Por: Inês Gusman
Ainda que quotidianamente lhe possamos dar outros usos, numa perspetiva geográfica, o território é comummente considerado uma porção do espaço à qual se atribui algum tipo de singularidade. Adquire, por isso, diferentes formas e escalas, podendo ter distintas origens, entre elas, política, física, cultural ou histórica. Nos anos 80 do século XX, o geógrafo Robert Sack chamou a atenção para o facto de os territórios surgirem a partir de um conjunto de processos físicos e/ou simbólicos que denominou territorialidade, cujo objetivo é “afetar, influenciar e controlar pessoas, fenómenos e relações” no espaço. Ainda que, tradicionalmente, a forma como as sociedades entendem e interagem com o espaço e com as suas divisões esteja fortemente influenciada pelas práticas dos Estados, a territorialidade não é um fenómeno exclusivamente estatal. As mudanças políticas e tecnológicas das últimas décadas, a intensificação da mundialização das relações sociais e económicas, juntamente com os avanços dos debates académicos sobre o território, vieram evidenciar isso mesmo. Importa, no entanto, compreender que territorialidades são estas e quais os seus principais alcances.
Apesar de os Estados continuarem a ter um papel determinante nas relações socioespaciais, existem novas formas de mobilização subnacional. Especificamente, a integração europeia proporcionou as condições institucionais e financeiras para a emergência de novas territorialidades fora da jurisdição dos Estados. A aposta pela cooperação transfronteiriça, assumida como um dos principais objetivos da Política de Coesão Europeia desde 2007, é a demonstração mais evidente disso mesmo: é possível estruturar territórios que ultrapassam as fronteiras estatais. Atualmente, existem centenas de estruturas transfronteiriças espalhadas pelos vários limites estatais europeus, comummente denominadas euroregiões, que promovem, coordenam e implementam ações conjuntas entre agentes de diferentes países.
Paralelamente, a aposta europeia pela escala regional provocou mudanças (heterogéneas) nas cartografias internas dos diferentes países. Em concreto, a distribuição dos fundos de coesão obriga a que os Estados-membros tenham espaços de intervenção intermédios entre o local e o nacional. O empoderamento político, cultural e económico das regiões é um fenómeno que se verifica em vários contextos nacionais da União Europeia. Apesar destas transformações, várias investigações apontam para o facto de a europeização não ter sido capaz de diluir o poder do Estado na definição do espaço.
O caso de Portugal Continental, pelo facto de ter fronteiras estatais historicamente consolidadas, de ter uma correspondência clara entre Estado e Nação, de carecer de uma escala intermédia de governação e de ter lógicas político-administrativas fortemente centralizadas na sua capital, apresenta-se como um excelente contexto para refletir acerca do alcance das novas territorialidades. Também aqui novos espaços de cooperação transfronteiriça e intermunicipal surgiram, suportados por entidades que se consolidaram no panorama nacional e internacional e que dão corpo a vontades e projetos conjuntos, permitindo estruturar respostas territoriais partilhadas.
No caso da cooperação transfronteiriça, entre territórios portugueses e espanhóis têm surgido estruturas de diferentes naturezas. Atualmente, existem oito Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial (AECT) e mais de 10 entidades transfronteiriças com diferentes enquadramentos institucionais. O dinamismo das relações entre os dois lados da fronteira é suportado, entre outras linhas de financiamento, pelo Programa Operacional de Cooperação Transfronteiriça Interreg Espanha Portugal (POCTEP), criado nos anos 90 e, atualmente, o maior programa de cooperação transfronteiriça da União Europeia. Entre vários projetos de caráter transfronteiriço que se têm desenvolvido ao longo das últimas décadas, encontramos reservas naturais protegidas, partilha de equipamentos, atividades e serviços entre municípios, estruturas de cooperação universitárias, associações de municípios, marcas turísticas conjuntas.
As estruturas transfronteiriças são recorrentemente apontadas como laboratórios vivos da integração europeia, já que permitem corrigir certos desencontros simbólicos e institucionais provocados pela artificialidade das fronteiras estatais. No caso de Portugal e Espanha, isto é especialmente relevante, pois grande parte do século XX esteve marcado por uma divisão fronteiriça rígida e fortemente controlada pelas ditaduras ibéricas. A entrada no projeto europeu dos dois Estados foi rapidamente aproveitada por agentes de ambos os lados da fronteira para estreitar laços com base nas complementaridades culturais, naturais e económicas. No entanto, tal não foi suficiente para ultrapassar a territorialidade estatal. No quotidiano transfronteiriço, continuam a persistir problemas associados à existência de modelos político-administrativos diferentes, falta de investimentos em infraestruturas conjuntas e desajustes burocráticos que prejudicam o quotidiano destas relações.
A gestão do encerramento das fronteiras nacionais como resposta à crise pandémica do COVID-19, em 2020, foi demonstrativa do desencontro que existe entre a territorialidade dos Estados e das comunidades fronteiriças. Perante um encerramento indiscriminado de passagens fronteiriças, milhares de trabalhadores transfronteiriços tiveram de percorrer diariamente centenas de quilómetros para chegar aos poucos pontos de passagem autorizados. As estruturas de cooperação transfronteiriça, como as AECT, assumiram-se como plataformas conjuntas para exercer pressão para que estas medidas fossem revertidas.

Nas geografias internas portuguesas, a europeização levou ao fortalecimento de estruturas que atuam entre o local e o nacional, como as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), as Áreas Metropolitanas (AM) e as Comunidades Intermunicipais (CIM). Além de darem corpo ao mapa das unidades territoriais para fins estatísticos (as NUTS, de nível II e nível III), determinante para a distribuição de fundos comunitários, e assumirem funções na distribuição destes fundos, o Governo central tem vindo a reforçar as suas competências e atribuições. No entanto, estas entidades convivem com outras lógicas regionais associadas a antigas divisões do país, como a distrital, usada na organização de certos serviços periféricos do Estado.
Os desencontros no tempo e no espaço a que as lógicas regionais dos serviços públicos e do ordenamento do território têm estado submetidas dificultam a consolidação de espaços de referência para a definição de estratégias de desenvolvimento regional. Embora a europeização tenha fortalecido certas territorialidades, a legitimidade das entidades que lhes correspondem e o seu potencial enquanto plataformas de mobilização social e económica continua fortemente dependente das decisões e práticas do Estado central.
Inês Gusman é investigadora pós-doutoral do Departamento de Geografia da Universidade de Santiago de Compostela e investigadora visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Grupo SHIFT). Dedica-se ao estudo da relação entre as dinâmicas de cooperação intermunicipais e transfronteiriças, as políticas de ordenamento e as identidades territoriais. ines.gusman@ics.ulisboa.pt