Pegadas Digitais

Por: Ana Delicado e Jussara Rowland

Quando se discute a “pegada digital”, geralmente refere-se ao “rasto” que as nossas atividades online deixam. O que decidimos partilhar (ou que partilham de nós) – as nossas fotos e vídeos, os nossos comentários, os textos que escrevemos para websites, etc. – e a informação que plataformas digitais recolhem com, ou sem, o nosso consentimento – as pesquisas que fazemos, os nossos dados de geolocalização, o nosso historial de navegação, etc. As vantagens associadas a esta pegada são conhecidas. Não só funciona como “cartão-de-visita” ou arquivo digital pessoal, como permite uma maior personalização da nossa experiência na internet, através da seleção algorítmica de conteúdos considerados mais relevantes para o nosso perfil. Mais conhecidos ainda são os riscos que lhes estão associados: problemas de privacidade, publicidade intrusiva, roubo de identidade, fraude, hacking, discriminação, etc.

Mas a pegada digital que queremos discutir hoje é outra. Por muito contestável que o conceito de pegada de carbono seja, sobretudo pela forma como tem sido promovido pelas empresas petrolíferas, não deixa de ser uma ferramenta útil para estimar o volume de emissão de gases com efeitos de estufa que determinado setor, organização ou mesmo pessoa provoca. E é exatamente a pegada de carbono das tecnologias digitais o mote para este post.

As tecnologias digitais têm sido celebradas como um recurso útil para mitigar as alterações climáticas e a depredação de recursos. O teletrabalho evita deslocações pendulares em automóveis poluentes. Uma reunião virtual supre a necessidade de viagens de avião transfronteiriças ou mesmo intercontinentais. Serviços públicos digitalizados agilizam os processos burocráticos, sem idas às Finanças, ao Registo Civil, à Segurança Social, à Câmara Municipal. Contadores inteligentes e outros dispositivos digitais permitem incrementar a eficiência energética. A lista de benefícios parece infindável.

Porém, os custos ambientais das tecnologias digitais tendem a ser negligenciados. Como os investigadores que trabalham na área da sustentabilidade e teoria das práticas frequentemente argumentam, a energia é invisível. Prestamos pouca ou nenhuma atenção a ligar ou desligar um aparelho, a luz da sala ou a rega automática no jardim. Dispositivos como routers, set-up boxes ou intensificadores de sinal wi-fi costumam estar ligados em permanência. Mas a energia que gastamos a usar um computador, carregar um telemóvel ou fazer streaming de um filme não é nada comparada com o gasto de energia necessário para manter a funcionar as infraestruturas que suportam estas práticas: servidores, data centres, redes. Estes dispositivos não só gastam eletricidade em contínuo, como ainda precisam de ser mantidos a uma temperatura baixa constante.

Há diferentes estimativas sobre o volume real da pegada de carbono das tecnologias digitais, que oscilam entre os 1,8% e os 3,9% das emissões globais. Mas o que é inegável é que este volume tem vindo a crescer e, apesar das iniciativas tomadas pelas empresas do setor para aumentar a eficiência energética (como investir em energias renováveis ou localizar os data centres em sítios naturalmente frescos), prevê-se que continue a crescer. Não só é difícil prescindir do conforto e conveniência de ter quase tudo à distância de um click, como todos os dias assistimos ao surgimento de novas aplicações digitais vorazes em energia, como as moedas digitais ou a inteligência artificial e os seus novos chat bots.

Até nós, académicos, contribuímos para o problema. Reuniões virtuais, aulas online, infindáveis trocas de emails, uma montanha crescente de e-books e artigos publicados em revistas eletrónicas, websites de projetos, blogues de grupos de investigação… A isto acresce ainda a pegada carbónica da investigação em si e da mobilidade científica (idas a conferências, reuniões de projetos transnacionais, estadias como investigador ou docente visitante, períodos de formação ou trabalho fora do país de origem). Pode argumentar-se que a transição digital ajuda a compensar algumas dessas emissões de transportes. Mas está plenamente demonstrado como o efeito “rebound” rapidamente converte as poupanças de energia em novos gastos.

É, por isso, de grande interesse o trabalho do Low Carbon Research Methods Group, apresentado por Anne Pasek num seminário do GI SHIFT, em novembro de 2022 (Figura 1). A autora convidou-nos a refletir sobre o impacto ambiental dos métodos que escolhemos, do trabalho de campo que fazemos, dos contactos que estabelecemos com informantes e colegas, dos dados que recolhemos, armazenamos e disponibilizamos, da divulgação de resultados que promovemos. Evidenciou também que estas reflexões podem ajudar a questionar formas adquiridas “de fazer” academia, potenciando, dessa forma, o surgimento de novas ideias e iniciativas.


Figura 1. Cartaz do Seminário do GI SHIFT.

Mas o nosso contributo para este debate pode passar também pelos temas de investigação que escolhemos. No grupo de investigação SHIFT, um dos primeiros exemplos terá sido o projeto “ELECTROTEEN – Rotinas, reflexividade e mudança no consumo de energia associado ao uso dos media eletrónicos pelos adolescentes em tempo de escassez”, coordenado por Ana Horta, e do qual resultou este Policy Brief.

No projeto em curso Engage IoT – Envolvimentos Sociais com a Internet das Coisas (Figura 2), financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (EXPL/SOC-SOC/1375/2021), a questão da sustentabilidade desta gama de tecnologias é também uma das preocupações centrais. Um robot aspirador que limpa a casa quando os humanos não estão, uma lâmpada que se acende através de uma app no telefone, ou persianas que se fecham todos os dias à hora programada, tendem a consumir mais energia do que os convencionais, são mais suscetíveis a avarias e deixam de funcionar de todo quando a empresa fabricante deixa de assegurar a continuidade do serviço. Mas, por outro lado, quando os softwares de automação residencial incluem os sistemas domésticos de geração e armazenamento de energias renováveis (painéis solares, baterias), podem efetivamente tornar a utilização de energia mais eficiente, permitindo, por exemplo, ligar automaticamente a máquina de lavar loiça, a bomba de calor ou o carregador do carro elétrico quando a autogeração de eletricidade é suficiente.


Figura 2. Imagem do projeto Engage IoT criada com recurso a um gerador de arte por Inteligência Artificial.

Em suma, transição ecológica e transição digital não são necessariamente complementares e até podem ser antagónicas, mas, devidamente articuladas, podem contribuir de forma significativa para a construção de um futuro mais sustentável.


Ana Delicado é Investigadora principal do ICS-ULisboa.

Jussara Rowland é investigadora de pós-doutoramento no ICS-ULisboa.

Advertisement

One thought on “Pegadas Digitais

Comentar / Leave a Reply

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s