Pobreza Energética em Portugal: uma proposta metodológica para a sua avaliação e monitorização

Por João Pedro Gouveia

Nos anos 1970, na sequência da crise energética então vivida, surge no Reino Unido o termo ´pobreza energética`, uma forma de pobreza que não permite às pessoas nesse estado satisfazerem as suas necessidades de energia, por exemplo, para aquecimento e confeção de alimentos. Nessa altura começa-se a estudar o tema, mas é apenas na última década que assistimos a um crescente interesse pelo tópico, tanto na investigação como na política, passando essencialmente por perceber o conceito em diferentes áreas geográficas. Vários estudos têm alertado para a importância e influência de diferentes culturas, climas, tipologia de edifícios, tecnologias (e.g. climatização) no consumo de energia e nas diversas formas de dar resposta ao desafio de manter um ambiente confortável e saudável nas habitações.

Atualmente, estima-se que entre 37 a 98 milhões de europeus se encontrem em situação de pobreza energética. A Comissão Europeia reconheceu o problema através da Diretiva 2009/72/CE, realçando o seu crescimento nos Estados-membros e a necessidade de o abordar e proceder à sua resolução. Apesar de reconhecida a dimensão do problema, não foi ainda adotada uma definição comum e as metodologias de avaliação e monitorização da pobreza energética na União Europeia variam de acordo com os diferentes contextos energéticos e socioeconómicos de cada país.

De uma forma geral, considera-se pobreza energética a não satisfação das necessidades básicas de serviços de energia como resultado de baixos rendimentos, preços elevados de energia e habitações energeticamente ineficientes. Em Portugal não está estabelecida uma definição oficial do conceito, nem a metodologia para a sua identificação, medição e monitorização. No entanto, o Plano Nacional de Energia e Clima refere que o Governo se propõe fazer o diagnóstico da pobreza energética antes de 2021, incluindo a sua avaliação. A proposta de Orçamento de Estado para 2020 refere que se irá promover o desenvolvimento de uma estratégia de longo prazo para combater a pobreza energética.

A necessidade de estudar a problemática e de definir políticas destinadas à sua mitigação dentro de cada país nas suas diferentes regiões, municípios e freguesias deve-se às grandes diferenças sociais e geográficas associadas à distribuição da pobreza energética.

O efeito de diferentes fatores socioeconómicos, climáticos, financeiros e culturais que podem potenciar a pobreza energética torna este problema multidimensional, com dificuldades acrescidas na identificação da génese do mesmo e dos principais agentes de mudança. A maioria dos indicadores existentes para avaliação desta problemática apenas permitem a comparação entre países e não para análises a diferentes escalas (i.e., cidades).

Em Portugal, assim como noutros países do Sul europeu, apesar dos invernos mais moderados comparativamente a países do Centro e Norte da Europa, as taxas de mortalidade no inverno são consideravelmente superiores (segunda posição, a seguir a Malta, em 2014) (European Energy Poverty Observatory), já que os países com invernos mais rigorosos possuem em regra edifícios com melhor isolamento e maiores consumos de energia.

O inquérito anual da União Europeia sobre o Rendimento e as Condições de Vida (EU-SILC) indica que Portugal, comparativamente a outros países europeus, foi em 2018 o quinto país com maior percentagem da população (19,4%) que refere ter incapacidade de manter a habitação adequadamente quente no inverno; e com a segunda maior percentagem de toda a União Europeia (35,7%), apenas atrás da Bulgária, com a população a viver num alojamento não confortavelmente arrefecido no verão (2012).

O Homes Barometer 2019 identifica Portugal como o pior país da EU28, com maior percentagem de crianças (51%) com elevado risco de viver em habitações com más condições para a saúde. Segundo dados do Observatório da Energia (ADENE), cerca de 75% das habitações atualmente certificadas têm baixa eficiência energética (classe C ou inferior). No indicador “Presença de infiltrações, humidade e podridão na habitação” (2016), o país ocupa a primeira posição europeia (31,3%). Estima-se que entre 2 a 3,6 milhões de portugueses sofram de alguma forma de pobreza energética.

Análises combinadas de vários destes indicadores situam Portugal como um dos três países europeus em maior risco de pobreza energética, principalmente devido à incapacidade de manter temperaturas de conforto nas habitações, identificando assim o edificado como uma das determinantes principais do problema, reforçando a importância de uma boa construção de edifícios e a necessidade de melhorias de eficiência energética tanto através da renovação do edificado, como da substituição por equipamentos de climatização mais eficientes.

Percebendo a dificuldade da caraterização regional do problema e a sua monitorização ao nível internacional, temos nos últimos anos vindo a trabalhar no CENSE-FCT-NOVA sobre esta questão, desenvolvendo um índice para classificação e mapeamento da vulnerabilidade à pobreza energética no inverno e no verão no território nacional à escala das freguesias (IVPE). A metodologia combina: 1) Cálculo do “Gap” de desconforto térmico (desempenho energético de edifícios e consumo de energia), que integra essencialmente variáveis climáticas, construtivas e taxas de posse de equipamentos de climatização. Esta estimativa envolve a determinação das necessidades de energia para se atingir a temperatura de conforto no inverno (18°C) e o consumo de energia final para aquecimento e arrefecimento, de acordo com o atual regulamento dos edifícios de habitação – REH, dos alojamentos residenciais ocupados de residência habitual para todas as freguesias do país (continente e ilhas). Atualmente, o IVPE considera 187 tipologias de edifícios representativos incorporando informação de base de cerca de uma amostra de 520 mil certificados energéticos; 2) Cálculo da capacidade de implementar medidas de mitigação do desconforto térmico, que integra essencialmente variáveis socioeconómicas. Utilizaram-se dados de 6 indicadores socioeconómicos (ganho médio mensal; população residente com 4 anos ou menos; população residente com mais de 65 anos; população com ensino superior completo; taxa de desemprego). Os dois sub-índices são então combinados para a determinação do índice composto de vulnerabilidade à pobreza energética (IVPE), permitindo identificar focos para ação local.

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Índice de Vulnerabilidade à Pobreza Energética. Fonte: CENSE/FCT-UNL

Os resultados do índice composto e de todos os indicadores complementares reforçam a ligação entre pobreza energética e incapacidade de manutenção do conforto térmico nas habitações, e corroboram a necessidade de focar a atenção em Portugal e nas suas diversas regiões. Devido à sua ligação com diferentes áreas, recorrendo ao IVPE estamos a avaliar os custos regionais à implementação de medidas de renovação do edificado e de equipamentos de climatização mais eficientes para mitigação da pobreza energética, avaliação do impacto das alterações climáticas e ligações à saúde pública.

Desta forma, em conjunto com stakeholders nacionais (e.g. ADENE) estamos a trabalhar para evoluir para um índice dinâmico de apoio à política pública, que permita a monitorização do problema e a avaliação do impacte de medidas, agregando cada vez mais informação e detalhe espacial proveniente de mais certificados energéticos, registos de consumo energético de contadores inteligentes e outros indicadores socioeconómicos resultantes de inquéritos locais.


João Pedro Gouveia (jplg@fct.unl.pt), é Engenheiro do Ambiente, Doutorado em Alterações Climáticas e Politicas de Desenvolvimento Sustentável. É investigador auxiliar no CENSE – Center for Enrvionmental and Sustainability Research, da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Tem trabalhado em diversos projetos internacionais nas áreas de eficiência energética em edifícios, transição energética e sustentável de cidades e soluções para a descarbonização dos sistemas energéticos; e em projetos nacionais de apoio à politica publica nacional e local nas áreas de mitigação e adaptação às alterações climáticas. É um dos representantes portugueses na comité de gestão da ação COST – ENGAGER sobre Pobreza energética e é membro do conselho consultivo do Observatório Europeu de Pobreza Energética.

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