Segurança alimentar: da cacofonia à sinfonia semântica?

Por Mónica Truninger

O conceito de segurança alimentar tem sido objeto de vários debates e reconfigurações ao longo do tempo, de tal forma que há quem diga que existem mais de 200 definições.

A confusão ainda é maior nas línguas de origem latina! Não é invulgar estarmos num debate em português onde os e as oradoras empregam o termo ‘segurança alimentar’ para se referirem a realidades distintas: seja em relação a questões de risco, higiene, limpeza e desinfeção dos alimentos—food safety na língua inglesa e bem ilustrado pelo Hazard Analysis Critical Control Points—HACCP;  a questões de fome e escassez alimentar—food security; ou a questões de direito à alimentação—food rights.

Esta variedade de significados, mais as suas múltiplas nuances semânticas e combinações, explicam a cacofonia e falta de clareza concetual entre os termos de ‘pobreza’, ‘segurança’ e ‘soberania’ alimentares.

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Horta comunitária da Batavo, Brasil. Fonte: Wikimedia Commons

Podemos definir a pobreza alimentar como a incapacidade de adquirir ou consumir a qualidade adequada ou a quantidade suficiente de alimentos de forma socialmente aceitável—sendo aqui considerado inaceitável alguém ser forçado a recorrer à ajuda alimentar, roubar, pedir na rua ou procurar comida nos caixotes de lixo.

Já o conceito de segurança alimentar, conforme elaborado pela FAO em 2001, “[é] uma condição que existe quando todas as pessoas em qualquer altura têm acesso físico, social e económico a uma alimentação suficiente, segura e nutritiva e que vai ao encontro das necessidades e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”. Ou seja, a insegurança alimentar implica não ter acesso a uma alimentação suficiente, segura—aqui no sentido da food safety e, portanto, que não prejudique a saúde—e nutritiva.

Por isso, não é de surpreender que os conceitos de pobreza e insegurança alimentar sejam usados como sinónimos. Porém, eles não são a mesma coisa. Se considerarmos a falta de rendimentos como uma característica fundamental da pobreza, então chegamos à conclusão de que o rendimento é uma condição necessária mas não suficiente para garantir a segurança alimentar. As famílias com rendimentos mais elevados podem passar por períodos de insegurança alimentar quando enfrentam uma quebra súbita de rendimentos—por exemplo, devido a uma situação de desemprego ou divórcio—e são obrigadas a priorizar outras despesas acumuladas ao longo do tempo—por exemplo, de transporte, empréstimos ou educação.

No fundo, e comparando com a população economicamente mais vulnerável, estas pessoas podem estar num escalão de rendimentos considerado elevado, mas as dívidas e as novas circunstâncias de vida não lhes permitir fazer face às suas despesas, sendo obrigadas a reduzir as quantidades de comida ingeridas ou a usar estratégias de adaptação—por exemplo, consumir carnes mais baratas, reduzir os produtos de maior qualidade alimentar, optar por produtos perto de atingirem os prazos de validade ou evitar comer fora.

Algumas iniciativas—também de combate ao desperdício alimentar—têm vindo a providenciar comida que não representa perigo para a saúde pública, mas que já está muito perto do prazo de validade—como é o caso deste supermercado. Muitas vezes as famílias acabam por não ter direito a acionar mecanismos de proteção social, pois os seus rendimentos são considerados acima da média. Isto coloca-as numa situação muito frágil, agravada pela dissonância entre o seu estatuto social aparente e a sua real situação económica, levando-as a sentir-se cada vez mais isoladas.

Por outro lado, podemos ter famílias com muito poucos recursos económicos que, devido às suas competências culinárias ou de produção agrícola para auto-consumo, por exemplo, numa horta comunitária, conseguem manter uma alimentação com relativa qualidade, não passando por situações de insegurança alimentar.

No que diz respeito à soberania alimentar, este termo aponta noutra direção: o direito à alimentação emanado dos direitos sociais e humanos, bem como a sustentabilidade dos meios de subsistência ao nível das comunidades locais.

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Símbolo do movimento La Vía Campesina. Fonte: Raising Peace Campaign

A ideia da soberania alimentar surge em 1996 através do movimento internacional de camponeses e pequenos agricultores denominado La Vía Campesina, criado em 1993. Segundo este movimento, a “soberania alimentar é o direito de cada nação manter e desenvolver a sua própria capacidade de produzir alimentos básicos, respeitando a diversidade cultural e produtiva”. No fundo, trata-se de consagrar o direito de produzir a própria alimentação nos territórios locais onde as comunidades vivem. Assim, a soberania alimentar é uma condição prévia à verdadeira segurança alimentar. O conceito engloba quatro dimensões: o direito à alimentação; o acesso aos recursos produtivos; a integração da produção agroecológica; e o comércio de proximidade, bem como o uso dos mercados locais.

Uma das evidências do impacto da crise financeira e económica dos últimos anos é que a insegurança alimentar—incluindo episódios de fome entre adultos e crianças—ocorreu também—e ainda ocorre—nos países mais desenvolvidos. Este deixou de ser um problema que, aparentemente, só se passa lá longe, em África, Ásia ou na América Latina. Está bem perto de nós. Assim, as questões da segurança alimentar, apesar de não serem frequentemente mencionadas nos meios de comunicação social, estão presentes nas preocupações quotidianas de muitas famílias, tanto nos países que vivem em escassez, como nos que vivem em abundância.

No âmbito do projeto de investigação Family and Food in Hard Times, em que participa o Instituto de Ciências Sociais, no qual está a ser desenvolvido um estudo comparativo entre a Noruega, o Reino Unido e Portugal, uma equipa de cientistas sociais do Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade está a recolher dados junto de famílias com crianças para compreender melhor os impactos que a crise económica teve, e ainda tem, nas práticas alimentares dessas famílias. Embora não haja resultados preparados para divulgação, pois o trabalho de campo ainda está em curso, as entrevistas realizadas têm mostrado aquilo que vários nutricionistas, comentadores e autores de estudos sobre o aumento das desigualdades sociais no nosso país têm vindo a documentar: um retrato dramático das condições de vida de muitas famílias que passaram, e ainda passam, por tempos bastante difíceis. Estas condições são, em grande parte, resultado da crise económica, agravada pelas medidas de contenção orçamental que vigoraram com mais intensidade entre 2011 e 2014.

De forma a analisar e aprofundar estas questões, uma equipa do nosso Grupo de Investigação realizou, em 2014, o Estudo de caracterização da pobreza e insegurança alimentar nas famílias portuguesas com crianças em idade escolar, financiado pelo Programa Operacional de Assistência Técnica do Fundo Social Europeu e pelo Estado Português. Com base em metodologias quantitativas e qualitativas procurou-se identificar situações de pobreza e insegurança alimentar das famílias portuguesas com crianças em idade escolar, traçando um diagnóstico destas condições e examinando como a alimentação das crianças e das suas famílias foi afetada pela crise.

Os resultados, a disponibilizar em breve no livro Alimentação em Tempos de Crise: Consumo e Segurança Alimentar nas Famílias Portuguesas, Imprensa de Ciências Sociais, mostram que a insegurança alimentar, apesar de mais prevalecente nos segmentos economicamente mais vulneráveis, atravessava já, em 2014, o tecido social de modo transversal.

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Segurança alimentar e alterações climáticas. Fonte: Wikimedia Commons

Nos últimos anos, o conceito de segurança alimentar tem-se reconfigurado e tornado mais multidimensional. Segundo Kevin Morgan e Roberta Sonnino, estamos perante uma nova equação alimentar caracterizada: pela volatilidade dos preços no mercado alimentar global; pela transição nutricional nos países e economias emergentes; pela segurança alimentar vista como uma questão de soberania nacional; pelo efeito das alterações climáticas nos sistemas agroalimentares; e, por fim, por crescentes conflitos sobre recursos naturais, incluindo terra, água e florestas, entre outros.

Todas estas questões proporcionam novas perspetivas sobre o conceito de (in)segurança alimentar cobrindo diversas dimensões, tais como: a nutrição, a inclusão social e a diminuição das desigualdades sociais; as políticas de proteção social e o fortalecimento do Estado Social; as políticas de emigração e de inclusão das e dos refugiados—muitos deles do clima; as dimensões ambientais—por exemplo, as questões do desperdício alimentar, a pressão das alterações climáticas nos recursos naturais e no deslocamento de populações; e também as dimensões que incluem direitos humanos fundamentais, tais como o direito humano à alimentação. Brevemente estará disponível mais informação sobre estas matérias no livro Routledge Handbook on Consumption.


Mónica Truninger é socióloga e investigadora principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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