Por Roberto Falanga
Impreparação?
Há pouco menos de três meses o mundo como o conhecíamos mudou. A Organização Mundial da Saúde declarou a pandemia da SARS-CoV-2 a 11 de março 2020 e, em seguida, muitos governos centrais declararam medidas de contenção que passaram, em muitos casos, por um longo período de isolamento profilático seguido, como no caso de Portugal, por medidas de desconfinamento gradual e regulado. Há, porém, segundo confirmam virologistas, e conforme o anúncio feito pelo diretor da Organização Mundial da Saúde na Europa Hans Kluge, a elevada probabilidade de este coronavírus ter chegado para ficar. Ou ainda a eventualidade de este ser o primeiro de outros vírus que resultam da ação do ser humano nos ecossistemas naturais, incluindo através da aceleração da produção industrial, da agricultura intensiva, e da desflorestação em massa.
Esta pandemia chegou inesperadamente para muitos, mas não para todos. Já tínhamos sido alertados para os riscos do aparecimento de epidemias difusas com o surgimento da SARS em 2003 (levando a China e o Canadá a uma quarentena forçada), do Ébola em 2014 (com a quarentena forçada de alguns países da África do Leste), e ainda, mais recentemente, da gripe aviária. Perante tais riscos, os governos foram solicitados a adotar medidas preventivas através da acumulação de fármacos antivirais e dispositivos de proteção. Em 2009, o surto de uma variação da H1N1, mais vulgarmente chamada de gripe A, fez temer o pior. A mobilização internacional ajudou na redução dos riscos de contágio, porém, por efeito oposto, levou à desacreditação generalizada das medidas de prevenção. A crença de muitos de que essas medidas teriam sido desnecessárias, ou até o resultado de uma conspiração das indústrias farmacêuticas, fez baixar os níveis de alarme internacional. Com a chegada da crise financeira, por essa mesma altura, os planos de prevenção passaram para segundo plano em muitos países, ou não chegaram a ser atualizados.
A negação como estratégia política
As ciências da saúde, assim como as ciências do ambiente e as ciências sociais, têm vindo a emitir sinais de alarme neste âmbito, que, no entanto, têm passado despercebidos. Ao caos gerado na distribuição de equipamentos para os profissionais de saúde, assim como na sua disponibilização à população em geral, acrescentou-se uma variedade de declarações contraditórias relativa à propagação do contágio, e até mesmo chefes de governo a negarem a existência deste coronavírus.
A negação foi, e nalguns casos continua a ser, um mecanismo poderoso de estratégia política. Primeiro foi a China, que ao não proporcionar informações cruciais sobre a origem do vírus, a sua difusão e os riscos para a saúde pública, levantou muitas questões que ficaram por responder. Posteriormente outros líderes mundiais adotaram estratégias políticas semelhantes. Foi o caso do Reino Unido, com o Primeiro Ministro Boris Johnson a negar, num primeiro momento, qualquer medida de precaução para a contenção do vírus, referindo-se à teoria do contágio em massa como possível solução. Os Estados Unidos com o Presidente Donald Trump também negaram durante muito tempo, demasiado tempo aliás, o impacto deste vírus na população, adotando de seguida medidas de contenção ao estilo “America first”, provavelmente com vista às eleições presidenciais que se aproximam. Por fim o Brasil, com o Presidente Jair Bolsonaro a equiparar o COVID19 a uma “gripezinha” que apenas pode afetar a saúde dos mais idosos, como se esta fosse por si só uma condição aceitável.
A negação da seriedade desta pandemia reflete claramente uma ideologia fundada no crescimento económico que acaba por se sobrepor ao cuidado da vida humana. Ou melhor, de algumas vidas humanas, porque vale a pena hoje, mais do que nunca, reconhecer a disparidade das condições materiais que têm feito tamanha diferença no combate ao contágio.
A socialização da negação
Nesta pandemia do COVID-19, a tendência para negar não foi apenas uma tentação das autoridades governamentais, mas também das pessoas que em muitos casos resistiram à aceitação de um evento tão disruptivo. A negação chegou a abranger comunidades inteiras, dando origem a um conjunto diversificado de reações e rituais. São exemplo, as músicas e as danças nos terraços italianos, a explosão de aulas virtuais de cozinha e yoga, a repetição compulsiva de motes e hashtags – “vai ficar tudo bem”; “fique em casa”; etc.O professor Steven Taylor da Universidade da British Columbia assinala como este “otimismo ilusório” serviu principalmente para nos convencermos do quão fortes somos, negando assim os riscos de contágio. Como refere a neurocientista e psiquiatra Jud Brewer, há pessoas que, por não conseguirem exercer algum controle sobre esta situação, negam-na e desafiam as disposições predispostas para a contenção do contágio.

Existem ainda outras facetas da negação, como a crença de que esta seja a altura mais adequada para sermos mais produtivos, mito bem presente para quem trabalha na academia, mas não só. O número crescente de testemunhas a favor do teletrabalho deixa presumir que esta prática, tal como o coronavírus, chegou para ficar. O mito da produtividade, para além de abrir asas a novas formas de exploração laboral, acaba por ter efeitos nefastos para a saúde mental, como indicado por Vaile Wright, diretor da Clinical Research and Quality da American Psychological Association. Há, finalmente, os que se improvisaram futurólogos do “pós-covid”, pessoas e entidades empenhadas em criar uma panóplia aparentemente infinita de cenários positivos e negativos sobre aquilo que nos espera. Esta fuga do presente, já por si só incerto, deixa assim espaço para construir imaginários ainda mais incertos sem que se discuta como resolver os problemas atuais.
Porque negamos?
Do ponto de vista psicológico, a negação é um mecanismo de defesa que adotamos para resistir à angustia gerada por uma situação inesperada. Enquanto tal, perante a impossibilidade de exercer algum controle sobre a situação em curso, a negação pode ter funções de adaptação. A revolução das nossas rotinas diárias, o distanciamento social e as demais circunstâncias desencadeadas pela pandemia alimentam um verdadeiro trauma coletivo. A forma como incorporamos e damos significado ao trauma, a nível individual e social, dependerá de uma ampla gama de fatores, e dar-nos-á informações úteis sobre os passos a seguir nesta nova condição humana.
A negação pode perdurar, mudando de forma, e prejudicar a evolução para fases sucessivas de aceitação e capacidade de dar sentido às coisas. Quando isto acontece, a negação mantém-nos num estado regressivo perante a realidade, baixando, por exemplo, o nosso nível de alerta. É o caso das pessoas que estão a convencer-se injustificadamente de que o pior já passou e que, acabam por gerar um desfasamento entre o fim “médico” e efetivo da pandemia, e o fim “social”, ou percebido pelas pessoas.
Há ainda casos que não podem passar à margem de uma reflexão mais apurada do ponto de vista político e social. É o caso de quem vivenciou situações particularmente desesperadoras nestas últimas semanas, e que têm vindo a causar um sentimento de impotência e perda de esperança. A negação, nestes casos, pode tornar-se o último refúgio contra a depressão ou ser, se prolongada, a sua porta de entrada.
Um estudo publicado na revista Lancet confirma ainda que pessoas em quarentena forçada podem desenvolver sintomas de depressão juntamente a outros, tais como ansiedade, insónia, irritabilidade, exaustão e distúrbios de stress pós-traumático. Conforme assinalado pelo professor e psicólogo clinico Andrew Salomon, o aumento exponencial de distúrbios depressivos na nossa sociedade é um facto sem precedentes. E dados recentes indicam que, a nível mundial, a procura de fármacos antidepressivos, ansiolíticos e contra a insónia tem vindo a disparar.

Para um plano de saúde mental em Portugal
Negar os impactos da pandemia, ou a pandemia em si, pode ter funções adaptativas num primeiro momento, mas pode acabar por desajustar a nossa perceção da realidade a longo prazo. Juntamente à necessidade de pôr em prática medidas de mitigação aos problemas de natureza financeira (especialmente a quem perdeu o trabalho ou teve o seu salário reduzido de forma abrupta) e social (com quem ficou marginalizado, sem casa, ou ainda sofreu o estigma do contágio), é oportuno pensarmos, o quanto antes, num plano de proteção e promoção da saúde mental. Se a Organização Mundial da Saúde reconheceu desde logo os efeitos negativos da pandemia na saúde mental, só mais recentemente é que as Nações Unidas deram o devido destaque ao tema, seguidas por outras organizações à escala global, e ganhando algum tempo de antena também em Portugal. Neste sentido, é de particular importância que este debate seja público, num país que se prefigura como um dos maiores consumidores de antidepressivos na Europa e no mundo, e onde tem ocorrido um aumento considerável na compra de ansiolíticos nos últimos anos.
Se os governos continuarem a negar a saúde mental como assunto de interesse público, as consequências poderão ser dramáticas. Quem decide não ver os riscos para a saúde mental associados a esta pandemia, também decide ser cúmplice do agravamento de situações de risco depressivo ou suicidário. Chegou o momento de adicionar ao debate sobre o reforço do sistema de saúde uma reflexão séria e fundamentada sobre o acesso aos cuidados de saúde mental e à sua distribuição territorial. E chegou a hora de ver como as nossas cidades saberão reprogramar as suas agendas de intervenção pública, pondo a saúde física e mental em destaque na agenda de governo.
Roberto Falanga é investigador de Pós-Doutoramento no ICS-ULisboa. É membro do Grupo de Investigação de Ambiente, Território e Sociedade e desenvolve a sua investigação/ação em torno dos processos de participação da sociedade civil nas decisões públicas.
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