Perspetivas Rurais sobre o Futuro dos Sistemas Alimentares

Por Kaya Schwemmlein

Um estudo recente da Rede Global Contra Crises Alimentares refere que quase 135 milhões de pessoas em 55 países ou territórios viviam “em crise ou pior” em 2019. As condições meteorológicas extremas e a pandemia de Covid-19 estão entre os principais fatores da insegurança alimentar global em 2020, piorando o estado de crise, risco e conflito.

Os indivíduos economicamente mais vulneráveis e suscetíveis à situação de insegurança alimentar são, na sua maioria, habitantes de zonas rurais que dependem da remuneração da produção agrícola e, neste contexto, a pandemia global de Covid-19, não só veio expor várias fragilidades do sistema social, político e económico vigente, mas também sublinhou diversas desigualdades e injustiças estruturais sofridas por indivíduos que vivem e trabalham no campo. Veja-se por exemplo que, devido à pandemia, os pequenos produtores deixaram de ter acesso a mercados de venda direta, para muitos a única fonte de rendimento; ou o caso dos trabalhadores rurais migrantes, que acusam a exploração e indiferença face à sua situação, bem como a salvaguarda dos seus direitos fundamentais.

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Venda de horticultura de pequena escala, Alentejo, Portugal. Fonte: Arquivo da autora

O paradoxo que tem vindo a ser realçado globalmente caracteriza-se, em traços gerais, pelo mesmo fenómeno: a agricultura familiar e os agricultores de subsistência/de pequena-escala (menos de 2 hectares) produzem, no seu conjunto, 80% dos alimentos consumidos globalmente (FAO 2019), mas estão a priori mais vulneráveis devido à complexidade de fenómenos sociais e estruturais, sendo que frequentemente não conseguem atingir a segurança alimentar e cobrir a gama de nutrição necessária a uma vida saudável.

Para a análise dos discursos que emanam do campo, procedeu-se a um estudo documental baseado em fontes provenientes de diversas Organizações Não Governamentais (ONGs) que visam representar o campesinato (todos os camponeses, agricultores de pequena e média escala, os sem-terra, indígenas e migrantes).

A “La Vía Campesina” (LVC) é um movimento social que reúne globalmente 200 milhões de camponeses, e defende a agricultura sustentável de pequena escala e uma reforma agrária baseada na mobilização social, bem como na denúncia das falhas e limites do enquadramento dominante (agricultura intensiva). A LVC tem vindo a identificar a situação geral dos camponeses a nível mundial. Veja-se seguidamente:

  • Caraíbas: Haiti enfrenta grande insegurança e inflação e o sistema de saúde está quase em colapso. Falta de infraestrutura e serviços básicos (como água e saneamento). Honduras está a fornecer educação em plantas medicinais tradicionais, pois o sistema de saúde colapsou devido a escândalos de corrupção, piorando a situação do Covid-19. E Cuba demonstrou ser solidária na luta contra o Covid-19, enviando profissionais de saúde para outros países, e a “Asociación Nacional de Agricultores Pequeños” (ANAP) está a trabalhar em conjunto com médicos para criar campos de saúde como ferramenta de educação;
  • Na América Central apesar das restrições às viagens, os produtores de alimentos podem circular, mas enfrentam imensos desafios no acesso aos mercados locais. Mais militarização e conflitos, o que tem levado a mais crime e criminalização;
  • América do Norte: as populações mais vulneráveis (trabalhadores migrantes, camponeses, prisioneiros, etc.) são os mais afetados, com perda de remuneração e insegurança alimentar;
  • Ásia: Índia – milhões de trabalhadores migrantes que viajaram de cidades cheias para aldeias rurais não sabem se poderão voltar ao trabalho nas cidades. Filipinas – governo mais autoritário, autorizando disparar contra os que não respeitam as medidas de quarentena;
  • Europa: Consequências diversas entre os países. Itália, França e Espanha são os mais afetados. Todos os países estiveram em confinamento. O sistema de saúde pública atingiu os seus limites. Países menos democráticos, como a Ucrânia, que visa promover uma reforma agrária negando o acesso dos camponeses à terra;
  • Zonas rurais na África: prossegue-se com as tarefas diárias (recolha de água, levar animais para pastar, cuidar do campo, etc.), respeitando o distanciamento social entre as propriedades rurais. Extremas condições meteorológicas – seca.
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Mercado informal em Luena (Moxico, Angola). Foto gentilmente cedida por Carla Serrão.

O Movimento sem Terra (MST), que está organizado em 24 estados nas cinco regiões do Brasil e conta com cerca de 350 mil famílias, considera essencial “(…) garantir a posse e uso de todas as comunidades originárias, dos povos indígenas, ribeirinhos, seringueiros, geraizeiros e quilombolas (…)”. De acordo com a perspetiva do MST, a proteção das pessoas que trabalham no campo deverá ser vista como área prioritária no planeamento de políticas públicas, pois como refere Nívia Silva (MST) “(…) existe uma expropriação em absoluto dos recursos naturais, terra, biodiversidade e água por parte das empresas multinacionais (…)” (in “Peoples Assembly”, Haia. Dados recolhidos pela autora em 2016).

Fernando Cabaleiro, um advogado pertencente à “Naturaleza de Derechos”, Argentina, observa: “no nosso país a agroindústria mudou o modo de produção. Em vez de produzirmos alimentos estamos a produzir bens comerciais e tal tem graves consequências para a saúde. Tal, por sua vez, causa reações negativas em cadeia e evidencia-se uma deterioração das condições socioeconómicas. A concentração da terra e o despejo de indígenas tem consequências visíveis (…)” (In Peoples Assembly, Haia. Dados recolhidos pela autora em 2016).

Assim é frisada uma perspetiva de luta pelos recursos naturais, contra o monopólio de posse sobre as terras, pois, como refere a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o top 1% das propriedades agrícolas acumula 70% das terras agrícolas do mundo e os agricultores de pequena escala (menos de 2 ha) representam 84%, operando em apenas 12% de todas as terras agrícolas.

Esquerda: Camponesa com alimentação para o gado, Índia.
Direita: Venda de palha, Alentejo, Portugal.
Fonte: Arquivo da autora

A atual pandemia tem, então, vindo a evidenciar diversas lacunas, paradoxos e fragilidades que subsistem ao longo da cadeia de fornecimento alimentar: o produtor necessita de produzir alimentos a preços “competitivos”. No entanto, existe falta de mão-de-obra agrícola e a que existe pertence principalmente aos “grupos de risco para o COVID-19”, pois a maioria dos agricultores pertence ao grupo etário de 60 ou mais anos (IFOAM, “Digital Forum: Food without farmers”. Dados recolhidos pela autora a 23/04/2020; FAO, 2019).

A marginalização dos camponeses já foi reconhecida pelas Nações Unidas em Dezembro de 2018, quando a Assembleia Geral adotou a “Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais”. Esta declaração aborda o direito à terra, às sementes e à biodiversidade, afirmando o direito das pessoas a determinar os seus sistemas alimentares e agrícolas, bem como o direito de produzir e consumir alimentos saudáveis ​​e culturalmente adequados (Soberania Alimentar). A declaração pretende sublinhar que os camponeses e outras pessoas que vivem em áreas rurais “desempenham um papel fundamental na preservação da nossa cultura, meio ambiente, meios de subsistência e tradições, e não devem ser deixados para trás enquanto implementamos a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”.

Torna-se agora clara, talvez mais do que nunca, a necessidade de redefinir modos de produção e consumo, em termos nacionais e internacionais. Por um lado, é de extrema urgência a reestruturação dos sistemas agrícolas para um modelo economicamente, socialmente e ambientalmente mais sustentável, de modo a deixar a natureza auto-organizar-se, através de técnicas e tecnologias não invasivas.

Por outro lado, como referem as ONGs, os camponeses são essenciais à produção de alimentos, mas necessitam de condições dignas e seguras durante e após a crise sanitária. Em termos de funcionamento social, a resiliência necessária poderá vir da efetivação das redes de proximidade, locais e/ou comunitárias, criando maior apoio aos produtores de pequena e média escala.

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Trabalhadores rurais, Índia. Fonte: Arquivo da autora

Assim como afirmam Marco Springmann e colegas num artigo recente da Nature, a política requer uma combinação sinérgica de medidas de adaptação e mitigação. É necessário mais educação em sustentabilidade e urge igualmente entender quais são os conflitos locais e quais as convergências entre setores que possam permitir aliviar a pressão sobre o ambiente e a sociedade, adaptando uma perspetiva holística, baseada na proteção dos direitos humanos. É necessário destacar que os agricultores são um elo essencial na manutenção do abastecimento alimentar, ao criarem espaços de convergência e partilha de informação, como por exemplo espaços participativos para a governança adaptativa em sistemas alimentares sustentáveis.

A perspetiva campesina sobre o desenvolvimento sustentável e o futuro dos sistemas alimentares pressupõe, portanto, entre outros, os seguintes elementos:

  • Aliança Campo/Cidade – promoção de um tecido forte e resiliente em favor dos direitos humanos fundamentais, incluindo direitos sociais e ambientais;
  • Produtores/Consumidores – promoção de mercados de proximidade contra a especulação; encontrar outros sistemas baseados na justiça social e económica;
  • Sectores vulneráveis – respeito pelos direitos das populações mais vulneráveis (LVC)

Em conclusão, este post partiu do pressuposto de que sem a consideração da perspetiva dos camponeses existem diversas barreiras à efetivação do desenvolvimento sustentável em todas as dimensões (sociais, económicas e ambiental).

A perspetiva utilizada foi a pós-colonial, portanto, “pós-vitimológica”, e como tal, considerou-se importante analisar as possibilidades de criação de resiliência por parte dos camponeses e outras pessoas que trabalham em zonas rurais. Estes indivíduos foram aqui expostos como tendo uma capacidade de inovação, adaptação e mitigação às alterações climáticas que se deverá ter em conta no desenho de futuras políticas públicas.

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Camponês com logo da La Vía Campesina, Portugal. Fonte: Arquivo da autora

Kaya Schwemmlein é doutoranda no ICS-ULisboa, no Programa Doutoral de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Trabalha atualmente sobre sistemas alimentares sustentáveis e desenvolvimento socio-ecológico na perspetiva do nexus água-energia-alimentação. kaya.schwemmlein@ics.ulisboa.pt

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