O Pirarucu: o Rei dos Rios Amazónicos

Por Fronika de Wit

Este post é sobre um peixe. Mas não sobre qualquer peixe. Como nesta época de Covid-19 é difícil viajar, vou levar-vos numa viagem até à Amazónia, o habitat do maior peixe de escamas do mundo: o Pirarucu. Durante o meu trabalho de campo em Ucayali-Peru descobri a importância deste peixe. O pirarucu – ou “el paiche” como é conhecido na língua espanhola – é muito mais do que um mero peixe; é um componente vital da política de baixo carbono e do combate às alterações climáticas. Neste post, relato o que aprendi sobre o pirarucu e faço uma análise crítica do potencial e da ameaça do seu comércio para o desenvolvimento justo da região amazónica.

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Trabalhadores na aquicultura mostram o peixe de escamas maior do mundo, o pirarucu. Fonte: arquivo pessoal da autora

Para a minha investigação doutoral passei 3 meses em Ucayali, um dos cinco departamentos que compõem a selva, a amazónia peruana. A maioria dos estrangeiros que visita Ucayali tem um propósito diferente do meu. Ucayali é conhecido pela Ayahuasca – uma bebida alucinógena que faz parte da medicina tradicional do povo indígena Shipibo-Conibo, entre outros. Para a minha investigação sobre a governança climática na Amazónia desloquei-me a Ucayali a fim de realizar entrevistas com atores chaves e sentir as dinâmicas regionais.

Embora o planeamento seja de grande importância, para mim a parte mais importante de fazer trabalho de campo são as coisas que não planeamos. Acabada de chegar a Pucallpa, capital de Ucayali, durante uma entrevista com representantes do governo regional, recebo um convite para um festival: o Festupai. Explicam-me que o Festupai é um festival turístico do pirarucu que tem como objetivo promover as atividades económicas de criação e produção deste peixe. Já é a terceira vez que o governo, em parceria com institutos de investigação e empresas de pesca, realiza o festival, que inclui workshops e palestras, culminando na Rota Turística do Pirarucu.

Festupai: um festival para promover as atividades económicas de criação e produção do Pirarucu. Fonte: arquivo pessoal da autora

Cientificamente conhecido como Arapaima Gigas, o Pirarucu está dentro das espécies de peixes mais consumidas e comercializadas na Amazónia. De acordo com os Amazonenses, a sua carne é muito agradável, quase sem espinhas, e melhor que o bacalhau – não sei se os leitores portugueses deste post vão concordar com isso. Podendo chegar até 3 metros de comprimento e 200kg de peso, o pirarucu faz parte de muitas grandes histórias de pescadores da Amazónia. Capturar um pirarucu não representa apenas um benefício económico e algo para comer, mas também um sinal de prestígio e status como vencedor ou dominador de um peixe gigante.

Contudo, o pirarucu é uma espécie ameaçada/em vias de extinção. Com a introdução da pesca semicomercial, a espécie foi vítima da sobrepesca. Isto, aliado à contaminação da água por petróleo e mineração e à desflorestação das margens dos rios, causou o seu quase desaparecimento dos rios e lagos amazónicos. Por isso, o peixe está listado no anexo II da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies de Fauna e Flora Selvagem Ameaçadas de Extinção (CITES). Na Amazónia Brasileira, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) criou em 2004 uma Instrução Normativa que regulamenta a pesca do pirarucu: só é possível em alguns meses do ano. Na Amazónia Peruana, o governo tem promovido planos de gestão da pesca em áreas naturais e a sua criação na aquicultura.

Num sábado em setembro de 2018 saímos muito cedo de autocarro do centro de Pucallpa para começar a rota turística do Pirarucu. A primeira paragem é o CITE pesquero Amazónico, um centro de inovação produtiva e transferência de tecnologia de pesca. No CITE descubro que, fora a sua carne, o peixe gigante tem muito mais para oferecer. As escamas do pirarucu, ao contrário de outras espécies de peixe, são tão grossas como um grão de arroz, o que serve para impedir a penetração de dentadas de piranha. Por causa desta grossura, podem ser usadas em peças de artesanato. A sua pele representa uns 12% do seu peso total e, curtida e convertida em couro, pode ser usada para fazer malas, sapatos, carteiras, entre outros. Até pirarucu no azeite em lata está a ser estudado como uma opção – quem sabe um concorrente futuro para as famosas sardinhas em lata portuguesas?

Criação de novos produtos: pirarucu em lata e couro de pirarucu. Fonte: arquivo pessoal da autora

A segunda paragem do nosso passeio é o Instituto de Investigação da Amazónia Peruana – IIAP. O IIAP tem um programa de investigação focado nos recursos hídricos da região e no seu terreno tem um laboratório e vários lagos artificiais onde se faz investigação sobre as melhores condições para a reprodução e a conservação do pirarucu. Um dos investigadores do instituto explica a grande importância da investigação para “o resgate do rei para os rios amazónicos”. Continuamos a viagem e vamos da investigação para o comércio. A terceira paragem na rota é a Perú Aquaculture Group, uma empresa de aquicultura que cria pirarucu para o mercado nacional e internacional e oferece emprego à população local. O diretor da empresa fala sobre a alta demanda de pirarucu no mercado internacional e manda os empregados mostrar um dos seus pirarucus grandes para um momento de fotos.

Esquerda: investigação sobre as melhores condições para a criação do pirarucu no IIAP. Direita: Peru Aquaculture Group, a maior empresa peruana de comércio de pirarucu. Fonte: arquivo pessoal da autora

Terminamos a rota no Instituto Veterinário de Investigaciones Tropicales y de Altura – IVITA, onde somos presenteados com uma pequena feira gastronómica. Só com produtos feitos com pirarucu, é claro. Representantes do governo regional apresentam a sua visão de um desenvolvimento rural. A ideia é criar um modelo de desenvolvimento diferente: Desenvolvimento Rural de Baixas Emissões (DRBE). O modelo combina a produção e a conservação. O eixo de produção inclui o aumento do rendimento da produção de aquicultura para 6 toneladas.

Por um lado, o modelo de DRBE enquadra-se parcialmente na necessidade de uma Quarta Revolução Industrial para a Amazónia, proposta pelo cientista climático Carlos Nobre. Neste artigo, Nobre explica que a Amazónia sempre conheceu dois modelos de desenvolvimento: 1) a conservação da natureza em áreas protegidas; e 2) a desflorestação para servir o desenvolvimento económico da região. De acordo com o cientista, a Amazónia na verdade precisa de um terceiro modelo de desenvolvimento; um desenvolvimento que usa a inovação e alta tecnologia para a criação de uma economia verde baseada na natureza. Com a sua iniciativa Amazonia Third Way, ele quer mostrar que só com uma transformação social e tecnológica disruptiva entraremos no caminho de uma Amazónia sustentável.

Por outro lado, o novo modelo de Ucayali, com o foco na aquicultura, pode ser uma fonte de conflitos locais. Durante as minhas entrevistas com membros das comunidades senti que para muitos deles a aquicultura não é a solução. Como a aquicultura é realizada nas grandes fazendas de peixe – os chamados fish farms – na prática os povos tradicionais da Amazónia não ganham nada com isso. Além disso, o seu conhecimento valioso sobre a pesca não está a ser aproveitado e os significados e práticas conectados à pesca local do pirarucu serão perdidos. Por todas essas razões, é importante dar primazia à gestão sustentável do peixe dentro das comunidades e aos direitos dos povos tradicionais. Recomendo o entrelaçamento do conhecimento local, científico e politico e a cocriação de uma pesca sustentável em todos os sentidos. Só assim o rei dos rios volta para o seu reino.


Fronika de Wit é doutoranda no ICS-ULisboa, no Programa Doutoral de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. 

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