A reinvenção da roda

Por: Ana Delicado

Vivemos tempos sem precedentes. Ou talvez não. Esta não é a primeira pandemia global. Nem a segunda. Temos é a memória curta. Da centenária gripe espanhola à mais recente e ainda por resolver pandemia do VIH-SIDA, passando pela gripe asiática do final dos anos 1950 ou pela cólera dos anos 1970, o mundo vai sendo assolado por microrganismos que se aproveitam da nossa tendência para convivermos em proximidade e de viajarmos pelo globo.

Não faltará material às ciências sociais nas próximas décadas para analisar a cascata de fenómenos sociais que esta pandemia provocou. Das transformações no trabalho às dinâmicas familiares intergeracionais, do lazer ao luto, das fragilidades do tecido económico postas a nu pela crise do turismo à problemática da mobilidade urbana, são incontáveis os trabalhos que se publicarão sobre esta pandemia. Já para nem falar dos múltiplos ângulos da sociologia e antropologia da saúde pelos quais se pode examinar a pandemia.

A mim interessa-me, claro, a questão da ciência. Aí também haverá trabalho para manter ocupadas centenas de académicos dos estudos sociais da ciência. Das colaborações internacionais ao papel da indústria farmacêutica e dos apoios do Estado, da aceleração dos ritmos de publicação (mas também de financiamento) ao aconselhamento científico de políticas públicas, das disputas entre disciplinas científicas ao surgimento de movimento anti-ciência não faltarão tópicos de estudo. Em tempos de ciência pós-normal, em que “os factos são incertos, os valores estão em disputa, as apostas elevadas e as decisões urgentes”, a investigação científica tornar-se um objeto de estudo ainda mais relevante.

Dentro do campo ainda mais específico da comunicação de ciência, também há muito para observar. Como é que este novo risco aparece nos media? Como é que o vírus é descoberto, descrito e representado? Quem aparece a dar a cara pela ciência? E, mais importante ainda, como é que as medidas de saúde pública são transmitidas de forma a terem impacto nos comportamentos individuais?

Figura 1: Cartaz da OMS sobre a COVID-19. Fonte: Organização Mundial de Saúde, Coronavirus disease (COVID-19) advice for the public: Mythbusters. Licença Creative Commons

As outras pandemias

E é aqui que voltamos ao princípio. Vivemos tempos sem precedentes. Ou talvez não. Há uma década atrás a pandemia de gripe A matou entre 250 mil e meio milhão de pessoas no mundo, menos que a média anual da gripe sazonal. Mas a Organização Mundical de Saúde (OMS)  e os governos nacionais mobilizaram-se fortemente para restringir o seu contágio, desenvolveram medidas de saúde pública, comunicaram intensivamente essas medidas. Apesar de os impactos terem sido muito menores que os temidos e terem sido feitas críticas à “dramatização” do risco, esta pandemia forneceu uma boa oportunidade para avaliar o que funciona e o que não funciona em termos de comunicação. E há estudos sobre isso, sim.

Ou outro melhor exemplo, a SIDA. Se há pandemia que foi intensivamente estudada é a causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana, em particular ao nível da comunicação de saúde pública. Até por uma razão muito simples. A entrar na quinta década desta pandemia, ainda não há vacina que confira imunidade à população. A única forma de evitar o contágio é pela prevenção. A SIDA deixou de matar muita gente porque foram desenvolvidos tratamentos eficazes. Mas ainda assim morre anualmente mais de meio milhão de pessoas com doenças associadas à SIDA. Foram décadas de tentativa e erro na comunicação do risco e das medidas de prevenção, mas foi em parte este trabalho que conseguiu baixar a taxa de infeções por via sexual, pelo uso de drogas intravenosas e pela transmissão mãe-filho.

A comunicação de ciência

Por isso faz-me confusão que a cada nova pandemia se tenha de inventar a roda. Que haja tanto menosprezo pelo conhecimento acumulado, que se esqueçam as lições aprendidas, que se deixe na gaveta o trabalho de centenas de pessoas, muito dele pago com fundos públicos, cujo ofício é exatamente dedicar-se a este tema. E estou a falar de dois tipos de pessoas. As que estudam comunicação de ciência e as que fazem comunicação de ciência, em especial as que se especializam em comunicação de saúde. É possível produzir conhecimento científico sobre o fenómeno da comunicação de ciência e aferir a sua eficácia. E é possível produzir comunicação de ciência e deter o conhecimento prático, experiencial, direto; de ver o que funciona e o que não funciona, dos formatos mais adequados aos diferentes tipos de público, da linguagem mais compreensível.

Dito isto, eu sou parte interessada, faço parte do primeiro grupo, estou há dois anos a trabalhar num projeto europeu, o CONCISE, sobre o papel da comunicação de ciência nas perceções e crenças dos cidadãos europeus. Mas não tenho nenhum conhecimento especializado em saúde, não esperava que me ouvissem a mim ou que fosse consultada para nada, porque eu, sim, acredito no valor do aconselhamento científico proporcionado por especialistas. Mas vejo a comunidade de comunicadores de ciência em Portugal indignada, e com razão, com o desdém a que foi votada no momento em que era mais necessária. Mas não é isso sintoma de um problema mais vasto sobre a desvalorização do aconselhamento científico de políticas nesta pandemia?

Figura 2: Vídeo do governo alemão sobre a pandemia COVID, Fonte: YouTube

Não quero acabar numa nota negativa. Já me basta a reputação (merecida) de pessimista militante. Nesta pandemia vi também o que de melhor se pode fazer em termos de comunicação de ciência. Os extraordinários artigos no The Atlantic do jornalista de ciência Ed Young e da socióloga da ciência Zeynp Tufecki. A claríssima infografia dinâmica do El País sobre o risco de transmissão do SARS-COV-2 em lugares fechados. O cativante resumo para divulgação de um artigo científico sobre diferenças de género na COVID 19 no website Working Knowledge da Harvard Business School. O irónico vídeo do governo alemão para convencer os mais jovens a ficar em casa e reduzir as taxas de contágio. A comunicação de ciência, quando é boa, é mesmo muito boa.


Ana Delicado é investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Trabalha em estudos sociais da ciência. ana.delicado@ics.ulisboa.pt

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