Imaginar Cidades – notas sobre o “East Side” de Lisboa

Por: Marco Allegra

Será que é a imaginação que cria a sociedade e o ambiente onde vivemos? Será que uma cidade é feita de ideias e até de fantasias, misturadas com aço, vidro e cimento? Será que todos nós (do Presidente da República ao cidadão comum) somos também sonhadores de cidades?

Sobre este tema foi publicada recentemente uma mesa redonda na revista Mediapolis, coordenada por dois colegas do ICS, Lavínia Pereira e João Felipe P. Brito – um agradecimento especial à Anna Viola Sborgi pelo convite inicial.

Esta mesa redonda resulta da reflexão que surgiu no grupo de leitura do Urban Transitions Hub que, durante o ano passado, debateu a noção de “social imaginary” através da obra de autores como, Cornelius Castoriadis, Benedict Anderson, Yuval Harari, Frederic Jameson, Ruth Levitas e Sheila Jasanoff, entre outros, – aqui uma introdução mais estruturada ao tema, a lista das leituras completa encontra-se no final do post.

Figura 1. Autoria: Francesca Renzi, 2022.

Em termos gerais, todos estes autores sublinham como a imaginação coletiva é uma componente fundamental de qualquer realidade social – e de todas as nossas práticas quotidianas. Castoriadis diz que:

[e]verything that is presented to us in the social-historical world is inextricably tied to the symbolic. Not that it is limited to this. Real acts, whether individual or collective ones – work, consumption, war, love, child-bearing – the innumerable material products without which no society could live even an instant, are not (not always, not directly) symbols. All of these, however, would be impossible outside of a symbolic network (The Imaginary Institution of Society, MIT Press 1975)

Simplificando, o poder do imaginário social é o poder de criar uma ficção partilhada, algo que existe só porque muitas pessoas acreditam nela, mas cuja existência produz consequências reais. A moeda, o estado, a nação: todas (e muitas outras) são instituições e tecnologias sociais que funcionam porque acreditamos que elas existem – Harari chama-lhes “realidades intersubjetivas”.

A moeda de 1€ que temos na mão existe como realidade objectiva (peso, diâmetro, composição química, etc.), mas o facto de ela ser “dinheiro” é uma realidade intersubjetiva – tem a ver, duma forma literal, com o facto de todos acreditarmos nisso: no dia em que todos pararmos de acreditar que o euro existe, a moeda volta à sua mais tranquila existência objectiva de pedaço de metal.

Segundo Harari, a imaginação é o traço fundamental da “revolução cognitiva” que marca a nossa existência como espécie:

How did Homo Sapiens manage [to organize in large communities], eventually founding cities comprising tens of thousands of inhabitants and empires ruling hundreds of millions? The secret was probably the appearance of fiction. Large numbers of strangers can cooperate successfully by believing in common myths (Sapiens: A Brief History of Humankind, Harper Books 2015)

Harari refere-se às cidades como produto fundamental desta tecnologia social; não é por acaso, creio eu, que o teórico do direito à cidade, o filósofo francês Henry Lefebvre, incluiu na sua análise da produção do espaço a ideia de conceived space (oposto ao lived space e ao perceived space) – o espaço simbólico, imaginado de forma abstrata que, por exemplo, Lefebvre associa à prática dos urbanistas e dos arquitetos.

Figura 2. Autoria: Francesca Renzi, 2022.

A mesa redonda tentou colocar estas reflexões teóricas no contexto da trajetória que a cidade de Lisboa percorreu nos últimos dez ou quinze anos – e, especificamente, com referência às transformações ocorridas no chamado “East Side” de Lisboa.

Durante este tempo, Lisboa transformou-se muito rapidamente: mudou o seu paradigma económico, investindo no turismo e na economia criativa; mudou no seu aspeto físico, devido a inúmeras operações de regeneração/revitalização/requalificação/renovação implementadas por atores públicos e privados, grandes e pequenos; mudou a sua demografia, atraindo milhares de novos residentes e de city users das mais variadas naturezas; enfim, mudou o seu status, passando, de cidade relativamente periférica e desconhecida, a novo centro cosmopolita europeu e global.

Esta mudança – não poderia ter sido de outra forma – foi acompanhada de uma transformação dos imaginários que moldam a cidade; uma transformação que foi também parte de um projeto explícito de urban branding, através do qual Lisboa e arredores foram vendidos como “nova Berlim” e “nova Silicon Valley”.

O “East Side” de Lisboa (a área que, diz Simone Tulumello, “from Mouraria, goes north following Avenida Almirante Reis, including the areas of Anjos and Arroios, and then turns east to encompass Penha de França, the southern edge of Olaias, Chelas and Marvila, to end up, on the river, in Braço de Prata”) representa uma zona importante nesta trajetória – muito da “nova Lisboa” situa-se aí, e muitos dos investimentos feitos para mudar a imagem da cidade concentraram-se nessa área. Voltando ao urban branding, não surpreenderá o leitor saber que em 2019 o “East Side” de Lisboa incluía, segundo a revista Time Out, “o bairro mais cool do planeta”.

Dentro deste quadro, os participantes trouxeram à mesa redonda temas e sítios diferentes: Simone Tulumello ofereceu uma reflexão (duas, de facto) sobre multiculturalismo, racialização e cosmopolitismo a partir do bairro da Mouraria; com base na experiência do projeto ROCK, Roberto Falanga e Mafalda Corrêa Nunes apresentaram a história de negociação e conflitos na produção de espaço através de práticas de regeneração urbana baseadas na cultural heritage do bairro de Marvila; Andrea Pavoni, visitando sítios como Marvila e Martim Moniz, refletiu sobre a presença contemporânea e contraditória de imaginários diferentes, entre relíquias do passado e visões de futuros possíveis; o meu próprio contributo (aqui e aqui) examinou o poder criador dos nomes no bairro de Arroios, entre urban branding e vida de bairro, gentrificação e movimentos urbanos.

Figura 3. Autoria: Francesca Renzi, 2022.

Em conjunto, os contributos desta mesa redonda apontam para o poder dos imaginários urbanos – um poder que vimos em ação na rápida e estonteante transformação de Lisboa. Além disso, mostram como muitos imaginários existem simultaneamente, diferentes mas sobrepostos e misturados uns com os outros – uns mais reais, outros mais espectrais ou utópicos.

É talvez esta a principal conclusão que surge desta mesa redonda, se quisermos ir além dum registo empírico das tendências e das mecânicas de transformação urbana. Por um lado, o poder de imaginar cidades é real e, por isso, tem consequências nas nossas vidas individuais e coletivas – afinal descobrimos, por exemplo, que na “nova Berlim” dos “bairros mais cool do mundo” (bem como na sua área metropolitana) as rendas são inacessíveis para dois terços dos agregados familiares. Por outro lado, cada imaginário muda, ao longo do tempo e em relação dialética com todos os outros: até os imaginários hegemónicos não criam uma tabula rasa;haverá sempre uma galáxia de cidades contrárias, subterrâneas, latentes – cada uma com um diferente grau de realidade, mas sempre fundada no poder da imaginação coletiva.

A lista de leituras do Reading Group do Urban Transitions Hub (Series: Urban Imaginaries, 2021-2022)

Anderson, B. 2006 [1983].  Imagined communities: Reflections on the origin and spread of nationalism. Verso Books. [pp. 1-9]

Castoriadis, C. 1997[1975]. The imaginary institution of society. Mit Press [pp. 115-146].

Datta, A. 2019. Postcolonial urban futures: Imagining and governing India’s smart urban age. Environment and Planning D: Society and Space, 37(3), 393-410.

Harari, Y. 2015. Sapiens: A Brief History of Humankind, Harper Books. [chapter 2]

Jasanoff, S., & Kim, S. H. 2015. Introduction. In (eds) S. Jasanoff, Sheila, S.H. Kim, Dreamscapes of modernity: Sociotechnical imaginaries and the fabrication of power. University of Chicago Press, [pp. 1-33].

Levitas, R. 1990. Educated hope: Ernst Bloch on abstract and concrete utopia. Utopian Studies, 1(2), 13-26.

Sites, W. 2012. “We Travel the Spaceways”: Urban Utopianism and the Imagined Spaces of Black Experimental Music. Urban Geography, 33(4), 566-592.

Wilson, J., & Bayón, M. 2016. Black hole capitalism: Utopian dimensions of planetary urbanization. City 20(3), 350-367.

Toscano, A. (2018). The Mirror of Circulation: Allan Sekula and the Logistical Image. Society and Space.

Toscano, A., & Kinkle, J. (2015). Cartographies of the Absolute. John Hunt Publishing. [pp. 11-18]

Zamalin, A. 2019. Utopia and Black American Thought. In Black Utopia: the history of an idea from black nationalism to Afrofuturism. Columbia University Press. [pp. 1-18]


Marco Allegra (Laurea, International relations, University of Torino; MA Near and Middle Eastern Studies, SOAS – University of London; PhD Political Science, University of Torino) is a Principal Investigator at ICS-ULisboa, where he chairs the Urban Transition Hub. His area of expertise includes Middle East politics, planning theory and urban studies; his current research activity focuses on local housing policy and housing movements.

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