Por: João Mourato
É urgente repensar a natureza, o desenho e a operacionalização da Agenda Urbana Europeia. Esta premissa foi o ponto de partida do policy lab que a Presidência Portuguesa do Conselho Europeu organizou em parceria com a EUKN – Rede Europeia de Conhecimento Urbano.
As áreas urbanas europeias abrigam mais de dois terços da população da UE, representam cerca de 80% do seu consumo energético e geram até 85% do seu PIB. Albergam, e amiúde agravam, os principais focos de desigualdades socioeconómicas, segregação e pobreza. O período de rescaldo e recuperação do atual cenário de pandemia global virá agravar este cenário. Cumulativamente, as áreas urbanas são palcos centrais na mobilização de uma estratégia coletiva de ação climática que nos permita almejar uma transição para a sustentabilidade da relação entre humanos e planeta.
A definição deste desígnio estratégico está atualmente consolidada discursivamente a nível global, via a conferência Habitat III, a Nova Agenda Urbana, ou a Agenda 2030 /ODS das Nações Unidas. No contexto da União Europeia, o Pacto de Amesterdão de 2016 e a subsequente Agenda Urbana para a UE, advogam uma abordagem integrada assente em soluções transversais temáticas como a solução para melhor utilizar políticas, instrumentos, plataformas e programas europeus existentes para atingir os objetivos estabelecidos.
Compromisso político, alinhamento discursivo, desígnios estratégicos e linhas orientadoras explícitas são um ponto de partida. Mas sabemos que não chegam. Reconhecer e incorporar a natureza sistémica e complexa da transição urbana que se pretende promover é fundamental para informar o desenho de uma nova geração de políticas públicas que mobilize e capacite as redes de atores que a operacionalizam. Políticas urbanas podem atuar como uma plataforma de ligação estratégica entre múltiplas abordagens sectoriais fomentando maior coerência na intervenção pública, e ao mesmo tempo servir de palco mobilizador para um conjunto alargado de atores da sociedade civil e movimentos sociais.
Esta tem sido a missão que mobilizou ao longo das últimas duas décadas iniciativas como, por exemplo, o URBACT, a Urban Development Network, ou as Urban Innovative Actions. Em comum, o ensejo de promover (i) melhores instrumentos, para evitar que a legislação da UE tenha impactos contraditórios e dificuldades acrescidas na implementação a nível local; (ii) melhor financiamento, visando melhorar a comunicação e acessibilidade das oportunidades disponíveis, e (iii) melhor conhecimento, procurando exponenciar a ajustabilidade dos instrumentos às realidades e capacidades locais.
E nós por cá?
Em Portugal, não entendo correto afirmar que haja, ou tenha existido, uma agenda urbana, ou uma política de cidades nacionais per se. Houve sim, ao longo das últimas décadas, um conjunto de iniciativas, em muito influenciadas pela participação de técnicos e decisores em iniciativas de origem europeia, e por sucessivos instrumentos de financiamento comunitário, que procuraram fomentar uma cultura de intervenção integrada de base territorial, e promover soluções inovadoras de governança face a problemas urbanos complexos. Refiram-se, como exemplos, o PROQUAL – Programa Integrado de Qualificação das Áreas Suburbanas da Área Metropolitana de Lisboa, a IBC – Iniciativa Bairros Críticos, ou a abordagem mais sistémica até hoje, o Polis XXI.
É neste contexto de memória estratégica, e de experimentalismo em política pública, que surge em 2020, em plena pandemia, a InC2 – Iniciativa Nacional Cidades Circulares. Promovida pela Direção-Geral do Território do Ministério do Ambiente e Ação Climática de Portugal, e financiada através do Fundo Ambiental, a InC2 traduz, de forma operativa, objetivos inscritos na Agenda para o Território e Programa de Ação 2030 do PNPOT- Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território. Mas não só. Através da promoção de soluções de cooperação urbana em rede e de uma lógica de intervenção integrada, a InC2 operacionaliza objetivos de múltiplos referenciais estratégicos nacionais como, por exemplo, o RNC2050 – Roteiro para a Neutralidade Carbónica, a Nova Geração de Políticas de Habitação, o Plano Nacional para a Coesão Territorial, etc.
Fortemente inspirada no programa URBACT, a InC2 tomou como princípios de ação fundamentais, a capacitação de decisores políticos e corpos técnicos locais em abordagens integradas de desenvolvimento urbano; uma maior participação dos cidadãos, atores urbanos e comunidades locais, e uma maior integração da transição para a economia circular em estratégias e ações de desenvolvimento territorial e urbano. Para tal recorreu-se à Praça das Cidades, uma ação preparatória onde os municípios interessados puderam encontrar potenciais parceiros, afinar estratégias de candidatura e ter um conhecimento detalhado do funcionamento da InC2.
Este é um elemento diferenciador da InC2: associações voluntárias de municípios em candidatura comum, sendo valorizada a diversidade geográfica dos parceiros, quer ao nível de Portugal continental quer insular. Cada candidatura deve focar-se em um dos quatro temas prioritários identificados da InC2: urbanismo e construção; economia urbana para a circularidade; relações urbano-rurais e ciclo urbano da água. Cada tema prioritário pode ser complementado com um ou vários dos seguintes temas transversais: descarbonização; contratação pública; transição digital; equidade e inclusão social.
InC2 = Laboratório Territorial? Terminado o período de candidaturas, há 16 redes a concurso, com mais de 100 municípios envolvidos. Decorre agora a avaliação das candidaturas submetidas.

No anterior post deste blogue, João Ferrão defendeu um regresso das cidades médias ao quadro estratégico do ordenamento territorial. Referiu a sua escala e potencial de organização em rede como uma vantagem na implementação de múltiplas dimensões da atual agenda política de transição para a sustentabilidade (ex. alimentar, ecológica, energética, digital, etc.).
A InC2 corrobora esta ideia (Figura 1). A dinâmica de mobilização testemunhada, os perfis dos municípios participantes e o conteúdo das propostas apresentadas ilustram um salto qualitativo ao nível da construção de visões coletivas de intervenção no território e entendimento das necessárias soluções de governança territorial. Fomentar uma cultura de territorialização em rede das políticas públicas em Portugal depende, em larga medida, deste salto qualitativo.
As cidades médias a que João Ferrão se refere destacam-se neste contexto. Via parcerias com instituições do ensino superior, e processos cumulativos de participação em projetos de investigação nacionais e europeus, iniciativas comunitárias, etc., criam mecanismos de capacitação próprios, e alimentam, mesmo em período de fortes restrições orçamentais, o rejuvenescimento dos seus quadros técnicos. A tradicional dicotomia litoral/ interior não retrata a cartografia da capacitação institucional local em Portugal. O que emerge é um sinal de vitalidade do sistema urbano que o modelo territorial do PNPOT preconizava (Figura 2).

A InC2 é uma iniciativa de política pública de desenho, implementação e financiamento nacionais. É neste sentido um laboratório territorial em que se ensaiam processos que podem transitar para outros objetivos estratégicos. Dizia João Ferrão que a atual crise sanitária pode ser a janela de oportunidade para um regresso das cidades médias. Na mesma medida, pergunto se não poderá a urgência de Ação Climática e Transição para a Sustentabilidade ser a janela de oportunidade para, via iniciativas como a InC2, mobilizarmos finalmente uma Agenda Urbana/ Política de Cidades a nível nacional?
João Morais Mourato é Investigador Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) e consultor da Direção Geral do Território – Ministério do Ambiente e Ação Climática (DGT-MAAC) no contexto da Iniciativa Nacional Cidades Circulares (InC2).
@: joao.mourato@ics.ulisboa.pt