Dívida pública e dependência

Por Daniel Roedel

Frequentemente os media especializados em economia destacam a necessidade imperiosa de se promover radicais ajustes nos orçamentos públicos como caminho natural e necessário para um desenvolvimento equilibrado dos países. Citam até o honroso (embora preconceituoso) exemplo das “donas de casa”, que cuidam do orçamento cotidiano e que sabem que não se pode gastar mais do que se arrecada. Tal exemplo sensibiliza e encontra respaldo nas camadas médias da população, pois esta costuma ser determinada no cumprimento de seus compromissos financeiros.

Mas é isso mesmo? Podemos comparar o orçamento de um Estado com o, geralmente restrito, orçamento doméstico? Ou será que se trata de mais um argumento ideológico deste tempo neoliberal que preconiza o estado mínimo e valoriza os mercados, em detrimento de políticas sociais, que são prioritariamente as mais atingidas por esse modelo?

É claro que não se pode comparar o orçamento de um Estado, que possui condição de criar e alterar impostos e tributos, detém ativos diversos e capacidade de financiamento, com o controle receita x despesa praticado pelas famílias. Trata-se, portanto, de um argumento ideológico que, sob um escudo moral, tenta garantir o cumprimento de políticas que atendem mais os interesses de agentes financeiros internacionais do que os dos cidadãos. Mas por quê? A indagação se torna mais necessária quando percebemos que os mais afetados pelas políticas de austeridade promovidas pelos ajustes atingem predominantemente os mais necessitados e que deveriam contar com políticas públicas que garantissem direitos básicos. Mas o que ocorre é o contrário. As políticas de austeridade têm sido eficazes apenas para concentrar a renda naqueles que já possuem as maiores fortunas do planeta.

Por trás dessas políticas está o acelerado processo de acumulação de capital, proporcionado pela globalização neoliberal, reforçada pelas dívidas públicas dos países de capitalismo dependente, fato que repercute na composição dos orçamentos públicos, que reservam elevados recursos para o pagamento de dívidas, cuja origem e destino são pouco questionados.

O Brasil tem sido um exemplo dessa conduta. A cada ano o orçamento federal reserva aproximadamente 40% para o pagamento de juros e serviços da dívida pública, ou seja, recursos diretamente comprometidos com o grande capital, conforme demonstrado no gráfico abaixo, elaborado pela organização Auditoria Cidadã da Dívida, do Brasil:

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Orçamento Federal Executado (Pago) em 2018. Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida.

O compromisso dos governos com o pagamento de juros e serviços da dívida pública limita os orçamentos de setores sociais, causando deficiência na prestação dos serviços. Como resposta, é apresentada como imperiosa a necessidade de diminuição do “tamanho do Estado” por meio de venda de empresas estatais e de privatização de serviços essenciais como educação, saúde, energia e previdência social, sob o argumento de que a deficiência decorre do fato de o Estado ser um péssimo gestor e que a iniciativa privada é mais eficiente e eficaz na gestão de tais serviços públicos. Mas a prioridade é o cumprimento de compromissos com os credores nacionais e internacionais.

Porém, o argumento da ineficiência do Estado desconsidera o relevante papel que este desempenhou no processo de industrialização de países desenvolvidos, inclusive por meio de financiamentos, e do planeamento e organização, que historicamente corrigiram os rumos desorientados dos mercados livres.

O caso brasileiro se assemelha ao papel desempenhado pela Troika na gestão da crise Europeia de 2008, na qual a austeridade recomendada remeteu a uma ditadura financeira e colocou em segundo plano, para os governos, ações sociais para a superação da crise. A prioridade dos orçamentos foi o cumprimento dos compromissos de dívida assumidos com os credores internacionais, o que significou a transferência a financistas e rentistas. Como exemplo, em Portugal o orçamento de 2012 comprometeu mais recursos com o pagamento de juros do que com a saúde pública, conforme apontam Renato Guedes e Rui Viana Pereira (2013), pondo em risco o futuro do Estado Providência.

Embora tais políticas de austeridade imponham restrições à ação social de governos em favor dos beneficiários da financeirização económica, seus objetivos vão além das transferências imediatas de recursos e cumprem o papel de criar e renovar uma relação de dependência dos países devedores com os credores privados.

Portanto, sustentado pelo argumento moral de que, quem deve tem que honrar os pagamentos, ignora-se o modo como as dívidas são construídas e as relações de poder que envolvem. Ativos públicos, inclusive os que apresentam lucro, são transferidos para mãos privadas como forma de pagamento de dívidas, mas eventuais dívidas dessas empresas são mantidas sob responsabilidade do Estado. Ou seja, lucro privado e prejuízo socializado.

Assim, conforme aponta Rabah Benakouche, transfere-se o poder do Estado para os detentores dos títulos da dívida, o que faz com que a política pública predominante seja o pagamento da dívida, subordinando as demais políticas. É a dívida pública como um grande negócio, não somente no Brasil, mas nos demais países periféricos no capitalismo atual, conduzido pelas finanças. É um modelo em que o valor do capital fictício supera várias vezes o valor produzido pela economia real.

O enfraquecimento das estruturas de poder nacionais e sua subsunção aos mercados financeiros globais enfraquece também a condição de se criar políticas sociais, essenciais principalmente em períodos de agudização das crises dos mercados, tais como nos anos recentes, bem como criar mecanismos adequados de regulação dos mercados financeiros em favor da sociedade. Assim, as políticas sociais são transferidas para a ação filantrópica de indivíduos e instituições sociais ou para a ação de responsabilidade social empresarial.

Evidenciam-se, portanto, as limitações dos mecanismos colocados pela ordem dominante como organizadores e mediadores dessas crises, no enfrentamento e na superação das externalidades socioambientais negativas que gera.

Ademais, a austeridade e o culto ao estado mínimo recomendados aos países periféricos não estiveram presentes na construção do desenvolvimento dos países centrais do capitalismo. Pelo contrário, estes contaram, e ainda contam, com a presença do Estado no fomento e na garantia de seus mercados. Tampouco os atuais défices nos seus orçamentos são objeto dessas políticas restritivas que preconizam e o governo do principal país capitalista contemporâneo não aplica, como solução para sua dívida pública, a austeridade que recomenda.

Concluindo, por serem argumentos que possuem uma base ideológica, naturalizam sua constituição e ocultam as contradições inerentes. Assim, mantêm e reforçam a dependência e a assimetria de poder em detrimento de proposições que de fato contribuam para a superação da crise e para a melhoria das condições de vida das populações dos países periféricos.


Daniel Roedel é investigador visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana, integrante do núcleo do Rio de Janeiro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública brasileira.

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