Urbanização em solo rústico e a crise da habitação: uma falsa associação

Por: Simone Tulumello

No dia 30 de dezembro de 2024, enquanto Portugal recuperava da ressaca de Natal e se preparava para celebrar o ano novo, o governo de direita presidido por Luís Montenegro publicou o Decreto-Lei n.º 117/2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 80/2015, de 14 de maio). A alteração mais relevante diz respeito ao artigo 72 deste último, relativo à reclassificação para solo urbano – nomeadamente, a transformação de solos “rústicos” em solos urbanizáveis sem alteração do plano de ordenamento municipal. Trata-se, por definição do Regime Jurídico, de uma operação “excecional”: em sentido legal, pois constitui uma exceção legal ao processo regular de classificação dos solos nos planos municipais; e no sentido literal, por ter de ser implementada em situações verdadeiramente excecionais de urgente necessidade de solos não disponíveis de outra forma.

Sem mudar a letra da lei na referência à excecionalidade, o DL 117/2024 simplifica o procedimento e cria um “regime especial de reclassificação para solo urbano com finalidade habitacional”. Como explica a retórica do preâmbulo ao DL, trata-se de tornar a reclassificação dos solos rústicos num pilar da estratégia de incremento da oferta habitacional.

Fig. 1: Fotografia do Alto da Eira em 2013 (pelo autor)

Trata-se, ao mesmo tempo, de um retrocesso de várias décadas na gestão do território, escancarando a porta à expansão descontrolada das áreas urbanizadas e à especulação – a simples alteração de um solo de rústico para urbano multiplica o valor do mesmo, até antes de se ter construído qualquer coisa. Foram, de facto, muitíssimas as reações de pessoas e entidades com competência sobre o tema – veja-se, por exemplo, a Carta Aberta da Rede H – Rede Nacional de Estudos de Habitação, que recolheu centenas de subscrições e contribuiu para que o DL fosse levado à Assembleia da República onde, contudo, não se esperam alterações estruturais. A carta aberta clarifica a falácia de um dos principais álibis usados pelos defensores do DL: «não existe falta generalizada de solos urbanos nos perímetros urbanos», isto é, se o problema fosse a necessidade de construir mais casas, não estaria a sua causa na falta de solos urbanizáveis.

Ainda que ninguém possa negar que em Portugal o preço da habitação se tornou incomportável para os rendimentos da maioria (praticamente a  totalidade) de quem trabalha e vive no país, será que precisamos mesmo de construir mais casas? Mais construção é a resposta que, desde sempre, oferece a direita – e, fundamentalmente, também o Partido Socialista, que tinha já avançado com estímulos à construção e uma simplificação da reclassificação dos solos rústicos, mas só para promoção pública de habitação acessível. Este DL complementa o anterior pacote do governo de direita, denominado, de forma explícita, Construir Portugal. Para os pensadores de direita, não há dúvidas. Veja-se, por exemplo, o que diz José Mendes:

se não fosse um assunto sério, daria vontade de rir. É por demais evidente que existe em Portugal um problema de escassez na oferta de habitação, sobretudo no que se refere ao segmento suportável pela classe média, chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer.

Será mesmo para rir? O argumento que é normalmente utilizado – igualmente mencionado no preâmbulo do DL 117/2024 – é o da redução, nas últimas duas décadas, das novas construções. O que esse argumento não diz, contudo, é que menos construção não significou “menos casas”. Nas últimas duas décadas, o rácio de casas disponíveis para núcleos domésticos existentes não diminuiu. Se se construiu menos, sim: porque a construção das décadas anteriores colmatou as carências quantitativas que vinham da época do Estado Novo e porque a população parou de crescer. Dizer, neste contexto, que construir menos causou uma ausência de habitações seria como dizer que não comer depois de saciados causa fome.

E saciados estamos à vontade. Há em Portugal dois milhões de habitações não usadas para residência: mais de um milhão de residências secundárias, sazonais ou usadas como apartamentos turísticos (isto é, retiradas do mercado da habitação) e mais de 700 mil devolutas. E, contra o que muitos pensam, os devolutos não se colocam em contextos de escassa pressão urbanística: há 50 mil só na cidade de Lisboa.

Neste contexto, construir mais ajudaria a baixar os preços? A resposta é simples: não. Como demonstrado pelos estudos de habitação baseados em décadas de evidências científicas – aqui a síntese do argumento por Josh Ryan-Collins –, não é o encontro entre procura e oferta que empurra os preços da habitação, mas a disponibilidade de liquidez. Antes da crise, foi o crédito a baixo custo (estimulado pelo Estado) a aumentar os preços enquanto se construía muito mais do que se procurava. Agora, é a liquidez de investidores, financeiros e não só, muitos dos quais internacionais, que inflaciona os preços: repare-se que o incremento das taxas de juro da conjuntura pós-pandémica fez reduzir a procura mas não parou o crescimento dos preços – como demonstrado no estudo de dois economistas do Banco de Portugal que, contudo, acabam na falácia de defender a resolução do problema com… mais construção!

Dir-se-ia que o que serve é construir habitação a preços baixos – «chamem-lhe acessível, moderada ou outro nome qualquer», frisava Mendes acima. Chamemos como quisermos: mas e a substância? O DL 117/2024 condiciona a reclassificação a que «700/1000 da área total de construção acima do solo se destine a habitação pública, ou a habitação de valor moderado». Só que esta última é definida como aquela em que «o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125 % do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225 % do valor da mediana nacional». Os últimos dados do INE disponíveis colocam a mediana do preço de venda nacional a 1,736€/mq, colocando o limite superior nas cidades de maior pressão nos 3,906€/mq: uma moderação evidentemente incomportável para quem aufere rendimentos em Portugal, feita à custa da expansão incontrolada do solo urbanizado.

A conclusão é simples: fomentar a construção fora dos planos de ordenamento do território só serve para fomentar a especulação. Paremos de usar a crise de habitação como álibi. Há, hoje em dia, só uma forma de tornar a habitação acessível para quem vive em Portugal:  regular o mercado, a partir do controle de rendas – tema que não poderei, contudo, desenvolver aqui.

Simone Tulumello é investigador auxiliar em geografia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Interessa-se pelas dimensões globais da urbanização, com foco em temas como habitação, violência urbana e imaginários urbanos. simone.tulumello@ics.ulisboa.pt

Adaptação climática em Portugal: Contributos para um Roteiro Nacional

Por: André Pereira e João Mourato

Nos passados três meses, sucederam-se exemplos a nível mundial dos impactos que quer as ondas de calor, quer as cheias e inundações repentinas (flash floods) podem ter, e de como em contexto urbano e rural não estamos equipados para lidar com estes fenómenos. Perante estes eventos há quem, na opinião pública, argumente que se trata apenas de um conjunto de epifenómenos. Contudo, negacionismo suave à parte, o que a climatologia nos informa é que podemos estar perante o início de uma mudança global nos padrões climatéricos, redesenhando assim um “novo normal”. E acumula-se evidência de que não estamos preparados para gerir os impactos negativos de tal mudança. É aqui que o debate da adaptação às alterações climáticas reside.

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InC2: Ensaio de uma nova geração de Políticas Urbanas?

Por: João Mourato

É urgente repensar a natureza, o desenho e a operacionalização da Agenda Urbana Europeia. Esta premissa foi o ponto de partida do policy lab que a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu organizou em parceria com a EUKN –  Rede Europeia de Conhecimento Urbano.

As áreas urbanas europeias abrigam mais de dois terços da população da UE, representam cerca de 80% do seu consumo energético e geram até 85% do seu PIB. Albergam, e amiúde agravam, os principais focos de desigualdades socioeconómicas, segregação e pobreza. O período de rescaldo e recuperação do atual cenário de pandemia global virá agravar este cenário. Cumulativamente, as áreas urbanas são palcos centrais na mobilização de uma estratégia coletiva de ação climática que nos permita almejar uma transição para a sustentabilidade da relação entre humanos e planeta.

A definição deste desígnio estratégico está atualmente consolidada discursivamente a nível global, via a conferência Habitat III, a Nova Agenda Urbana, ou a Agenda 2030 /ODS das Nações Unidas. No contexto da União Europeia, o Pacto de Amesterdão de 2016 e a subsequente Agenda Urbana para a UE, advogam uma abordagem integrada assente em soluções transversais temáticas como a solução para melhor utilizar políticas, instrumentos, plataformas e programas europeus existentes para atingir os objetivos estabelecidos.

Compromisso político, alinhamento discursivo, desígnios estratégicos e linhas orientadoras explícitas são um ponto de partida. Mas sabemos que não chegam. Reconhecer e incorporar a natureza sistémica e complexa da transição urbana que se pretende promover é fundamental para informar o desenho de uma nova geração de políticas públicas que mobilize e capacite as redes de atores que a operacionalizam. Políticas urbanas podem atuar como uma plataforma de ligação estratégica entre múltiplas abordagens sectoriais fomentando maior coerência na intervenção pública, e ao mesmo tempo servir de palco mobilizador para um conjunto alargado de atores da sociedade civil e movimentos sociais.

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CIDADES MÉDIAS: UM RETORNO RECORRENTE?

Por: João Ferrão

Crise sanitária, uma nova oportunidade para as cidades de média dimensão?

No início de 2021, a Fabrique de la Cité, um grupo de reflexão dedicado à prospetiva e às inovações urbanas, anunciou os três vencedores do concurso “França das Cidades Médias”, organizado em parceria com o Lire Literary Magazine. Este concurso visava premiar as melhores histórias curtas sobre Cidades Médias, estatisticamente definidas naquele país como tendo uma população entre 20 mil e 200 mil habitantes. Foram recebidas cerca de 750 candidaturas, tendo sido selecionadas 14 para publicação. A sessão de atribuição destes prémios culminou um processo participado de avaliação da importância e do papel atribuídos pelos franceses às cidades de média dimensão no novo contexto marcado pelos impactos da pandemia da Covid-19. Uma iniciativa inspiradora, que poderia ser replicada em Portugal

Em julho de 2020, isto é, logo após o primeiro confinamento provocado pela pandemia, a Fabrique de la Cité tinha divulgado um texto – Les villes moyennes, entre imaginaires et complexité – em que se questionava a “fantasia” de opiniões então em expansão que previam que a situação que se vivia iria suscitar uma profunda transição urbana, através da fuga dos desiludidos das metrópoles para cidades de menor dimensão. Apresentada por alguns como “a vingança das cidades médias em relação às metrópoles”, esta perspetiva foi em parte estimulada no espaço público por eficientes estratégias de comunicação desenvolvidas por diversas cidades com o objetivo de atrair empresas, profissionais qualificados e turistas tendo como referência atributos como a existência de espaços adequados, infraestruturas verdes e ar com qualidade. Ou seja, paradoxalmente, cidades médias economicamente em crise procuravam encontrar numa outra crise – sanitária – uma oportunidade para recuperar um dinamismo perdido. Nesse mesmo mês a Fabrique de la Cité publicou o texto Ode às Áreas Urbanas de Média Dimensão, relançando um debate recorrente nas políticas francesas de ordenamento do território e de desenvolvimento regional: o papel das cidades médias no combate ao agravamento das assimetrias territoriais decorrentes das tendências de metropolização.

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Ordenamento do Território e Fenómenos Meteorológicos Extremos: O caso do impacto do ciclone tropical Haiyan nas Filipinas

Por Carlos Tito Santos

As alterações climáticas e os ciclones tropicais

Apesar de existirem algumas incertezas científicas sobre a forma como as alterações climáticas afectam os ciclones tropicais, a variabilidade do clima e as alterações climáticas estão definitivamente a influenciar estes fenómenos climáticos extremos, cada vez mais intensos e devastadores.

O Quinto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas de 2013 concluiu que o aquecimento do clima era inequívoco. Estudos mais recentes como Emanuel (2015) ou Knutson et al. (2015), indicaram que este facto contribuiu para que a temperatura da superfície do mar esteja a aumentar, o que faz com que mais água evapore para a atmosfera e contribua para a intensificação dos ciclones tropicais. O aquecimento global estará também a causar a subida do nível do mar, o que agravará o impacto das inundações resultantes da sobrelevação marítima dos ciclones tropicais em zonas costeiras baixas. Continuar a ler

“Not in planning’s name”? Lessons from Israel/Palestine

Autor: Marco Allegra

Last year an International Advisory Board (IAB) chaired by Cliff Hague (former president of the Royal Town Planning Institute, RTPI) and working under the auspices of the UN-Habitat, produced a report on planning conditions for Palestinian communities in the so-called “Area C” of the West Bank. The report detailed the asymmetries of planning policies in Israel/Palestine, and highlighted how planning arguments are often used by Israeli authorities to curtail Palestinian development. The publication of the report has stimulated a debate in the planning community: the findings of the report were endorsed by eighteen former presidents of the RTPI in a letter to the Institute’s official magazine, The Planner. Hague himself recently published a commentary in the journal Planning Theory and Practice. Reflecting on his experience, he noted how in the West Bank “‘good planning’ is the rationale for oppressing poor people”, and asked professional bodies to take a stand against oppressive practices in Area C by declaring “not in planning’s name”. Continuar a ler