Se o vinho sabe bem… O Lado Negro do terroir

Marco Allegra

Segundo a International Organisation of Vine and Wine, terroir “is a concept which refers to an area in which collective knowledge of the interactions between  the  identifiable  physical  and  biological  environment  and  applied  vitivinicultural  practices  develops,  providing  distinctive  characteristics  for  the products originating from this area”.

Trata-se de uma definição minimalista. Como sublinha a Revista de Vinhos, “[f]alar de Terroir é falar de topografia, orografia, geologia, pedologia, drenagem, clima e microclima, condução da vinha, castas, porta-enxerto, intervenção humana, cultura, história, tradição etc.”. Um artigo no New York Times define o terroir como “a concept almost untranslatable, combining soil, weather, region and notions of authenticity, of genuineness and particularity – of roots, and home – in contrast to globalized products designed to taste the same everywhere”.

closvougeot

Fonte:Clos Vougeout, Wikipedia

Soil and roots, “solo e raízes” – a ideia de terroir representa a ligação entre uma comunidade humana e o seu território, mas também um critério de validação desta relação: implicitamente, um vinho de alta qualidade só pode ser o fruto de uma relação positiva – mais: autêntica, histórica e orgânica – entre os elementos humano e físico da paisagem. Esta relação é o tópico de um artigo que publiquei com Ariel Handel e Galit Rand no jornal Environment and Planning A (o artigo recebeu, juntamente com outros dois, o Ashby Prize como melhor artigo publicado na revista no ano 2015). O artigo explora o “lado negro” do conceito no contexto do desenvolvimento da indústria do vinho nos colonatos em Israel/Palestina. Mas de que estamos realmente a falar quando falamos de terroir?

O terroir representa o protótipo de um discurso sobre a autenticidade da relação homem-ambiente que hoje se tornou quase hegemónico nas nossas sociedades, indo muito além da comunidade dos amantes e dos profissionais do vinho. A ideia de “produtos do território” (produzidos em áreas específicas segundo metodologias tradicionais) é uma importante componente do branding agroalimentar e das políticas de desenvolvimento local. Ao mesmo tempo, esta ideia caracteriza hoje uma filosofia e um estilo de vida intrinsecamente associados à sabedoria enogastronómica, à saúde e à preservação do ambiente, ao respeito pelas culturas locais e até a ideais de justiça global.

Como sintetiza o movimento Slow Food, o alimento “bom, limpo e justo” é a base para “[u]ma visão holística da gastronomia e a construção da capacidade de ultrapassar conceitos que não defendem o valor das diferentes culturas do planeta”. Como notam Koen van Bommel e André Spicer, a ênfase do Slow Food nos produtos tradicionais, metodologias artesanais e comunidades locais transformou o discurso sobre alimentos “from appealing only to gastronomes to becoming a broader field that encompassed social justice activists and environmentalists”.

O terroir e, mais em geral, os “produtos do território” sabem bem, fazem bem, e até contribuem para a criação de um mundo melhor: parece-me claro que temos aqui uma oportunidade imperdível para os criticar.

A inspiração neste sentido vem, mais uma vez, de Israel/Palestina. Os colonatos israelitas do West Bank representam a área onde a indústria do vinho local mais cresceu nos últimos anos. O desenvolvimento da indústria e da cultura do vinho – elemento indiscutivelmente judeu da paisagem – é parte de uma nova estratégia de legitimação da presença dos colonos no West Bank. Como nota Nati Israeli, coordenador turístico no Conselho Regional da Samaria, “Our strategy has changed…. Once we would organize demonstrations. Today it’s the exact opposite. We simply want people to come and get to know us; to like us…. This is Tuscany, and it’s 10 minutes away from your house” (Handel et al 2015: 1360). A mensagem dos colonos passou a ser “YESHA ze fun” (“a YESHA é divertida”) – onde YESHA (“salvação”) é o acrónimo hebraico que indica as áreas de Judeia, Samaria e Gaza.

O conceito de terroir, pelas suas características próprias, adapta-se muito bem a esta campanha – parte dum processo mais geral de “normalização” da presença judia no West Bank. Em primeiro lugar, o terroir é uma combinação de elementos humanos e naturais que não pode ser alterada sem mudar as características próprias do produto; inversamente, a qualidade, digamos, de um vinho de Porto de Psagot representa a prova que a relação dos colonos com a terra que ocupam é autêntica – parafraseando a expressão inglesa, the proof is in the glass. Em segundo lugar, os consumidores de vinho em Israel vêm da parte mais rica e progressista da sociedade, e os vinhos dos colonatos participam no circuito internacional de revistas, prémios e eventos que compõem a sofisticada wine culture global. Por isso, através do conceito de terroir o processo de normalização pode atingir um público-alvo muito diferente do das campanhas desenvolvidas através de slogans ideológicos.

Ao mesmo tempo, o conceito de terroir não representa de maneira nenhuma uma diluição da mensagem original do Sionismo e do movimento dos colonos nacional-religiosos. Pelo contrário, esta ideia (e, em parte, a do “território” no domínio agroalimentar) permite falar em termos politicamente corretos da existência de uma relação orgânica, até mística, entre homem e terra – pela primeira vez desde que conceitos associados à ideologia nazi como Blut und Boden e Lebensraum caíram em desgraça depois da segunda guerra mundial.

Claro, não estamos a acusar os wine lovers portugueses de proximidade ideológica em relação aos nazis. Mas devemos considerar também o potencial do lado negro do terroir/território – um outro conceito desse tipo já foi, aliás, objeto de uma análise mais aprofundada nas ciências sociais: o de “comunidade”. A ideia de “território” (produtos, culturas, comunidades) pode ser considerada como intrinsecamente positiva? Os métodos e as práticas tradicionais são imunes a dinâmicas de exploração? E sobretudo: se o vinho sabe bem, é tudo o que precisamos saber?

 

Marco Allegra é investigador de pós-doutoramento do ICS ULisboa.

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