ativistas nas redes sociais pode não ser eficaz para aqueles que comem carne, e até reforçar a perceção de falta de valores comuns entre consumidores e não consumidores de carne.

Embora os ativistas pelos animais possam gerar grandes quantidades de tráfego online, isso não significa necessariamente sucesso em termos de mudança da opinião do público. Loy questiona de que forma os defensores dos animais podem fazer-se ouvir no cenário dos novos meios de comunicação, em constante mudança, e como podem as suas mensagens efetivamente penetrar nos debates públicos. Defende que os ativistas pelos animais devem adotar narrativas persuasivas, explorar o impacto emocional das redes sociais e associar a causa animal a questões mais amplas, como a justiça social. Estratégias como a colaboração com influenciadores, o uso de imagens impactantes e a adaptação da mensagem ao público-alvo são essenciais para garantir não só visibilidade, mas também mudanças reais na perceção e comportamento da sociedade.

Ativismo digital pelos animais: que futuro?

Numa abordagem de estudos críticos dos animais, torna-se evidente o papel ambíguo que as redes sociais podem desempenhar. Se por um lado possibilitam a ampliação do debate e a visibilização das injustiças, por outro operam dentro de dinâmicas que podem enfraquecer o potencial emancipador destas narrativas. O tipo de conteúdo mais eficaz na mobilização e sensibilização do público continua a ser uma questão em aberto: têm maior impacto imagens de matadouros, que expõem a violência e a crueldade, ou imagens de santuários, que transmitem cuidado e empatia?

Apesar destas ambiguidades, as redes sociais têm um enorme potencial para apoiar a causa animal e fortalecer o trabalho dos ativistas pelos direitos dos animais. No entanto, é essencial que estas plataformas sejam usadas de forma estratégica, com conteúdos que combinem emoções e informação. Ao partilhar histórias, imagens e vídeos que gerem empatia e promovam diálogos construtivos, é possível sensibilizar um público mais amplo, transformando a perceção pública e inspirando ações concretas em prol de um mundo mais justo para todas as espécies.

Ana Vidal, Professora do 1.º CEB, é aluna do curso de pós-graduação Animais e Sociedade do ICS-ULisboa, coordenado por Verónica Policarpo. Este texto foi produzido no âmbito do módulo Animais, Representações e Narrativas, sob a coordenação de Jussara Rowland.

O Fim das Centrais a Carvão em Portugal: o bom, o mau e o que há a aprender

Por: Ricardo Moreira

O conceito de Transição Justa é considerado um princípio fundamental nas transformações para uma economia de baixo carbono. A ideia, que surgiu nos movimentos sindicais americanos nos anos 70 do século passado, busca garantir que trabalhadores e comunidades  não sejam deixados para trás à medida que indústrias com elevadas emissões de carbono passam pelo processo de phase-out. No entanto, como constatei no caso das centrais a carvão em Portugal, a realidade é muito mais complexa. O encerramento das centrais termoelétricas de Sines e Pego, em 2021, representou um momento significativo na transição energética do país, mas será que houve justiça nessas transições? Com base em entrevistas de campo e na análise de documentos oficiais, investiguei as implicações sociais, económicas e políticas dos encerramentos das termoelétricas para evidenciar os desafios de política pública e os problemas que os trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram e enfrentam.

Portugal tentou descarbonizar rápido o que era mais simples

Em alinhamento com o Pacto Ecológico Europeu e o Acordo de Paris, o país definiu o fim do carvão na sua matriz energética, anunciando o encerramento da central de Sines até 2023 e da central do Pego até 2021. No entanto, este calendário foi adiantado e no meio da crise da Covid-19 ambas as centrais encerraram. As decisões de encerramento foram diferentes, mas resultaram na maior redução de emissões de gases com efeito de estufa da história de Portugal, servindo para demonstrar o compromisso do país com os objetivos climáticos. Mas, enquanto os decisores políticos e ambientalistas celebravam este marco, centenas de trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram um futuro incerto.  

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Figura 1: Central termoelétrica a carvão de Sines, encerrada em 2021, Foto do autor

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Figura 2: Central termoelétrica a carvão do Pego, encerrada em 2021, Foto do autor

Quem decidiu e quem foi afetado

Uma Transição Justa é, acima de tudo, uma questão de governação—como as decisões são tomadas, quem é incluído e como os custos e benefícios são distribuídos. No caso de Sines e Pego, os encerramentos foram marcados por uma abordagem de cima para baixo, com diferentes atores “em cima” e a mesma classe de pessoas “em baixo”. Sines terá fechado porque a empresa de energia decidiu encerrar muito antes do previsto devido ao custo dos impostos verdes que o governo passou a implementar. Já a Central do Pego encerrou porque o governo não renovou a licença de produção de energia. Seja como for, as decisões-chave do governo foram tomadas sem consulta aos trabalhadores, sindicatos ou mesmo municípios. 

Para os responsáveis governamentais e os decisores europeus, o encerramento das centrais a carvão era um passo necessário na transição energética de Portugal. As autoridades enquadraram a mudança como uma transformação económica, uma “oportunidade”, em que as indústrias devem adaptar-se, os trabalhadores devem requalificar-se e as regiões devem reinventar-se. O Mecanismo de Transição Justa Europeu teria 60 milhões de euros para apoiar as regiões afetadas em Portugal, mas os atrasos no acesso a estes fundos deixaram muitos trabalhadores e comunidades sem apoio imediato. O discurso oficial enfatizava o otimismo em relação à liderança de Portugal na descarbonização, mas pouco reconhecia os impactos socioeconómicos imediatos: “ninguém fica para trás” – dizia o governo.

Presidentes de câmara e líderes sindicais têm outra versão. Embora reconheçam a necessidade de políticas de ação climática, criticaram a forma abrupta como os encerramentos ocorreram e a falta de um plano estruturado de transição. As economias locais que dependiam direta ou indiretamente das receitas do carvão sofreram um declínio acentuado. Em Abrantes, a central do Pego era o maior empregador e o seu encerramento criou o que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”—um período de estagnação económica sem alternativas de emprego imediatas.  

Os líderes sindicais entrevistados sublinharam que os trabalhadores mais vulneráveis, especialmente os precários subcontratados, foram os mais prejudicados pela transição. Muitos destes precários foram dispensados sem apoio, apesar do seu papel essencial nas operações das centrais. Na central de Sines os trabalhadores diretos foram realocados para outras funções ou para a reforma. No entanto, os subcontratados não tiveram as mesmas garantias, o que gerou um sentimento generalizado de desilusão com o processo.

As empresas energéticas posicionaram-se como facilitadoras da transição. Salientaram a importância das condições de mercado e da agenda europeia de descarbonização na definição das suas decisões. Embora em Sines a empresa tenha promovido programas de requalificação e recolocação para os seus trabalhadores, essas iniciativas não abrangeram todas as pessoas. No Pego, uma nova empresa de energias renováveis assumiu o ponto de injeção na rede elétrica, comprometendo-se a contratar antigos trabalhadores da central a carvão—mas, até ao momento, apenas uma pequena parte foi reempregada, refletindo os atrasos mais amplos nos projetos de investimento.  

O “Vale da Morte” da Transição

Um dos aspetos mais marcantes da eliminação do carvão em Portugal é o surgimento do que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”. Este termo refere-se ao período entre o encerramento das centrais e a materialização dos novos empregos verdes. O Mecanismo de Transição Justa foi concebido para colmatar esta lacuna, mas a sua implementação foi lenta e desigual. Muitos trabalhadores, a quem foram prometidos programas de requalificação, encontraram-se num limbo, à espera de investimentos que ainda não se concretizaram.  

Em Sines, o governo confiou em investimentos privados projetados—particularmente em hidrogénio verde e centros de dados—para absorver os trabalhadores deslocados. No entanto, estes projetos ainda estão em fase embrionária, deixando muitos trabalhadores subcontratados no desemprego. No Pego, face ao atraso dos apoios europeus, o governo criou um apoio ad hoc para garantir os salários para trabalhadores em formação.

Que lições do fim do carvão?

O caso português sublinha a necessidade de planeamento e governança das políticas de transição. Embora a ação climática seja essencial, a forma como as transições são geridas determina se exacerbam ou mitigam as desigualdades sociais. 

Sines e Pego fazem-nos reter três ideias:  

A governança da Transição Justa deve ser formalizada

A ausência de um quadro formal de governação excluiu trabalhadores, sindicatos, municípios e comunidades do processo de decisão. Seria importante criar um Comité de Transição Justa no âmbito do Conselho Económico e Social, para permitir um debate tripartido. Este comité deveria acompanhar os planos regionais de transição, garantindo que as comunidades afetadas tenham voz nas políticas climáticas.  

Só o planeamento evita o “Vale da Morte”

A lacuna entre o encerramento das centrais a carvão e a criação de novos empregos pode deixar muitos trabalhadores em situações precárias. As políticas climáticas devem incluir cronogramas para a requalificação, vias garantidas de emprego e acesso à proteção social. 

Os sistemas de Segurança Social têm de ter em conta a ação climática  

Os mecanismos existentes da Segurança Social não foram concebidos para acomodar mudanças industriais de grande escala, mas é lhes exigido que respondam a várias alterações no modo de trabalhar, desde a Inteligência Artificial à ação climática. Os trabalhadores enfrentaram perdas significativas de rendimento, com opções limitadas de apoio financeiro. No caso das políticas climáticas, é necessário equacionar a realocação de impostos verdes para o financiamento da segurança social, tornando-os resilientes e adequados para uma transição para uma economia de baixo carbono.

E então, foi justo?

À luz dos padrões estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a Transição Justa, o fim do carvão em Portugal não cumpriu os princípios de uma transição justa. Embora se tenham alcançado os objetivos ambientais, a falta de diálogo social, as alternativas económicas tardias e a proteção insuficiente dos trabalhadores ilustram os desafios na implementação das políticas de ação climática.

À medida que Portugal prossegue o seu caminho para a neutralidade carbónica, o caso de Sines e Pego pode servir de alerta. Estes casos destacam a necessidade de abordagens políticas integradas que priorizem tanto a sustentabilidade ambiental como a equidade social. 

Ricardo Moreira é doutorando do Programa de Doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. moreiraricardo@edu.ulisboa.pt

Incêndios, Sensacionalismo e Invisibilidade: como os media ignoram as causas estruturais de Pedrógão Grande

Por: João Carlos Sousa

O incêndio de Pedrógão Grande, ocorrido em junho de 2017, foi um dos mais devastadores da história recente de Portugal, resultando na morte de 66 pessoas e na destruição de milhares de hectares de floresta. A tragédia capturou a atenção dos media portugueses durante duas semanas, com uma cobertura intensa que acompanhou o desenvolvimento da crise, os esforços de combate ao fogo e as consequências humanas e materiais. No entanto, um aspeto crucial ficou à margem do debate mediático: as causas estruturais dos incêndios florestais, como as alterações climáticas (AC) e a desertificação do interior rural português.

A Cobertura Jornalística: Emoção e Sensacionalismo

A análise de 427 notícias, publicada no artigo “Anatomia de uma Catástrofe Mediática: Pedrógão Grande e a política da invisibilidade,” revelou que a cobertura mediática seguiu um padrão trifásico. Nos primeiros dias, houve um foco intenso na descrição do desastre em si: imagens dramáticas, relatos de testemunhas e declarações de autoridades. Nos dias seguintes, a narrativa mediática deslocou-se para a identificação das vítimas e as consequências humanas, privilegiando um tom emocional e sensacionalista. Por fim, na última fase da cobertura, a atenção voltou-se para as responsabilidades políticas e jurídicas, deixando para trás qualquer aprofundamento sobre os fatores ambientais e sociais subjacentes à tragédia.

Figura 1 – Judite Sousa a realizar direto junto do corpo de uma das vítimas; Fonte: Captura de imagem do direto ocorrido no Jornal Nacional da TVI de 18 junho 2017

Este padrão de cobertura reflete um modelo de jornalismo de crise que prioriza o impacto imediato e a dramatização dos eventos, em detrimento da exploração das suas causas profundas. Como apontam estudos internacionais (cf. Houston et al, 2012; Crow et al, 2016; Lock et al., 2024), os media tendem a focar-se no que é visível e imediato, deixando de lado explicações estruturais que exigem mais contexto e análise especializada. Esta abordagem contribui para a superficialidade do debate público (Pantti e Wahl-Jorgensen, 2007) e limita a capacidade da sociedade de enfrentar desafios ambientais de longo prazo.

O Silêncio sobre as Alterações Climáticas e o Despovoamento Rural

Um dos aspetos mais preocupantes da cobertura mediática de Pedrógão Grande foi a ausência de uma discussão sobre as alterações climáticas (AC) e o despovoamento do interior rural português. Apesar do crescente reconhecimento científico de que os incêndios florestais estão a tornar-se mais frequentes e severos devido às AC, esta ligação raramente foi mencionada nas reportagens analisadas. Concomitantemente, a desertificação do interior e o abandono das práticas agrícolas tradicionais, que contribuem para o aumento da biomassa combustível, foram ignorados na narrativa mediática.

Os incêndios florestais não são apenas fenómenos naturais, mas também consequências de decisões políticas e económicas. O abandono do interior, a falta de gestão florestal e a crescente intensificação de eventos climáticos extremos criam condições ideais para a propagação de grandes incêndios. No entanto, ao concentrar-se quase exclusivamente nas consequências imediatas, a cobertura mediática negligenciou a necessidade de debater políticas públicas de prevenção e mitigação dos riscos associados aos incêndios.

Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. Estudos sobre a cobertura de desastres naturais noutras latitudes demonstram que os media frequentemente falham em contextualizar os eventos dentro de processos mais amplos, optando por um enquadramento que privilegia o imediato e o emocional. No caso português, esta abordagem reforça uma cultura de invisibilidade das questões ambientais e territoriais, dificultando a implementação de políticas eficazes para mitigar futuros incêndios. Sem uma compreensão pública abrangente dos fatores que contribuem para os incêndios, as transformações estruturais necessárias ficam relegadas para segundo plano.

Figura 2 – Carros carbonizados apanhados pelo incêndio; Fonte: Imagem divulgada pela edição da Revista Sábado de 24 maio de 2021

Outro fator importante é o impacto económico da falta de cobertura aprofundada. O turismo e a agricultura, setores essenciais para o interior do país, sofrem diretamente com a devastação dos incêndios. A ausência de um debate mais alargado sobre políticas de reflorestação sustentável, incentivo à agricultura regenerativa e reocupação do interior rural contribui para a perpetuação de um ciclo de abandono e degradação ambiental. Sem uma abordagem mais estruturada nos media, a tomada de decisões políticas fica à mercê da pressão mediática de curto prazo, sem respostas efetivas para problemas sistémicos.

O Papel dos Media na Transformação do Debate Público

A cobertura jornalística de crises como a de Pedrógão Grande tem implicações significativas na forma como o público e os decisores políticos percebem os riscos ambientais. Se os media não abordam as causas estruturais dos incêndios florestais, torna-se mais difícil gerar um debate informado e impulsionar as mudanças políticas necessárias. O papel dos jornalistas vai além de reportar factos: é também sua responsabilidade contextualizar os acontecimentos e contribuir para uma compreensão mais aprofundada dos problemas socioambientais.

Algumas iniciativas jornalísticas internacionais têm demonstrado que é possível abordar desastres naturais de maneira mais abrangente. Projetos de jornalismo de dados, por exemplo, têm explorado a relação entre incêndios ou inundações e AC, utilizando mapas interativos e análises estatísticas para ilustrar padrões e tendências. Um bom exemplo inclui as investigações do projeto “Boomtown, Burntown” da ProPublica. Estas iniciativas demonstram que uma abordagem mais aprofundada e baseada em dados pode ajudar a compreender melhor os incêndios e a tomar medidas eficazes para preveni-los.

Neste sentido, os media podem e devem desempenhar um papel educativo, informando a população sobre práticas de prevenção e adaptação às novas realidades climáticas. A comunicação de risco e a sensibilização para medidas de mitigação são fundamentais para reduzir o impacto dos incêndios. Jornalistas especializados em ambiente e ciência poderiam acrescentar valor à cobertura destes eventos, proporcionando uma análise mais informada e com menor pendor sensacionalista.

Outro aspecto relevante é o papel das redes sociais digitais na disseminação de informação. Embora os media tradicionais sejam fundamentais para a construção da agenda mediática, as redes sociais ampliam e moldam a forma como a informação circula e é percecionada pelo público. A rápida disseminação de imagens e vídeos pode reforçar a narrativa emocional e sensacionalista, mas também oferece oportunidades para um jornalismo mais colaborativo e investigativo. Projetos de fact-checking e análises aprofundadas podem contribuir para uma melhor compreensão dos fenómenos e incentivar o envolvimento cívico na mitigação dos riscos ambientais.

A tragédia de Pedrógão Grande expôs não apenas a vulnerabilidade do território português aos incêndios florestais, mas também as limitações da cobertura mediática em momentos de crise. Ao ignorar as causas estruturais do problema, os media contribuíram para a sua invisibilidade no debate público. Para que situações como esta não se repitam, é fundamental que o jornalismo adote uma abordagem mais crítica e contextualizada, ajudando a sociedade a compreender os desafios ambientais e sociais que enfrentamos. Com efeito, informar não é apenas relatar o que aconteceu, mas também explicar por que aconteceu e como podemos evitar que se volte a repetir.

A longo prazo, uma cobertura mediática mais informada pode incentivar alterações nas políticas ambientais e promover uma maior responsabilização dos governos e das empresas na gestão dos recursos naturais. Sem uma transformação na forma como os incêndios florestais são abordados pelos media, o risco de repetir tragédias como a de Pedrógão Grande continuará elevado. O jornalismo tem o poder de moldar narrativas e influenciar políticas públicas, e é crucial que esse poder seja utilizado de maneira responsável e construtiva. Só com agentes mediáticos comprometidos com a verdade e a informação objetiva poderemos evitar que a próxima tragédia se torne apenas mais uma manchete efémera.

João Carlos Sousa é doutorado em Ciências da Comunicação pelo Iscte-IUL com uma tese com o título “Sócrates e os “outros”: contributos para a compreensão do efeito mediático na confiança institucional” com bolsa individual da FCT (SFRH/BD/136605/2018). É licenciado em Sociologia (2009) e Mestre em Sociologia: exclusões e políticas sociais (2013) pela Universidade da Beira Interior. Foi bolseiro de investigação do projeto (A Matriz das) Atitudes Populistas e Negacionistas face à Ciência PTDC/CPO-CPO/4361/2021 no ICS-ULisboa. Joao.Carlos.Sousa@iscte-iul.pt

Urbanização em solo rústico e a crise da habitação: uma falsa associação

Por: Simone Tulumello

No dia 30 de dezembro de 2024, enquanto Portugal recuperava da ressaca de Natal e se preparava para celebrar o ano novo, o governo de direita presidido por Luís Montenegro publicou o Decreto-Lei n.º 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio). A alteração mais relevante diz respeito ao artigo 72 deste último, relativo à reclassificação para solo urbano – nomeadamente, a transformação de solos “rústicos” em solos urbanizáveis sem alteração do plano de ordenamento municipal. Trata-se, por definição do Regime Jurídico, de uma operação “excecional”: em sentido legal, pois constitui uma exceção legal ao processo regular de classificação dos solos nos planos municipais; e no sentido literal, por ter de ser implementada em situações verdadeiramente excecionais de urgente necessidade de solos não disponíveis de outra forma.

Sem mudar a letra da lei na referência à excecionalidade, o DL 117/2024 simplifica o procedimento e cria um “regime especial de reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional”. Como explica a retórica do preâmbulo ao DL, trata-se de tornar a reclassificação dos solos rústicos num pilar da estratégia de incremento da oferta habitacional.

Fig. 1: Fotografia do Alto da Eira em 2013 (pelo autor)

Trata-se, ao mesmo tempo, de um retrocesso de várias décadas na gestão do território, escancarando a porta à expansão descontrolada das áreas urbanizadas e à especulação – a simples alteração de um solo de rústico para urbano multiplica o valor do mesmo, até antes de se ter construído qualquer coisa. Foram, de facto, muitíssimas as reações de pessoas e entidades com competência sobre o tema – veja-se, por exemplo, a Carta Aberta da Rede H – Rede Nacional de Estudos de Habitação, que recolheu centenas de subscrições e contribuiu para que o DL fosse levado à Assembleia da República onde, contudo, não se esperam alterações estruturais. A carta aberta clarifica a falácia de um dos principais álibis usados pelos defensores do DL: «não existe falta generalizada de solos urbanos nos perímetros urbanos», isto é, se o problema fosse a necessidade de construir mais casas, não estaria a sua causa na falta de solos urbanizáveis.

Ainda que ninguém possa negar que em Portugal o preço da habitação se tornou incomportável para os rendimentos da maioria (praticamente a  totalidade) de quem trabalha e vive no país, será que precisamos mesmo de construir mais casas? Mais construção é a resposta que, desde sempre, oferece a direita – e, fundamentalmente, também o Partido Socialista, que tinha já avançado com estímulos à construção e uma simplificação da reclassificação dos solos rústicos, mas só para promoção pública de habitação acessível. Este DL complementa o anterior pacote do governo de direita, denominado, de forma explícita, Construir Portugal. Para os pensadores de direita, não há dúvidas. Veja-se, por exemplo, o que diz José Mendes:

se não fosse um assunto sério, daria vontade de rir. É por demais evidente que existe em Portugal um problema de escassez na oferta de habitação, sobretudo no que se refere ao segmento suportável pela classe média, chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer.

Será mesmo para rir? O argumento que é normalmente utilizado – igualmente mencionado no preâmbulo do DL 117/2024 – é o da redução, nas últimas duas décadas, das novas construções. O que esse argumento não diz, contudo, é que menos construção não significou “menos casas”. Nas últimas duas décadas, o rácio de casas disponíveis para núcleos domésticos existentes não diminuiu. Se se construiu menos, sim: porque a construção das décadas anteriores colmatou as carências quantitativas que vinham da época do Estado Novo e porque a população parou de crescer. Dizer, neste contexto, que construir menos causou uma ausência de habitações seria como dizer que não comer depois de saciados causa fome.

E saciados estamos à vontade. Há em Portugal dois milhões de habitações não usadas para residência: mais de um milhão de residências secundárias, sazonais ou usadas como apartamentos turísticos (isto é, retiradas do mercado da habitação) e mais de 700 mil devolutas. E, contra o que muitos pensam, os devolutos não se colocam em contextos de escassa pressão urbanística: há 50 mil só na cidade de Lisboa.

Neste contexto, construir mais ajudaria a baixar os preços? A resposta é simples: não. Como demonstrado pelos estudos de habitação baseados em décadas de evidências científicas – aqui a síntese do argumento por Josh Ryan-Collins –, não é o encontro entre procura e oferta que empurra os preços da habitação, mas a disponibilidade de liquidez. Antes da crise, foi o crédito a baixo custo (estimulado pelo Estado) a aumentar os preços enquanto se construía muito mais do que se procurava. Agora, é a liquidez de investidores, financeiros e não só, muitos dos quais internacionais, que inflaciona os preços: repare-se que o incremento das taxas de juro da conjuntura pós-pandémica fez reduzir a procura mas não parou o crescimento dos preços – como demonstrado no estudo de dois economistas do Banco de Portugal que, contudo, acabam na falácia de defender a resolução do problema com… mais construção!

Dir-se-ia que o que serve é construir habitação a preços baixos – «chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer», frisava Mendes acima. Chamemos como quisermos: mas e a substância? O DL 117/2024 condiciona a reclassificação a que «700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, ou a habitação de valor moderado». Só que esta última é definida como aquela em que «o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125 % do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225 % do valor da mediana nacional». Os últimos dados do INE disponíveis colocam a mediana do preço de venda nacional a 1,736€/mq, colocando o limite superior nas cidades de maior pressão nos 3,906€/mq: uma moderação evidentemente incomportável para quem aufere rendimentos em Portugal, feita à custa da expansão incontrolada do solo urbanizado.

A conclusão é simples: fomentar a construção fora dos planos de ordenamento do território só serve para fomentar a especulação. Paremos de usar a crise de habitação como álibi. Há, hoje em dia, só uma forma de tornar a habitação acessível para quem vive em Portugal:  regular o mercado, a partir do controle de rendas – tema que não poderei, contudo, desenvolver aqui.

Simone Tulumello é investigador auxiliar em geografia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Interessa-se pelas dimensões globais da urbanização, com foco em temas como habitação, violência urbana e imaginários urbanos. simone.tulumello@ics.ulisboa.pt

B-WaterSmart: contributos para uma maior resiliência hídrica na Europa

Por: Carla Gomes

Durante muito tempo considerado um problema dos países do Sul, as secas prolongadas  dos últimos anos já lançaram o alerta sobre o risco de escassez de água no resto da Europa. A eficiência hídrica tornou-se uma prioridade, levando ao lançamento de programas de financiamento comunitário para uma “gestão inteligente” da água, em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Neste âmbito, o Horizon 2020 lançou a call CE-SC5-04-2019 – Building a water-smart economy and society, em que foram aprovados os cinco projetos do consórcio CIRSEAU. O primeiro a ser concluído, em Agosto de 2024, foi o B-WaterSmart, uma Research and Innovation Action em que o ICS-ULisboa coordenou a área de Sociedade, Governança e Políticas.

O B-WaterSmart envolveu seis cidades e regiões da Europa, constituídas em “Living Labs” (“Laboratórios Vivos”): Alicante (Espanha), Bodø (Noruega), Flandres (Bélgica), Lisboa (Portugal), Veneza (Itália) e Frísia Oriental (Alemanha). O consórcio foi coordenado pelo IWW Water Centre da Alemanha e envolveu 35 entidades, entre elas instituições de investigação, municípios, entidades gestoras de água e parceiros tecnológicos.

O “Laboratório Vivo” de Lisboa, coordenado pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), acaba de ser distinguido nos PT Global Water Awards 2024, na categoria de Investigação, Desenvolvimento e Inovação. O galardão foi anunciado na 19.ª Expo Conferência da Água. No LL de Lisboa, o ICS assumiu o papel de moderador da Comunidade de Prática, plataforma de envolvimento de atores-chave, que terá continuidade através do novo Water-Oriented Living Lab (WoLL) de Lisboa.

O LL Lisboa desenvolveu um conjunto de soluções, incluindo ferramentas de apoio à decisão e à avaliação de risco da agua para reutilização, bem como certificados inovadores para edifícios (que incluem eficiência hídrica e energética) e um observatório para o ciclo urbano da água. O projeto contribuiu, assim, para uma economia circular da água e para a adaptação às alterações climáticas. O LL Lisboa contou ainda com a participação da Lisboa E-Nova, da ADENE (Agência para a Energia), das Águas do Tejo Atlântico e da Baseform. 

Crise hídrica requer “abordagem holística”

As alterações climáticas vêm perturbar o ciclo da água, tornando mais desafiante geri-lo ao longo do ano. Por um lado, as secas prolongadas e a redução da precipitação anual têm vindo a agravar o risco de escassez (figura 1). Mas, por outro lado, as cheias catastróficas que têm assolado vários países, como foi recentemente o caso de Valência, em Espanha, vêm alertar para a necessidade de gerir melhor as águas pluviais, criando sistemas de armazenamento que ajudem a prevenir as cheias e a ter água disponível durante o ano. As crescentes pressões sobre os recursos hídricos requerem uma abordagem integrada, que nos últimos anos se tem vindo a assumir sob o conceito de resiliência hídrica. Não está apenas em causa a segurança do abastecimento, como também a manutenção da qualidade da água disponível e a saúde dos ecossistemas. 

O uso de pesticidas, que o Pacto Ecológico previa cortar para metade até 2030, tem sido um grande foco de conflito, tendo contribuído para os protestos de agricultores em Março de 2024. No entanto, o problema da poluição da água causada por pesticidas é grave e as metas previstas na Diretiva Quadro da Água estão longe de estar alcançadas, nem em 2015, como inicialmente previsto, nem no prazo alargado de 2027. Apenas 37%  das águas superficiais da Europa têm um estado ecológico considerado ‘bom’ ou ‘elevado’, sublinha o relatório sobre o estado da água da Agência Europeia do Ambiente.

Perante sucessivos anos secos, o racionamento de água imposto em pleno inverno tornou-se uma realidade em vários países, incluindo Portugal, Espanha e Itália. No Algarve (Janeiro de 2024) rapidamente geraram protestos do setor agrícola, o mais penalizado pelos cortes. Prevê-se que o acesso à água potável esteja comprometido em 35% da área do continente europeu até 2070, pelo que urge garantir a proteção dos grupos sociais mais vulneráveis.

Figura 1 – De acordo com o Observatório Europeu da Seca, mais de 17% do território UE-27 + Reino Unido estava em nível de ‘aviso’ de seca em Dezembro de 2024. Fonte: https://drought.emergency.copernicus.eu/

Este sentido de urgência deu já origem a uma Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE), apresentada em Setembro de 2024, que reclama um plano de ação estratégico e holístico para a água na UE. Uma Estratégia para a Resiliência Hídrica, bem como um novo Ato para Economia Circular, estão entre as prioridades da Comissão Europeia no mandato 2024-2029.

No último Eurobarómetro relativo às “Atitudes dos Europeus sobre o Ambiente” (2024), 78% dos inquiridos apoiam medidas adicionais para enfrentar os problemas de gestão de água na Europa. Quando questionados sobre o papel de cada setor socioeconómico na melhoria da eficiência hídrica, a indústria, o sector elétrico e o turismo são apontados como aqueles que têm feito um menor esforço nesse sentido (figura 2).

A chart of water consumption

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Figura 2 – Perguntas sobre água no Eurobarómetro “Atitudes dos Cidadãos Europeus em Relação ao Ambiente” (Maio 2024). Fonte: https://europa.eu/eurobarometer/surveys/detail/3173 (Creative Commons Attribution 4.0 International licence)

Nos inquéritos realizados pelo B-WaterSmart (figura 3), a disponibilidade de dados e a monitorização dos consumos revelou-se a principal prioridade para uma melhor governança da água, seguida da integração entre as políticas setoriais, em particular no nexus água-energia. O financiamento é outra preocupação central, tendo em conta que abordagens eficientes, tais como a reutilização, requerem investimentos avultados em infra-estruturas e sistemas de tratamento.

Figura 3 – Inquérito a stakeholders, B-WaterSmart (N = 60) – Q: Regarding water governance in your region, which of these areas you think need to be improved to ensure the adoption of water-smart solutions, if any?

As soluções desenvolvidas pelo B-WaterSmart, bem como as recomendações de política, pretendem contribuir para uma melhor resiliência hídrica, podendo ser replicadas em outras regiões com desafios semelhantes, na Europa e mais além. Os resultados do B-WaterSmart estão disponíveis nos relatórios publicados ao longo destes quatro anos,  incluindo a análise dos modelos de governança em cada país, com recomendações específicas para uma governança adaptativa, bem como uma análise das principais barreiras e fatores impulsionadores para a aceitação social das soluções de gestão inteligente, abrangendo aspetos económicos, sociais e políticos. 

Carla Gomes é investigadora nas áreas da justiça ambiental e adaptação climática. Colaborou com o ICS-ULisboa em diversos projetos interdisciplinares, mais recentemente no B-WaterSmart – Acelerando a gestão inteligente da água nas regiões costeiras da Europa (Horizon 2020, Grant Agreement N.º 869171), onde liderou o work package Society, Governance, Policy.

50 Anos de Abril: questões ambientais, sociais e territoriais

Por: Mónica Truninger

Este é o meu último post como coordenadora do GI SHIFT. Ao longo destes cinco anos, tive o privilégio de organizar as atividades do GI, contando, numa primeira fase, com a colaboração da Olivia Bina e do João Graça, e, numa segunda e última fase, do João Mourato e João Guerra. De forma a celebrar a atividade deste grupo enérgico, dinâmico e especialista em questões ambientais, sociais e territoriais, aproveito este momento  para realçar neste texto uma obra coletiva do SHIFT, que esteve em preparação ao longo de 2024 e que está prestes a chegar às livrarias. Trata-se da obra 50 Anos de Abril: Questões Ambientais, Sociais e Territoriais, da Imprensa de Ciências Sociais. Esta obra reúne um conjunto de capítulos escritos por vários investigadores do SHIFT, refletindo o trabalho desenvolvido pelo grupo enquadrado no contexto das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Este marco histórico marcou a transição para a democracia em Portugal e a libertação de um regime autoritário. A Revolução dos Cravos e, a seguir a Constituição de 1976, permitiu a emergência de um novo regime democrático baseado nos princípios de liberdade, igualdade e justiça, consagrando direitos fundamentais, incluindo o direito ao ambiente e à qualidade de vida. Desde então, o país tem vivido transformações profundas em diversas áreas, mas também tem enfrentado desafios significativos, em particular nas últimas décadas, nomeadamente em relação ao ambiente, sociedade e território. 

Passadas cinco décadas, considerámos pertinente fazer uma análise crítica e reflexiva das principais transformações resultantes da instauração e consolidação da democracia: quais as expectativas cumpridas, quais as mudanças realizadas, mas também quais as promessas que ficaram por cumprir e até os retrocessos que acabaram por ocorrer. O foco dessa análise recaiu sobre as temáticas do grupo de investigação SHIFT: Ambiente, Território e Sociedade, em particular sobre as dinâmicas subjacentes aos desafios socioecológicos e territoriais da sociedade portuguesa, enquadrada não só na escala europeia, mas também na escala global. Será que o espírito de Abril se cumpriu, consolidando a transição para uma sociedade mais justa, resiliente e sustentável? E, tomando a Constituição como mote, será que foram construídos territórios mais ‘justos’ e ambientes mais ‘livres’ de diversas formas de poluição? E que capital de participação cidadã foi sendo acumulado ao longo destes 50 anos? Qual tem sido o contributo das organizações formais e informais de cidadãos para a construção de um país mais coeso, participativo e ‘fraterno’, em matéria de ambiente e território?

Tendo como mote os valores e os princípios que o 25 de abril de 1974 trouxe, e que a Constituição de 1976 consagrou, os contributos dos membros do grupo de investigação SHIFT, incluindo investigadores integrados e doutorandos, foram enquadrados por dois eixos de análise. Por um lado, os textos apresentam uma breve contextualização e trajetória históricas da temática em apreço nos últimos 50 anos, salientando os principais marcos e pontos de viragem. Por outro lado, os autores questionam até que ponto esta trajetória foi cumprida ou descontinuada, afastando-se até do espírito de Abril e fragilizando, assim, a própria democracia. 

A cover of a book

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Figura 1 – Capa do livro 50 Anos de Abril – Questões ambientais, sociais e territoriais (ICS, no prelo). 

O livro está dividido em três partes: questões ambientais, questões sociais e questões territoriais, com capítulos interligados que refletem sobre as conquistas e os desafios dos últimos 50 anos. A primeira parte, dedicada às questões ambientais, inicia-se com o capítulo de João Guerra, Luísa Schmidt e David Travassos, intitulado “Áreas Protegidas – trajetórias da conservação da natureza em Portugal”. Os autores analisam os avanços e retrocessos na política de conservação, destacando a falta de recursos para gestão e fiscalização. No capítulo seguinte, “Energia solar descentralizada: 50 anos de políticas públicas”, Sofia Ribeiro analisa os desafios energéticos em Portugal, desde a eletrificação do território após a Revolução até à promoção das energias renováveis nas últimas décadas. Complementando essa análise, Vera Ferreira, em “A energia comunitária em construção – um caso de democracia em Portugal?”, explora o papel das comunidades de energia renovável como ferramentas de participação democrática e transição energética. Por fim, Joana Sá Couto, no capítulo “A tua política é o trabalho […] O teu único jogo deve ser a pesca: o trabalho na pesca desde o Estado Novo à emergência climática”, reflete sobre as crises do setor piscatório, conectando-as às escolhas políticas e ao impacto das mudanças climáticas.

A segunda parte do livro foca-se nas questões sociais. Ricardo Moreira, em “O Estado Social que a Constituição abriu e as sementes do Estado Ambiental que ainda esconde”, discute como a Revolução impulsionou o Estado Social em Portugal, destacando os avanços em direitos sociais e as limitações na integração de políticas ambientais. Simone Tulumello e Luisa Rossini, no capítulo “A paz, o pão, …, saúde educação: a habitação, a grande ausência do Estado social democrático”, analisam as políticas habitacionais desde 1974, enfatizando as tensões entre as promessas da Revolução e os problemas habitacionais que persistem atualmente. Ana Delicado e Jussara Rowland, em “50 anos de construção de uma democracia participativa em matérias ambientais”, exploram a evolução da participação cidadã em questões ambientais, desde mobilizações espontâneas até a institucionalização de audiências públicas e o papel das ONG de ambiente. Por sua vez, Roberto Falanga, José Ribeiro e João Moniz, no capítulo “Cidadania e participação nos últimos 50 anos em Portugal: a consolidação democrática entre urnas e ruas”, examinam práticas emergentes de diálogo entre cidadãos e instituições, como o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) e os orçamentos participativos.

Na terceira parte, dedicada às questões territoriais, João Mourato, Inês Gusman e André Pereira, em “50 anos de (in)definição regional: convergências e conflitos de governança territorial em Portugal”, analisam a complexidade da governança regional, destacando os paradoxos e conflitos na organização territorial após o 25 de Abril. Kaya Schwemmlein, no capítulo “Variadas crises do sistema agrícola alentejano”, reflete sobre a evolução dos sistemas agrícolas no Alentejo, abordando questões relacionadas com o uso da terra, posse e sustentabilidade. Encerrando o volume, Rosário Oliveira, em “Alimentar as cidades de modo sustentável e saudável é preciso: das hortas urbanas ao sistema alimentar metropolitano”, descreve a transformação das hortas urbanas espontâneas em sistemas alimentares metropolitanos, propondo estratégias para o planeamento alimentar que sejam simultaneamente sustentáveis e saudáveis.

Esta obra apresenta, assim, um cenário misto, composto por avanços e desafios. Se, por um lado, foram alcançados progressos significativos em setores como a educação, a saúde, a segurança social, o abastecimento de água e o saneamento, a legislação sobre ambiente e natureza, o desenvolvimento da rede viária, a democratização das instituições e o aumento da participação cívica; por outro lado, persistem muitas questões por resolver. Entre estas, destacam-se-se as desigualdades sociais e socioterritoriais, os avanços e recuos nos debates sobre a regionalização, o difícil acesso à habitação, a gestão ineficiente da conservação da natureza, as limitações na adoção das energias renováveis, a crise no setor das pescas e os efeitos nocivos da agricultura intensiva para o ambiente e para a saúde humana. Todos estes desafios representam obstáculos à implementação de transições justas, especialmente face aos impactos crescentes das alterações climáticas no nosso país. 

Numa época marcada pelas comemorações dos 50 anos da Revolução, o livro do GI SHIFT oferece, assim, uma reflexão crítica sobre os avanços e retrocessos das últimas cinco décadas, propondo caminhos para uma sociedade mais justa, sustentável e democrática, em consonância com os ideais do 25 de Abril. 

Figura 2,3,4: Desfile comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 (Avenida da Liberdade, Lisboa, Portugal a 25 de Abril de 2024)Fonte: figuras 3 e 4 fotos de Luisa Rossini; figura 2 RitaFMatos (https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:25_de_Abril_de_2024_08.jpg).

Mónica Truninger é socióloga e coordenadora (em final de mandato) do SHIFT: Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. monica.truninger@ics.ulisboa.pt

Envelhecimento em Portugal: desafios habitacionais em casas frias e sobredimensionadas

Por: Alda Botelho Azevedo

A população portuguesa nunca foi tão envelhecida. Segundo os Censos 2021 do Instituto Nacional de Estatística (INE), 23,4% da população tem 65 e mais anos. São 182 seniores por cada 100 jovens. Diferem entre si em muitas características, entre essas, nas condições habitacionais.  A diversidade de condições e desafios habitacionais marca a experiência de viver e envelhecer em Portugal. 

A maioria das pessoas com 65 e mais anos vive em casa própria (78%). Todavia, cerca de 22% reside em habitação arrendada, de acordo com os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) entre 2015 e 2019. Nos adultos entre os 18 e os 64 anos, essa proporção sobe para 26%. A prevalência do arrendamento também varia com o grau de urbanização, sendo mais comum em áreas densamente povoadas e intermédias, onde chega aos 30%.

Pode conjeturar-se que os mais velhos tiveram mais tempo e oportunidades para se tornarem proprietários, seja através de poupanças, heranças, ou do crédito bancário, amplamente incentivado até 2002 por sucessivos governos via juros bonificados. É, por isso, bastante plausível que aqueles que não possuem casa própria aos 65 anos dificilmente o virão a conseguir.

A situação dos arrendatários com 65 e mais anos é diferente da dos mais jovens, sobretudo daqueles que estão no início da vida ativa. Para os mais velhos, o congelamento das rendas, sustentado ao longo dos anos por prorrogações e, mais recentemente, transformado em definitivo, foi um fator decisivo. Já os jovens em início da vida adulta têm compromissos habitacionais frequentemente considerados menos permanentes, como arrendamento ou partilha de habitação, muitas vezes devido à incerteza laboral e económica.

Portugal transformou-se num país de proprietários – talvez por falta de outras opções –, mas ter casa não garante, por si só, condições habitacionais dignas. Um trabalho anterior sobre desigualdades sociais mostra que os arrendatários enfrentam uma situação ainda mais desfavorável do que os proprietários: têm custos de habitação mais altos, estão mais frequentemente sobrecarregados com despesas, em condições de sobrelotação e de privação severa das condições de habitação.

Um dos indicadores mais ilustrativos das condições habitacionais, e um dos habitualmente utilizados para medir a pobreza energética, é a proporção da população com incapacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida. Entre 2015 e 2019, essa dificuldade afetou 18% dos proprietários e 34% dos arrendatários, de acordo com os dados do ICOR. Por faixa etária, mais de uma em cada quatro pessoas com 65 e mais anos relatou não ter recursos para aquecer a casa adequadamente (26%), uma proporção superior à observada entre os 18 e 64 anos (20%). As diferenças são pequenas entre áreas densamente e pouco povoadas. Este quadro resulta da conjugação de vários fatores: baixos rendimentos, custos de energia elevados, falta de isolamento térmico, despesas de habitação elevadas e dificuldade em aceder a programas de apoio que funcionam por reembolso. Como o nome do indicador sugere, é uma questão essencialmente financeira. No entanto, há outros fatores que também contribuem para este problema. Sendo menos debatidos, merecem ser aqui considerados.

Os Censos 2021 revelam uma realidade preocupante. Por um lado, a maioria das casas usadas como residência habitual em Portugal não possui sistemas de aquecimento ou conta apenas com aparelhos móveis, elétricos ou a gás, pouco eficientes tanto no consumo de energia quanto na capacidade de aquecer o ambiente. Esta situação é mais frequente nas regiões com clima mais ameno, como as regiões autónomas, a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve. Mesmo nas áreas mais frias, como o Norte, menos de metade dos lares têm aquecimento central, lareiras abertas, recuperadores de calor ou outros equipamentos fixos.

Figura 1. Alojamentos familiares clássicos de residência habitual (%), por tipo de aquecimento utilizado com maior frequência, NUTS II. Fonte: Censos 2021, INE.

Por outro lado, viver numa casa com mais divisões do que o necessário representa custos adicionais de aquecimento. Os Censos 2021 revelam que Portugal tem uma taxa de sublotação da habitação muito elevada nos alojamentos utilizados como residência habitual (64%). As regiões do Centro e do Alentejo apresentam valores ainda mais altos (73% e 69%, respetivamente). Mesmo nas áreas com maior pressão no mercado imobiliário, as taxas de sublotação continuam extremamente altas: Região Autónoma da Madeira (49%), Área Metropolitana de Lisboa e Algarve (ambas com 57%).

Se adotarmos uma definição menos restritiva de sublotação do que a utilizada a nível europeu — considerando que ter uma divisão a mais possa não configurar sublotação, especialmente à luz da importância do espaço interior evidenciada na pandemia de Covid-19 —, a taxa de sublotação em Portugal ainda seria de 35%. Ou seja, mais de três em cada dez casas têm pelo menos duas divisões a mais do que seria necessário, tendo em conta a composição do agregado familiar.

Figura 2. Alojamentos familiares clássicos de residência habitual, por índice de lotação, NUTS II. Fonte: Censos 2021, INE.

É sabido que a sublotação é mais elevada em casas onde residem pessoas idosas, refletindo um desajuste comum em países com baixa mobilidade residencial: enquanto a dimensão familiar muda ao longo do tempo, a tipologia da habitação permanece fixa. A ideia de “uma casa para toda a vida” está profundamente enraizada nos padrões residenciais em Portugal, mas isso traz diversos desafios, incluindo um esforço financeiro adicional para aquecer adequadamente a casa. A literatura científica aponta para uma relação entre o excesso de mortalidade no inverno e a exposição prolongada a baixas temperaturas internas, sendo a idade um dos principais fatores de risco. Perante isto, estes dados são, no mínimo, preocupantes. 

Portugal, como muitos outros países, enfrenta desafios decorrentes de tendências demográficas de longo prazo, em particular o envelhecimento da população. Esta realidade é o resultado de dinâmicas bem conhecidas: o aumento gradual da esperança de vida, décadas de baixa natalidade e períodos prolongados de saldos migratórios negativos. Este processo só deverá desacelerar na década de 2040, quando as gerações nascidas a partir dos anos 1980, menores em número, atingirem a senioridade. Nesse momento, segundo as projeções oficiais, o grande desafio deixará de ser o envelhecimento e passará a ser o declínio demográfico.

Não basta, porém, viver mais. É fundamental viver melhor, e isso passa por melhorar as condições habitacionais. As casas precisam de ser mais adaptadas às necessidades de uma população envelhecida, garantindo conforto térmico, acessibilidade e segurança. Investir na requalificação dos espaços habitacionais, com melhores isolamentos e sistemas de aquecimento eficientes, não só promove uma vida mais digna para todos, mas também é um passo essencial para responder aos desafios de uma população cada vez mais envelhecida.

A autora agradece o apuramento de dados do ICOR 2015-2019 facultado pelo INE (PED-421796786) no âmbito do Grupo de Trabalho sobre Indicadores das Desigualdades Sociais.

Uma versão deste texto foi publicada na edição n.º 17 (Nov-Dec 2024) da IntelCities, Revista das Cidades Inteligentes.

Alda Botelho Azevedo é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (ICS), onde coordena o doutoramento em Population Sciences da Universidade de Lisboa, e professora auxiliar convidada no ISCSP. A sua investigação centra-se sobretudo nas áreas da demografia da habitação e do envelhecimento da população. alda.azevedo@ics.ulisboa.pt 

Emerging Urban Imaginaries and libertarian utopianism: The Case of Prospera in Honduras

Por: Lara Caldas

Imagine a city with completely privatized governance and rules. An environment where a single company unilaterally provides every urban and livability service in exchange for a subscription fee while preserving free market policies. This libertarian utopia became a reality in Honduras, indicating that emerging radical urban imaginations might not align with democracy’s ideals.

A drawing of a ship in the water

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Figure 1. Photo-collage by the author, using images from: https://www.goodfon.com/city/wallpaper-zaha-hadid-s-innovation-tower-zdaniia-arkhitektura-rastiteln.html and https://www.needpix.com/photo/609300/roatan-honduras-landscape-seascape-caribbean-travel-nature (both licensed as Creative Commons)

The initial idea of a private citadel traces back to Paul Romer, a renowned economist and once the World Bank’s vice president. In the early 2000s, Romer suggested that Charter Cities (CC) could serve as a developmental solution for the Global South. The colonial regime of Hong Kong inspired him to imagine exceptional territories operating under separate, improved rules than those of a “mainland.” These new cities would have their own normative apparatus – a charter –, making them partially independent of the country in which they are located. 

The goal of a CC is to establish a special economic zone with urban dimensions. Experts would design a charter to favor foreign investment and promote economic development, covering labor laws, environmental and urban planning regulations, special tax regimes, and even the justice system. The latter is crucial, as Romer believes that countries in the Global South are socially prone to having bad rules and failing to enforce contracts. Moreover, Romer proposes suspending political-democratic rights, such as direct elections. Since experts predetermine every decision, popular participation is deemed unnecessary. Hence, Romer suggested that residents should “vote with their feet,” leaving the city if the regime proves unsatisfactory, something akin to switching banks.

The obvious consequence is reducing political rights to consumer rights. However, CCs can appeal to the political class by addressing real social demands like safety, employment, and economic growth – though through an elitist framework with a homogeneous idea of development. Against accusations of neocolonialism, Romer argues that their legitimacy lies in their exceptional nature. The proposal is not to occupy entire countries nor to create these territories by force (although Romer presents a very insufficient notion of force, one that ignores countries’ power disparities and the capacity of market actors to meddle with politics). These zones are portrayed as innovation sandboxes, small special areas for investment and governance experimentation.

In 2009, shortly after the coup d’état, Juan Orlando Hernández, President of the National Congress of Honduras, and Porfirio Lobo, then-President, invited Paul Romer to lead a Charter City project. In February 2011, the Honduran Congress passed a constitutional amendment to enable Charter Cities in Honduras, initially called Regiones Especiales de Desarrollo (REDs). In July, the governance statute for REDs was approved. According to this document, REDs were designed as special zones with broad administrative, fiscal, legal, and regulatory autonomy, provided with a transparency commission appointed and overseen by the President. In 2012, the Honduran government entered into an agreement with MGK Group (a company associated with Michael Strong, a well-known libertarian activist) to develop the first RED. This agreement was made without Romer’s knowledge or the involvement of the transparency commission, leading to Romer’s abandonment of the project.

In October, the Honduran Supreme Court declared the REDs unconstitutional, stating that the law violated Honduras’ territorial integrity, sovereignty, and independence. Shortly after, in December, Congress removed four Supreme Court judges who had voted against the REDs. The President of Congress then appointed replacements aligned with the government’s plan, a move criticized as illegal by commentators. Less than a month later, amid fierce opposition from Indigenous islander communities and without consultation or social participation, a new constitutional amendment was approved, establishing the Zonas de Empleo y Desarrollo Económico (ZEDEs).

Figure 2: The Garifuna people protesting the RED project in Tegucigalpa, 2012. Photo by: Honduras Delegation, on flickr.

Prospera is the first ZEDE in Honduras, established in 2017 by the company Prospera LLC, based in Delaware, a well-known tax haven in the United States. Its main investor was NeWay Capital, a financial group based in Washington, DC. This company is linked to the Tipolis Inc. group, led by Titus Gebel, a German economist and founder of the non-profit organization Free Private Cities. Gabel is also the author of a homonymous book that promotes private cities as a solution for those dissatisfied with the rules of nation-states. The project attracted entrepreneurs associated with neoliberal and libertarian activists, including the then-president of the Hayek Institute and prominent figures from the cryptocurrency sector. The ZEDE was implemented on indigenous lands without prior consultation (despite legal prerogatives) and faced widespread opposition.

Figure 3: Prospera is located on the island of Roatan, Honduras. (Google maps with author’s edition).

Prospera embodies many of Romer’s ideals. The new city is an autonomous zone, both financially and administratively, managed by a non-elected council. It has its own governance and justice systems, operating under rules distinct from the national legal framework. Prospera’s court functions through an app developed by an investor and advisory board member of the same company that manages the ZEDE.

Legal experts say that constitutional protections have been weakened, including guarantees of free speech, protections against forced labor, safeguards against discrimination based on gender and race, and even the right to Habeas Corpus. Land ownership rights are among the most undermined, as the regulatory decree stipulates that no precautionary measure shall be implemented to prevent or delay land expropriation. While compensation for expropriations is required, it is only provided in cases where formal ownership titles exist, something that many traditional indigenous populations lack. Luxury condominiums designed by international “starchitect” Zaha Hadid are replacing traditional fishing communities. Prospera is a new city, but more importantly, it is a normative innovation, semiautonomous from Honduras and oriented towards the interests of a transnational class of investors.Prospera falls under the Honduras-United States bilateral agreement (CAFTA-DR), which protects U.S.-origin investments. Therefore, although Honduras elected the socialist Xiomara Castro in 2022, who managed to repeal the ZEDE law, the national government cannot unilaterally terminate the agreement with NeWay Capital without facing indemnity proceedings. Additionally, ZEDEs have vested rights under the Honduran Constitution. Even with the repeal of the legislation, all concessions will remain in effect for at least 10 years. While this process is lengthy and cumbersome, Prospera remains a concrete example of corporations’ power in the South and their capacity to shape urban futures according to their interests.

Lara Caldas is a postdoc fellow in Political Science at the University of Brasilia. She is a researcher at Observatório das Metrópoles and a member of the research group Geopolitics and Urbanization. Her research interests lie in the intersection of urbanization and democracy. Contact: lara.cfsilveira@gmail.com

Reflections from Lyon: Methodological, Ethical, and Political Challenges in Social Movement Research

By: Luisa Rossini

On the 1st and 2nd of July 2024, ahead of the 30th International Conference of Europeanists at the École normale supérieure (ENS) de Lyon, France, the Council’s Research Network on Social Movements hosted a pre-conference event that gathered 19 participants from 11 countries. As co-chair of this network, alongside the other organizers, I was thrilled to see how the event fostered meaningful discussions on the methodological, ethical, and political challenges social movement scholars face today. These challenges are especially pressing given that many scholars in this field are also activists or militants, navigating the complexities that such dual roles entail. Social movement research has grown into a vital space for examining social and political conflict, evolving from theoretical debates to practical approaches that shape our understanding of mobilization.

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