por José Gomes Ferreira
Muito se vai escrever sobre o impacto do novo desenho institucional e as prioridades do novo governo brasileiro em matéria ambiental. Deixando de lado o posicionamento das forças políticas que o lideram, o país tem uma importante herança que reclama avaliação, continuidade e mudança, consoante os casos.
A imensidão do país, com a sua enorme variedade e riqueza em recursos naturais, permite que nele se concentrem: i) a maior biodiversidade de espécies no mundo, estando catalogadas na parte continental mais de 103.870 espécies animais e de 43.020 espécies vegetais, distribuídas por seis biomas: Amazónia, Cerrado, Caatinga, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa; ii) 12% da água doce de todo o planeta, que apresenta, contudo, no seu território uma distribuição muito desigual, de tal modo que, segundo a Agência Nacional de Águas, a região Norte concentra 80% do total das reservas de água doce do país e a região Nordeste possui pouco mais de 3%; e iii) uma enorme riqueza mineral e no subsolo, assim como uma costa marinha de 3,5 milhões km². Em termos de água subterrânea, o Brasil partilha com a Argentina, o Paraguai e o Uruguai aquele que é considerado o principal aquífero do mundo, o aquífero Guarani, que possui um volume acumulado de 37.000 km3 e uma área estimada de 1.087.000 Km2.

A manutenção, usufruto e acesso universal a estes e outros recursos naturais, como também a reversão dos danos ambientais, apresentam-se como importantes desafios para este governo e para os que o venham a suceder. Existem igualmente preocupações com o possível aumento de áreas desmatadas, grilagem (apropriação de terras através da falsificação de títulos de propriedade), outros conflitos pela terra e pela água, e com o impacto da questão climática, que já se faz sentir sobretudo através do avanço do mar e da pressão sobre o meio hídrico, que por sua vez está na origem de longos períodos de estiagem em regiões com um histórico de abundância de água. A floresta da Amazónia tem merecido atenção constante da comunidade internacional e de movimentos ambientalistas com atuação global que tentam parar o desmatamento de uma floresta com enorme valor simbólico, avaliada como o principal reduto de biodiversidade do planeta e como lugar sagrado, de cultura e identidade dos povos indígenas que nela habitam.

No debate interno, por serem sinónimo de garantia de direitos de cidadania, e pela sua urgência, transversalidade e complexidade, regista-se maior pressão no sentido da resolução de problemas como o abastecimento de água, a drenagem e tratamento de esgotos, e a recolha e tratamento de resíduos urbanos. Os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento Básico mostram uma melhoria na prestação destes serviços a partir da Política Nacional de Saneamento Básico, aprovada pela lei federal Nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, mas subsistem ainda enormes atrasos e importantes desfasamentos no acesso aos serviços. Em 2016 foram atendidos com abastecimento de água tratada 83,3% dos brasileiros, mas tal não significa regularidade no abastecimento ou igual distribuição pelas regiões e dentro destas, a tal ponto que o atendimento nas áreas urbanas serviu praticamente 93% dos residentes. A essa situação adicionam-se enormes perdas na distribuição, que atingem 47,3% no Norte e 46,3% no Nordeste. A situação dos esgotos é ainda mais delicada, uma vez que apenas 51,9% da população tem acesso a drenagem, ou seja, mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso a este serviço, pelo que lançam os esgotos a céu aberto ou nos rios nacionais. Sendo que somente foram tratados 44,9% dos esgotos recolhidos. Daqui resulta um impacto direto quer nos ecossistemas, mas sobre o qual pouco ou nada se sabe por ausência de monitorização da qualidade da água dos rios brasileiros, quer na prevalência de doenças resultantes da falta de saneamento básico e que são uma das principais causas das elevadas taxas de mortalidade infantil no país.

Para se enfrentarem estes problemas e se reverter o passivo ambiental, são necessárias mudanças não apenas legislativas e operacionais, mas em relação a um entendimento mais abrangente do conceito de ambiente, que coloque o Brasil no centro da transição social e económica, através da melhoria da qualidade ambiental e social das cidades e áreas rurais. Tal exige dispositivos institucionais ágeis e eficazes, e o enfrentar da informalidade e discricionariedade para que não se repitam casos inconsequentes de contaminação e degradação ambiental, e apostar na sensibilização e envolvimento dos cidadãos, de modo a que também eles, e os setores produtivos, sejam agentes de mudança.
Entre as inquietações, destacam-se o avanço do agronegócio com uso intensivo de água e pesticidas, o desmatamento e ocupação de áreas tradicionais, mas também o receio de reversão do controlo e participação social. Ainda assim, nem tudo se deve dar como perdido, pois nem toda a produção poderá avançar tal como se perspetiva, na medida em que os principais países importadores, sobretudo os da União Europeia e os Estados Unidos, possuem procedimentos de regulação através das respetivas agências de segurança alimentar que não facilitam a entrada de produtos com potencial tóxico que exceda os valores de referência acima do padrão estabelecido. Os próprios consumidores, existindo rotulagem indicativa da origem, podem exercer o seu direito de opção. Acredito que alguns empresários vão optar pela autorregulação a pensar na venda dos seus produtos no estrangeiro.
Paralelamente às questões identificadas, um dos principais problemas ambientais é o de governança, que esbarra com uma tradição centralizadora e verticalizada das políticas públicas e com um movimento ambientalista muito fragmentado, geralmente monotemático e sem cobertura nacional. A estas tendências adicionam-se questões de transparência e permissividade e o caráter facultativo de algumas ações. Sem uma reforma do pacto federativo que atribua mais competências e meios aos municípios e aos estados, e que os coloque a trabalhar em sintonia, com rotinas de acompanhamento das ações e envolvimento ativo das comunidades, os investimentos são feitos mas a efetividade das políticas é reduzida.
Principais desafios à política ambiental brasileira
Assim, são seis os principais desafios que se colocam à política ambiental brasileira de hoje e da próxima década:
- Visão inovadora e abrangente sobre o que é ambiente e como integrar os valores ambientais na economia de transição, de modo a registar menor impacto ambiental, mais desenvolvimento e maior compromisso com as comunidades e com a natureza.
- Monitorização e avaliação das políticas ambientais, procurando o envolvimento de todos os setores e saberes na resolução dos problemas.
- Resolução do passivo ambiental, com vista à melhoria da qualidade de vida e à redução de riscos e danos ambientais.
- Priorização da aplicação dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e da sua centralidade na redução de desigualdades sociais e ambientais.
- Promoção da educação ambiental e da sua vocação como motor de mudança de práticas dos cidadãos e de melhoria da eficácia e eficiência das políticas públicas.
- Valorização da diversidade dos biomas e do papel das comunidades tradicionais como elementos de identidade cultural do país, colocando-o na liderança dos compromissos internacionais.
A mudança de ciclo político anuncia medidas que geram apreensão quanto ao seu contributo para melhorar a articulação das instituições públicas e destas com os entes participativos, no que podem levar ao aumento da desconfiança dos cidadãos e o eclodir de situações de conflito. O Brasil deve avaliar se deseja um modelo produtivo baseado na exportação das chamadas commodities (mercadorias não transformadas) ou se estrategicamente pretende transitar para um modelo produtivo socioambientalmente mais justo e equilibrado, que coloque o país na liderança da inovação em produtos da natureza e reforce a coesão social e territorial através de produtos com identificação de origem local e regional.
Não se podem repetir tragédias como as registadas nas barragens de lamas contaminadas da indústria mineira de Brumadinho, ocorrido a 25 de Janeiro de 2019, e Mariana, a 5 de novembro de 2015 (ambas no estado de Minas Gerais). Não só pela dor e destruição que deixam, mas pela inoperância das instituições e pela existência de territórios e práticas nebulosas, com caixas negras que impedem a existência de fluxos comunicativos e a atribuição de culpa em casos de crime ambiental. Ou se melhoram e executam as políticas, envolvendo empresas e populações em processos de governança transparentes e participativos, e se dá sequência às infrações ambientais, ou, como se diz em Portugal, “a culpa irá morrer solteira”.
José Gomes Ferreira é professor visitante no Departamento de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil.