“A Vida por cima d’Água”: antropologia implicada por quem trabalha a pesca em Setúbal 

Por: Joana Sá Couto e Vanessa Iglésias Amorim

Surgido a partir de uma colaboração entre a Câmara Municipal de Setúbal e a Setúbal Pesca Associação da Pesca Artesanal, e inserido na Semana dos Bivalves, o evento “A Vida Por Cima d’Água: Encontro de Pescadores e Mostra de Artes e Ofícios da Pesca”, que aconteceu na Casa da Baía nos dias 4 e 5 de março, em Setúbal, teve como objetivo a valorização da comunidade piscatória setubalense. Para esta iniciativa foi essencial a articulação entre elementos da Setúbal Pesca e os trabalhadores de diferentes departamentos do Município: do Gabinete de Projetos Enogastronómicos, do Centro de Memórias do Museu do Trabalho Michel Giacometti (MTMG) e do Departamento de Comunicação. A pedido da Associação Setúbal Pesca, também nós, enquanto antropólogas e pessoas ligadas afetivamente ao terreno de investigação, lançámo-nos ao desafio de apoiar este evento com o intuito de navegar as narrativas da pesca com a sensibilidade de quem a conhece. Este post tem como objetivo refletir sobre esta colaboração a partir da nossa perspectiva, reconhecendo que uma investigação implicada pode contribuir para a valorização dos trabalhadores da pesca e da própria actividade.


Figura 1. Programa do evento “A Vida por cima d’Água”. Fonte: Câmara Municipal de Setúbal/ Associação Setúbal Pesca.

Para além do papel de intermediárias durante as filmagens que dariam origem ao mini vídeo e documentário Fragmentos de uma vida por cima d’água, ficámos responsáveis pela coordenação e curadoria da exposição “Mostra de Objectos e Artefactos de Pesca”, assim como da moderação da Tertúlia Contar o Mar. A Mostra, em exibição entre 27 de fevereiro e 13 de março na Casa da Baía, partiu de uma questão: Se tivesse de escolher um objeto para nos mostrar o que é a vida da pesca e das suas gentes, o que escolheria? A Mostra não nasceu de uma abordagem expositiva previamente concebida, mas sim tomou forma a partir dos objetos cedidos por pescadores e pescadoras, entralhadores e entralhadoras de redes, antigos calafates e outras pessoas de várias gerações ligadas ao rio Sado e ao mar, diretamente dos seus barcos, das suas casas, dos seus armazéns e cacifos, recolhendo-se a sua história e expressões associadas ao seu uso.

Foi assim possível trazer à tona aquilo que são fragmentos materiais de várias vidas por cima d’água, contribuindo para visibilizar a pesca praticada em Setúbal e para compreender o seu contexto social e laboral. A heterogeneidade de artefactos cedidos foram exibidos em quatro zonas que se imiscuem umas nas outras e cujos títulos nascem de citações dos próprios pescadores: O Barco é uma Casa; É preciso gostar de andar ao mar. E saber; As festas religiosas são de todo o povo: crentes e não crentes; e, por último, Os Pescadores dão nome a tudo. Procurámos expor de forma intuitiva uma cultura material que carrega um rico património imaterial, sendo uma manifestação da dimensão humana, social e cultural da pesca, que continua em constante transformação e adaptação.

A atividade piscatória enfrenta, atualmente, desafios ambientais, económicos, sociais e políticos de diversas escalas, que aumentam a incerteza inerente à atividade e dão força a narrativas de crise sobre a pesca. Porém, ao conversar com trabalhadores do mar, reconhecemos o gosto pela atividade e a profunda complexidade dos conhecimentos necessários não apenas para sobreviver, mas também para ter uma vida digna. Citando um pescador de 87 anos: “Trabalhei muito. Fiz a minha vida e fiz bem aos meus, estou feliz”.

Em Setúbal, é possível ver a presença da atividade piscatória, que se mantém dinâmica e viva, no quotidiano da cidade. Esta pequena Mostra, erguida em tempo recorde, a partir dos objetos que as pessoas quiseram em exposição, conseguiu ser uma peça fundamental num fim de semana de homenagem a quem deu o seu tempo para falar de si, da sua vida e do que as move.


Figura 2: Um vislumbre da Mostra de Objetos e Artefactos da Pesca. Nesta área, intitulada O Barco é uma Casa, pretendemos destacar o barco enquanto uma entidade própria, semelhante a um lar. Ao qual se juntaram instrumentos de trabalho, nomeadamente, artes de pesca, mas também outros objetos que têm lugar a bordo, associados, por exemplo, à confecção de comida. Fonte: as autoras.

Um exemplo de quão colaborativa esta mostra e este evento se propôs ser foi um dos espaços da Mostra: Os pescadores dão nome a tudo. Aqui, junto de poemas de uma pescadora e mariscadora, pedaços de fundo e búzios, nomes de mares e marcas de terra, encontrámos um desafio: as alcunhas dos pescadores. Como expôr alcunhas de forma apelativa, no curto espaço de tempo dado para criar a Mostra? Optou-se por desafiar membros da comunidade que entrassem pela Casa da Baía a escreverem as alcunhas que conhecem. Foi muito recompensador ver, no último dia da exposição, o papel cheio de alcunhas, incluindo de pessoas que perdemos ao longo da jornada de trabalho de campo.


Figura 3. Pequeno vislumbre da zona Os Pescadores dão nome a tudo, onde se optou por criar um momento colaborativo, ao desafiar a escrita de alcunhas de pessoas ligadas à pesca. A primeira fotografia (à esquerda) foi tirada no primeiro dia da exposição, a segunda (à direita) no último dia da exposição. Fonte: as autoras.

No primeiro dia de celebração, após um momento de abertura pelos representantes, incluindo o Presidente da Câmara de Setúbal, André Martins, apresentou-se um pequeno vídeo – Fragmentos de uma vida por cima d’águada autoria do Centro de Memórias do MTMG,com excertos das entrevistas gravadas. Alguns dos entrevistados estavam presentes e sorriam enquanto entravam na Casa da Baía (alguns pela primeira vez), com os seus objectos expostos e imagem refletida, sentindo-se progressivamente mais à vontade naquele espaço, dada a presença de vários elementos da sua comunidade. Após um almoço de caldeirada, seguido de massa do caldo, procedeu-se à Tertúlia Contar o Mar, na qual estiveram presentes elementos do público vindos de fora especialmente para assistir.

As autoras escolheram um formato de cadeiras em roda para que pescadores e pescadoras, novos e menos novos conseguissem olhar-se nos olhos e ouvir-se, partilhando as suas histórias de vida; a importância da família e da comunidade, o gosto pela actividade, e alguns problemas do sector, tais como a falta de mão-de-obra e a necessidade da sua valorização. Vários foram os elementos que partilharam com pormenor o seu primeiro dia de mar, a forma importante de aprender com os mais velhos, observando, imitando, fazendo e refazendo. Colocou-se até uma questão: o bichinho do amor pelo mar, da vontade de andar nesta vida, surge com o tempo ou é inato? A resposta foi: “é hereditário”.


Figura 4. Fotografia tirada após a Tertúlia Contar o Mar, na qual estão pescadores e pescadoras de Setúbal e Faralhão, representantes da Setúbal Pesca e as antropólogas. Fonte: as autoras.

Decidimos terminar este post com uma citação pelo seu significado:

[Está a pensar deixar a pesca?]

Não. Estou a pensar em deixar, mas é deixar [o barco] para os meus filhos!” Conde de Paus, 2023.


Joana Sá Couto é antropóloga, doutoranda no Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Tem vindo a trabalhar em questões relacionadas com o ser humano e a natureza, conhecimento local e ciência transdisciplinar. Atualmente trabalha no contexto das comunidades piscatórias e da sustentabilidade dos oceanos. joana.sacouto@ics.ulisboa.pt

Vanessa Iglésias Amorim é antropóloga, doutorada em Antropologia pelo Iscte-IUL, investigadora no Centro em Rede de Investigação em Antropologia. Atualmente é professora convidada na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal. Trabalha sobre incerteza, reprodução social e sustento em contextos piscatórios e tem vindo a colaborar com várias associações do sector da pesca. Tem também trabalhado em vários projetos no cruzamento da antropologia e teatro, consolidando a sua abordagem de investigação implicada e colaborativa. vanessaiglesiasamorim@gmail.com

Comentar / Leave a Reply