Pandemia e inquietação nas ciências sociais: Uma reflexão do Urban Transitions Hub, no Instituto de Ciências Sociais

Por Urban Transitions Hub

Os membros do Urban Transitions Hub pretendem contribuir para o debate sobre o que significa, e o que pode representar a médio prazo, ser um/a académico/a nas ciências sociais face à pandemia que enfrentamos nos dias de hoje. Este texto apresenta-se como um exercício contínuo de autorreflexão em tempos de Covid-19, o qual não pretende esgotar as nossas inquietações, mas sim começar a dar-lhes voz.

(NOVA) CRISE

Aparentemente, parece que estamos perante uma tempestade perfeita. Uma tempestade que gera inquietação, mas também sentimentos de confusão e luta. Para muitos/as de nós, esta crise representa uma aceleração de padrões sociais já existentes, assim como de tendências que são críticas há já muito tempo. Problemas e contradições das nossas sociedades têm vindo a acumular-se nas últimas décadas, e a pandemia parece oferecer-lhes um novo e dramático desenlace ao mesmo tempo que novos “monstros em ascensão”, como alguns de nós têm vindo a chamar-lhes, parecem rastejar no horizonte: as tecno-distopias, as repercussões autoritárias, a evidente desigualdade do sofrimento.

(SEM) SENTIDO

Poderemos estar perante uma espécie de dissonância cognitiva? Sentimos tanto a proximidade como a distância social; a conexão digital e a separação física; a afirmação e a negação de antigos valores; a fluidez e as ruturas de processos passados e futuros; o impacto de micro e macropolíticas; o confronto entre mentes fortes e corpos frágeis; o desejo de segurança (excessivamente assumido enquanto controlo de cima para baixo) e de liberdade individual (a qual se identifica, opostamente, com um tipo de atuação de baixo para cima). Talvez ainda mais gritante seja o sentimento de confusão e de revolta quando o nosso trabalho e a nossa lista de tarefas diárias parece estar demasiado distante de – ou até impedir – o tempo necessário para uma reflexão profunda sobre o aqui e agora da crise.

Descobrimos que todos/as lidamos com estas questões de maneiras diferentes e que as reações dependem não só do nosso contexto de trabalho, como das diversas condições de vida em que cada um se encontra. As reações variam bastante se os/as nossos/as familiares e amigos/as se encontram saudáveis, se estamos sós ou acompanhados/as, se temos crianças dependentes do tempo e da atenção que podemos dispensar-lhes. Importa ainda se nos encontramos em situação de precariedade laboral que marcam uma grande diversidade, mesmo entre os membros do UTH.

Perante esta pandemia, deparamo-nos com a recorrência difusa a mecanismos de negação, tais como o pensamento obsessivo sobre o futuro, e ao consumo bulímico de notícias nos meios de imprensa e nas redes sociais. Em outros casos, há quem se refugia no seu oposto, e no desejo de silenciar uma cacofonia de opiniões e o excesso de “ruído” que se associa. E, de facto, alguns/mas de nós decidiram deixar de acompanhar as notícias, uma vez que estas acabam por (re)produzir o pânico que já sentimos e tentamos manter-nos informados através de meios alternativos.

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Cartazes espalhados por Lisboa. Fonte: UTH

Quem de nós se debruçou a fundo sobre a crise financeira de 2008 sente-se perseguido pelas suas consequências e pela consciência de como o que vivemos agora se situa num longo processo assente num modelo neoliberal insustentável ou, melhor dizendo, em desigualdades sociais crassas e crescentes disparidades de rendimento. Mesmo assim, sentimos à nossa volta o surgimento de uma tendência difusa em culpar excessivamente os indivíduos (aqueles que “não ficam em casa” ou que pretendem fazer desporto ao ar livre, assim como os pais que deixam os/as filhos/as respirar um pouco de ar fresco). Tememos que este foco continue apartado das origens estruturais dos problemas com que lidamos diariamente nesta emergência, e que são parte integrante de um modelo socioeconómico dominante, causa e consequência desta crise.

ESPERANÇA (SE HOUVER)

Poderá esta pandemia ser um catalisador para a mudança, como alardeiam alguns? Talvez futuros alternativos surjam da capacidade crescente em abraçar a diversidade e a pluralidade da vida, um cenário sem dúvida promissor e otimista. Porém, muitos/as de nós têm vindo a debruçar-se sobre o abismo entre a capacidade de aceitar a dita diversidade e a realidade brutal marcada por modelos hegemónicos e homogeneizadores. Da mesma maneira, o enquadramento de problemas e de respostas na ideia de que uma “solução tecnológica” resolverá todas estas questões parece consolidar-se de forma algo ameaçadora no horizonte.

Notamos ainda a partilha avassaladora e quase entorpecedora de temas e opiniões sobre alguma indiferença de setores políticos e económicos à crise social; a capacidade de as ciências naturais “subitamente” captarem a atenção dos decisores à custa das ciências sociais; as novas reivindicações para uma maior conexão entre humano e natureza, omitindo referir, porém, as tamanhas intromissões que provavelmente nos têm conduzido a este caos; e as possibilidades e críticas emergentes nas agendas de investigação sobre “vida versus tecnologia”.

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Fotografia de uma rua vazia em Lisboa. Fonte: UTH

As formas como os governos têm vindo a responder a esta crise será um indício útil no futuro. De que forma se transformará o capitalismo na era pós-coronavírus? Como se estão já a organizar poderes não-democráticos? Torna-se claro e evidente (de novo) que não podemos separar a política da economia, bem como da sociedade ou da ecologia, sem provocar crises múltiplas e danos a longo prazo. A escala, o ritmo e o alcance da crise estão claramente ligados com a nossa muito badalada conetividade. Todavia, seremos nós também capazes de juntar as peças do puzzle decorrente desta crise, especialmente quando nos encontramos ainda demasiado próximos/as do fenómeno para o analisar?

SOBRECARREGADOS/AS

Parece estranho que tenha sido precisa uma pandemia para falarmos entre nós membros do UTH das nossas famílias – algo que tendemos constantemente a desvalorizar. Refletir sobre a separação entre vida pessoal e profissional, especialmente num tempo em que estas se encontram fisicamente inseparáveis, parece ajudar-nos a (re)descobrir a nossa humanidade.

Neste momento debatemo-nos todos/as com o nosso espaço existencial, porém saber que esta é uma luta partilhada ajuda a que nos sintamos menos sós. Estamos preocupados/as em como manter algum tipo de equilíbrio para preservar o lar enquanto espaço seguro e saudável. O objetivo passa por procurar identificar as âncoras que nos mantêm à tona e aprender como melhor lidar com os monstros que identificámos acima. Manter uma “lista de tarefas” para organizar a rotina diária profissional parece ajudar. O tempo e como o preenchemos importa, estando alguns/mas de nós a utilizar o que libertaram de reuniões e burocracias institucionais para o ocupar com reflexões e leituras; outros/as têm privilegiado o contacto com família e amigos/as – digitalmente, como é óbvio. Destas reflexões têm surgido mais espaços para repensarmos a forma como cuidamos um/a do/a outro/a na academia, assim como cuidamos dos/as outros/as em práticas diárias, desde as relações de vizinhança e de rua, até as mais institucionais.

Apesar do iminente fracasso financeiro e económico, alguns/mas de nós sentem-se ainda privilegiados/as face à precariedade que tantos/as outros/as experienciam. Uma parte dos membros do UTH mantém um vínculo laboral (até certo ponto) estável, do qual decorre um salário fixo. Porém, todos/as nós sentimos necessidade de falar sobre como isto está a afetar-nos, quem somos, o que estamos a fazer – apesar das pressões académicas que nos empurram no sentido de refletir e de abordar exclusiva e exaustivamente os nossos compromissos de trabalho e as nossas agendas de pesquisa. Afinal, poderemos ser pais e mães, filhos e filhas, companheiros e companheiras, amigos e amigas, enfim, humanos/as, ao mesmo tempo que somos académicos/as?

DAR UM (NOVO) SENTIDO AO NOSSO TRABALHO

Precisamente devido à necessidade de uma reintegração de “corpos e mentes”, parece-nos que o ponto de partida para pensarmos a este estado de inquietação gerada pela pandemia em curso consiste no reenquadramento das questões, mais do que na apresentação de respostas rápidas ou paliativas.

Alguns/mas de nós rejeitaram o trabalho que tinham em mãos, como se, subitamente, este parecesse ter perdido todo o sentido. Outros/as têm tentado resistir ao que sentem ser uma instrumentalização do nosso ofício, orientados/as para esta ou aquela agenda: o que fazemos ainda importa – talvez até importe mais – e deve ser valorizado não apenas pelo seu impacto direto, visível ou mensurável. Parte do que fazemos, especialmente nas ciências sociais, implica abrir espaço à reflexão, explorar intelectualmente o universo das possibilidades. Onde se localiza esse esforço agora e onde se encontrava antes?

Estamos a tentar refletir no que (e como) devemos escrever, como cientistas sociais, e pensando a longo prazo, para além de fornecer contribuições meramente técnicas e pragmáticas. E mais, como as ciências sociais têm sido pressionadas implacavelmente para provar a sua relevância e impacto, tememos que esta pressão aumentará ainda mais em função da pandemia. Mais cortes serão desferidos às ciências sociais para financiar, por exemplo, a investigação das ciências naturais e na área das novas tecnologias?

Sentimos que mantermos o trabalho e as agendas de pesquisa como o fazíamos antigamente não é a prioridade, e que não deve sê-lo para a comunidade académica num sentido mais abrangente. As agendas individuais, os egos, as carreiras, são ainda menos relevantes agora: com o Covid-19 no horizonte, parecem-nos ainda mais deprimentes e disruptivos do que nunca. Sem dúvida que não se trata – nem alguma vez se tratou – da quantidade de horas de trabalho que conseguimos incluir num dia, mas sim do sentido que estas fazem e do que retiramos delas.

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Fotografia de alguns membros do UTH em videochamada. Fonte: UTH

TENTANDO PERCEBER O QUE FAZER

É necessário construir uma distância crítica desta pandemia e vermo-nos livres do ruído de fundo que se tem gerado. As previsões mudam diariamente e, no UTH, estamos mais interessados/as em procurar diferentes perspetivas sobre a crise, que sejam inclusivas, integradas e multidisciplinares. É provavelmente tempo para tentarmos escrever de maneira mais direcionada ao público em geral, e não (apenas) para os nossos pares ou para publicar mais um artigo científico. Olhando para o que pode ser desconstruído, removido ou demolido, poderíamos prestar mais atenção à relevância (social e académica) do tipo de contribuições que são menos valorizadas na e pela academia, e realizar trabalho de divulgação dos resultados científicos, ativismo, investigação ação e práticas similares que tradicionalmente menos destaque assumem nos nossos CVs. Devemos elevar as nossas vozes, colocá-las ao serviço de plataformas cívicas – um público que provavelmente não acompanha a longa produção académica, mas que certamente assiste a vídeos e/ou a entrevistas – tentar cooperar em processos concretos e fornecer dicas úteis, enfim ser um verdadeiro veículo de apoio à comunidade.


O Urban Transitions Hub está integrado no Grupo de Investigação de Ambiente, Território e Sociedade do ICS-ULisboa, sendo constituído por um grupo de investigadores interessados em explorar a dimensão urbana do Antropoceno e das suas crises. 

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