Atrás dele está uma moradia da era colonial, elegante e discreta. A fachada ostenta imunidade à dor e ao isolamento que as guerras do passado trouxeram àquela cidade no sudeste de Angola. Depois de uma breve conversa de apresentações, ele encaminha-me para dentro da moradia. É a sede provincial da ONG que dirige. Sentamo-nos e conversamos no seu escritório despido dos adereços característicos da “indústria do desenvolvimento”. No final da reunião, ele esboça um mapa onde indica a saída de Menongue. “Depois de passares por esta rotunda em construção”, diz apontando com o lápis para as últimas linhas que tracejou, “furas por aí fora”.
Vários quilómetros depois, quando avanço pela estrada que me indicou, sinto-me de facto a furar por entre florestas sem fim à vista. O pavimento plano de alcatrão opõe-se às irregularidades da paisagem. Neste jogo de contrastes, o que me desperta a atenção é a forma como a geometria retilínea da estrada interrompe os contornos e as descontinuidades de tudo o que está a seu lado. De acordo com Tim Ingold, linhas retas são intervenções deliberadas, impostas às vicissitudes do mundo natural. Elas servem para ordenar e regular. Juntas num corpo único, as linhas retas, as estradas e o alcatrão encarnam o progresso das mobilidades que contrariam as topografias orgânicas. Estava atravessando o Kwando Kubango. Outrora conhecida como “terras do fim do mundo”, esta província angolana detém agora a designação mais promissora da nação: “as terras do progresso”.

A estrada foi concluída em 2010. Estende-se por mais de 400 quilómetros por cima de dunas cobertas por um mar de vegetação. Parece uma ponte enorme sobre um oceano verde imóvel. O alcatrão imenso é mais do que um simples elemento adicionado à paisagem. É um símbolo de união. Um símbolo da nação. Em Agosto de 2012, o então presidente angolano, José Eduardo dos Santos, foi a Menongue promover obras como esta estrada, usando expressões emblemáticas, tais como: ela assegura a inserção da província no “todo nacional”. Nos discursos feitos em cima de palcos e em outros ditos na rádio e impressos em jornais, a estrada simboliza a inclusão da província no corpo da nação. Este é um corpo cada vez mais unido e avivado por veias de alcatrão. A estrada que encontrei em Menongue é uma dessas veias celebradas pelo que une, junta e unifica. Nela circulam mais do que pessoas e bens de consumo. Circula o hino da nação, que assim chega bem alto à ponta sudeste do país. Furando por entre árvores, vilas e comunas, a estrada canta: “Angola … Unida … Um só Povo, uma só Nação!”
Mas as estradas, tal como todas as infraestruturas, nem sempre reproduzem as intenções dos seus “compositores”. Por vezes elas contrariam as vontades e as ideias que supostamente deveriam transmitir. O senhor Abílio vive numa das aldeias furadas pela estrada. A aldeia tem duas latrinas para mais de trezentas pessoas partilharem e, devido às carências materiais dos seus habitantes, as mamãs de lá aproveitam os cabelos humanos para fazerem as bonecas com que as crianças brincam. De dentro da sua casa de pau a pique, com uma vista privilegiada para o alcatrão, o senhor Abílio aponta com o queixo para a estrada e diz-me: “Angola é bom só para os muatas, para os superiores; não para nós.” Aquele símbolo magnífico de progresso e união também traz frustração.
Mais do que as riquezas anunciadas nos comícios e nos media, a estrada distribui desilusão a esta aldeia. “A estrada não é justa”, uma senhora com uma perna amputada levada pela guerra segreda-me, “ela é generosa apenas para alguns”. Nessa tarde falámos sobre o defeito de não haver ninguém com um veículo a motor na aldeia. Falámos sobre acessibilidades inacessíveis. Na era em que a conectividade se tornou numa condição básica do progresso, estas pessoas sentem mais do que nunca as consequências de não serem parte dessa condição.

Desde que foi inaugurada, a estrada tornou-se um palco onde circulam alegrias destinadas a outros. Nela passam todos os dias produtos vindos de outros locais, deixando apenas o rasto da insatisfação de não os ter. Todos os dias a estrada inunda a aldeia do senhor Abílio com desejos não conseguíveis. O maior marco de conectividade nacional na região serve, afinal, para anunciar aos habitantes locais a gigantesca distância a que estão do tal “todo nacional”. A estrada contradiz-se. Em vez de progresso, anuncia desigualdades. Em vez de cantar a música da união, trauteia afastamentos. A estrada é, sobretudo, um espelho que as pessoas daquela aldeia usam para se observarem. E é através deste espelho que elas percebem o quão afastadas estão das coisas fascinantes que a estrada lhes ensinou a desejarem para si.
Rodeado por crianças descalças e cobertas por roupas lavadas pelo sol, o mais velho Delvanio aponta com o dedo indicador para o alcatrão e faz um movimento nervoso da direita para a esquerda. Foi uma alusão à circulação na estrada em direção à capital Luanda; essa parte do “todo nacional” habitada por jovens que chegam a despender 7 mil euros numa saída à noite. Com o olhar fixo na estrada-nação, Delvanio finaliza com uma pergunta: “Se Angola é só uma, porque é que há uns que são mais que os outros?” A questão voou para o infinito sem resposta, como um balão largado por alguém desencantado com o (seu) mundo.
A estrada não fura apenas aquela paisagem. Também fura a alma de quem lá vive. Lembrei-me da expressão “furar” que o dirigente da ONG usou para descrevê-la. Que palavra tão perturbante. Furar descende do Latim forare. Esta por sua vez descende do Indo-Europeu bhar-, que gerou o Latim ferire, ou seja, “ferir”.
O alcatrão para onde o Delvanio apontou é uma das muitas intervenções pós-guerra em Angola solenemente celebradas e que visam combater as desigualdades territoriais com a construção de estradas. Mas o que estes habitantes nos dizem é que antes de aplaudirmos as novas estradas como sucessos garantidos, devemos compreender como elas vivem e são vividas; o que levam e, sobretudo, o que (não) deixam.

Post baseado num artigo que escrevi para o journal Ethnos. Pode consultá-lo aqui: The Road of Progress. O texto resulta do meu trabalho de campo (intermitente) feito em Angola entre 2011 e 2016. Durante este período, fiz parte dos projetos de investigação The Future Okavango e SASSCAL. Dediquei-me, sobretudo, às relações entre políticas ecológicas e formas de conhecimento.
João Afonso Baptista é antropólogo e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Bonito texto. Além do conteúdo da mensagem, gostei muito da forma. Obrigado.
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