A floresta: sobre o conhecimento eco(i)lógico

Por João Afonso Baptista

Ao fim de quase duas semanas a residir numa aldeia em Angola afastada do asfalto, do cimento e das redes móveis, resolvi ir beber um café ao sítio mais próximo. O desejo pela cafeína que não havia ali surgiu-me quando matabichava com outras quatro pessoas. Anunciei-lhes a minha viagem para a manhã seguinte. “Então tens de dar boleia ao Senhor Administrador,” avisou-me o soba, “se não ele leva a mal.”

O Administrador era novo na aldeia. Homem magro, alto, com ar de cidade, claramente desajustado à vida que ali se vivia. Ele tinha sido transferido para este povoado há pouco mais de um mês.  Motivo (oficial) da sua colocação: administrar 27 aldeias dispersas “na mata”. A sede, como chamavam à casa do Administrador, construída pelo governo angolano no ponto mais elevado da povoação, situava-se junto à aldeia onde eu estava. “Estou muito oprimido aqui,” costumava queixar-se o Administrador.

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A vida com a floresta numa aldeia em Angola. Fonte: João Afonso Baptista

Na manhã seguinte, não demorou mais do que dois minutos de solavancos no carro para o Administrador partilhar comigo algumas das suas preocupações: “Óh Doutor, o Doutor dá muita atenção a esta gente.” “É o meu trabalho,” respondi-lhe. “Mas o Doutor devia desconsiderar estas criaturas ignorantes.” Perguntei-lhe porquê. “Eles vivem rodeados de árvores.”

No meio da chiadeira das suspensões do carro e dos balanços por causa da irregularidade do caminho, disse-lhe em voz alta (para ser ouvido, não por irritação): “Então pelo menos sabem das árvores e da floresta, não é assim?” A resposta veio imediata: “Mas aí é que está Doutor; eles são ignorantes sobre as árvores porque vivem próximo delas. Não sabem nada sobre árvores e sobre a floresta. Não têm como! Não sabem explicar nem têm acesso às coisas sobre a floresta!” Meses depois percebi que esta não era uma opinião isolada. Pelo contrário, a importância do “sobre” mais do que o seu referente é uma crença cada vez mais enraizada na classe político-científico-ecológica em Angola.

Na Angola de agora, o conhecimento oficial ecológico está subjugado a dois fatores que se favorecem um ao outro: distância e representação. Por representação refiro-me ao “sobre”; ao que é dito e lido, apresentado e classificado, mostrado e demonstrado sobre ou em nome de algo (discursos, textos, imagens, gráficos, símbolos; tudo isto abrange as representações a que me refiro aqui).

Apresento-vos agora um outro protagonista nesta estória etnográfica: um alemão que conheci há cinco anos atrás, professor universitário em ascensão na Alemanha e que se dedica à produção de conhecimento sobre florestas em África (para efeitos de anonimato, refiro-me a ele como Hans). Encontrámo-nos várias vezes, sempre acidentalmente, e sempre em locais diferentes. “I travel a lot,” disse-me ele uma vez com sobriedade.

Um destes encontros foi em Rundu, uma cidade namibiana que faz fronteira com Angola. Ambos fomos lá para participar numa conferência. Hans apresentou e falou sobre o que tem vindo a apresentar e falar na última década: as florestas em Angola. Nesse dia, ele concentrou-se na floresta de miombo onde eu estive e onde o Administrador (des)vive. Hans brindou a audiência com gráficos coloridos, glossários, diagramas computadorizados e, sobretudo, muitas imagens de satélite da floresta em questão. Através deste “conhecimento de cima”, ficámos todos a saber a evolução histórica e o presente da floresta que rodeia a tal aldeia que não tem café.

O que é interessante (mas longe de ser atípico) é que Hans nunca visitou esta floresta de que tanto sabe. Ainda assim, os seus relatórios, inundados com os tais gráficos vistosos e imagens de cima e de longe, carregam uma aura de autoridade e legitimidade oficial sobre o “é” da floresta, inalcançável de atingir pelas pessoas que vivem com a floresta – refiro-me aos residentes na aldeia onde o Administrador sobrevive.

De facto, os relatórios de Hans residem nos escritórios municipais angolanos. Oficialmente, estes relatórios carregam consigo “as verdades verdadeiras” (assim me disseram tantas vezes) sobre as florestas regionais. Tal como em muitos outros países, são os Hanses estrangeiros e nacionais, os Hanses da capital ou de outras cidades que são reconhecidos e tidos em conta junto das elites da governação em Angola dedicadas ao ambiente. No jogo do conhecimento oficial, aos que vivem junto das florestas cabe-lhes a figura de “criaturas ignorantes” que nada ou pouco sabem sobre florestas. Um paradoxo tremendo. Tal como Tim Ingold diz, “[s]omething… must be wrong… if the only way to understand our own creative involvement in the world is by taking ourselves out of it”.

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Conferência na Alemanha sobre florestas e outros ecosistemas em África. Foto de João Afonso Baptista.

Uma vez, um residente na aldeia levou-me até uma das suas colmeias na floresta. No caminho, fui-lhe perguntando sobre a floresta que estávamos a atravessar. Depois de várias respostas evasivas, ele propôs-me o seguinte: “Sente o som por baixo dos teus pés e vais entender esta mata.” Noutra ocasião, após quase vinte minutos de conversa difícil sobre a floresta, um “mais velho” aconselhou-me num tom conclusivo: “Tens que ir lá [à floresta] e senti-la tu próprio. Só assim vais compreender a floresta.” Um conselho elementar.

De facto, nesta e em muitas outras aldeias onde estive em Angola, o conhecimento das florestas resulta muito de intercorporeidade e é fundamentalmente produzido através de uma gramática não representável. É por isto que fui constantemente aconselhado a estar com a floresta; aconselhado a ouvir, tocar, cheirar, ver, enfim, sentir diretamente o que eu queria saber: “Tens que ir lá e senti-la tu próprio” – uma forma de aprender a conhecer fundamentada na presença e que vai para além dos limites da representação (para lá do “sobre”).

Apesar de muitos dos residentes rurais com quem lidei em Angola não serem fluentes na linguagem das representações sobre florestas, muitas destas pessoas são conhecedoras notáveis das árvores, dos solos, frutos, insetos, fungos, águas, ventos e de muitas mais coisas que preenchem os espaços onde e com os quais (con)vivem diariamente. No entanto, este é um conhecimento menos transferível e, essencialmente, incompatível com estratégias de expansão pós-coloniais visto não servir para legitimar a autoridade e as intervenções sobre espaços, coisas e animais (incluíndo pessoas) efetuadas à distância.

Na prática, conhecimentos não representáveis são ineficazes para os exercícios de governação e administração feitos à distância. Talvez por isso, nas (eco)lógicas oficiais de muitos Estados, incluindo em Angola, este seja um conhecimento tão desvalorizado se não mesmo desprezado.

Não estou a fazer a apologia dos habitantes rurais em Angola, da mesma forma que não pretendo desacreditar os especialistas urbanos sobre a floresta. O que pretendo partilhar está para lá dos esterótipos. É tão somente isto: refletir sobre a legitimidade que todos nós podemos ter, não ter, ou vir a ter a partir das formas como (não) nos relacionamos com o que julgamos saber.


Este texto resulta do meu trabalho de campo (intermitente) feito em Angola entre 2011 e 2016. Durante este período, fiz parte dos projetos de investigação The Future Okavango e SASSCAL. Dediquei-me, sobretudo, às relações entre políticas ecológicas, epistemologias locais e o corpo.   

 João Afonso Baptista é antropólogo e investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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