As leguminosas têm futuro? Mudanças na produção e no consumo em Portugal

Autora: Dulce Freire

Enquanto decorre o Ano Internacional das Leguminosas (2016), a Food and Agriculture Organization e outras entidades têm promovido diversas iniciativas para alargar o consumo destas proteínas vegetais. À semelhança dos outros anos temáticos, que têm sido assinalados pelas organizações internacionais, focando as atenções nas leguminosas visa-se destacar estes produtos no quadro de uma agricultura e de uma alimentação sustentáveis. Durante séculos, as leguminosas constituíram uma fonte essencial de proteínas na alimentação humana e não só, mas nas últimas décadas o consumo tem estado a cair. Quando se perspectiva um futuro alimentar sustentável, as leguminosas regressam à ribalta dos debates, potenciando soluções para diversos problemas. De facto, ainda que estejam a ser mais salientados os aspectos que podem atrair consumidores, desde as características nutricionais às potencialidades culinárias, as leguminosas são igualmente interessantes para os agricultores, porque promovem a fertilidade do solo (fixam azoto), evitando o uso de fertilizantes.

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Fonte: Museu Nacional de História Natural e da Ciência

Em Portugal, a redução do consumo tem-se tornado preocupante. Por exemplo, em 2009-2014 as leguminosas representaram em média 0,6% dos alimentos consumidos por dia para cada pessoa, quando se aconselha 4%. Na prática, os valores recomendados correspondem ao consumo diário de 25g, se forem leguminosas secas, e a 80g, se forem frescas. Todavia, a redução da produção parece ter sido ainda maior, estando o abastecimento interno a ser assegurado pela importação.

Os dados recolhidos no âmbito do projecto «Agricultura em Portugal: alimentação, desenvolvimento e sustentabilidade (1870-2010)», que decorreu no ICS-ULisboa (2012-2015), com financiamento da FCT, indicam que, em 2009, a produção de feijão e de grão-de-bico estava ao mesmo nível de 1850: com colheitas que rondavam as 5 mil toneladas anuais (ver o gráfico). Durante mais de 100 anos, até à década de 1960, registou-se uma tendência de crescimento da produção, que atingiu um máximo de 70 mil toneladas anuais de feijão em 1958-1961, e de mais de 30 mil toneladas de grão-de-bico em 1967. A produção de fava foi igualmente importante, ultrapassando as 50 mil toneladas anuais na década de 60. Mas o panorama alterou-se.

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Legenda: Produção de leguminosas e Portugal, 1850-2009.

Fonte: «Agricultura em Portugal: alimentação, desenvolvimento e sustentabilidade (1870-2010)»

O gráfico mostra ainda alguns dados da produção de chícharo, lentilha e ervilha. Infelizmente, estas leguminosas não foram consideradas relevantes pelo Instituto Nacional de Estatística e não houve continuidade às séries iniciadas no século XIX. A execução deste projecto permitiu pela primeira vez constituir séries estatísticas contínuas de âmbito regional, e também nacional, para muitos dos produtos que compõem a agricultura portuguesa desde 1850 (a partir de quando há estatísticas). Foi possível colmatar muitas lacunas e disponibilizar novos dados históricos, mas existem vários problemas que persistem. Neste caso, apesar de faltarem dados estatísticos, outros documentos e as práticas alimentares regionais indicam que chícharos, lentilhas e ervilhas continuaram a ser produzidos e consumidos.

São escassas as referências históricas às leguminosas, por comparação com o que existe para cereais, vinho e azeite. Percebe-se que às variedades autóctones se foram juntando as que vieram do Oriente e, a partir do século XVI, as que chegaram do Novo Mundo, mas desconhecem-se quase sempre detalhes acerca das mudanças nas condições de produção e consumo. Em 1749, João António Garrido explicava que os feijões para consumir em verde se semeiam no Verão com «hum grão de milho grosso; e tres feijoens juntos fazem huma boa copada arrumados á cana do milho. Tambem se semeão os feijoens de hum, em hum nas hortas entre canteiros, das alfacias, e das couves». Recomenda que se usem as sementes locais e não os feijões que vêm da Holanda, que não nascem. Quanto ao grão-de-bico, deve semear-se na lua crescente de Março, deixando-o em água morna na véspera. Ao cozinhá-los «quando fervem não se lhes bota água fria senão morna; e cozem-se peyor com agua corrente, que com agua do poço; e fazem-se mais brandos cozidos com hervas, do que sem ellas». Estas recomendações fazem parte do livro que publicou e que está acessível no sítio da biblioteca da Universidade de Coimbra. Este e outros testemunhos indicam que, no século XVIII, as leguminosas com diferentes origens já integravam os sistemas agrícolas e as práticas alimentares nas modalidades que ainda eram habituais em meados do século XX.

A drástica redução da produção de leguminosas está associada às profundas mudanças sociais e económicas que decorreram em Portugal depois da década de 60. Por um lado, a agricultura mudou. As leguminosas de sequeiro (fava, grão, lentilha, chícharo e tremoço) faziam parte das rotações de cereais e, além de servirem para alimentação humana, eram indispensáveis (sobretudo a fava) para as rações dos animais de trabalho. Com a difusão de tractores e fertilizantes químicos, a par do abandono das terras mais pobres, estas leguminosas perderam utilidade. O feijão e as ervilhas carecem de água e, principalmente, o primeiro era consociado com o milho. É certo que este continua a ser o único cereal em expansão em Portugal (com produções que ultrapassam 1 milhão de toneladas), mas é outro milho! É um híbrido que abastece a agro-indústria mundial, cultivado em monocultura de precisão. Os milhos tradicionais (branco ou amarelo) não só serviam para fazer pão e rações, como permitiam consociações com feijão, abóbora, alface e outros produtos que crescem na mesma época. Esses milhos, que exigiam um labor constante e utilizavam terra e água criteriosamente, quase desapareceram.

Por outro lado, o consumo também mudou. O baixo consumo per capita de proteínas animais registado em Portugal (menos de 30g diárias) foi, durante décadas, uma realidade que envergonhou algumas elites: era mais um sinal de atraso, que não se podia esconder e que a FAO passou a registar nas estatísticas internacionais. A balança alimentar do INE indica que o país chegou aos valores médios mínimos europeus na segunda metade da década de 1960 (Dulce Freire, 2011, “Produzir mais e melhor…”, Ayer, 83). Nessa altura, já tinham sido levantadas muitas das regras que dificultavam a entrada de produtos estrangeiros no mercado interno e estava a ser incentivada a produção de proteínas animais (sobretudo aves e suínos), o que alargou a quantidade e a variedade de bens alimentares disponíveis.

No contexto destas transformações, ainda que o cozido à portuguesa ou o grão com bacalhau continuem a ser celebrados, o consumo quotidiano de leguminosas foi sendo abandonado. A redescoberta das leguminosas apresenta-se como uma oportunidade para Portugal. Aqui existem recursos ecológicos e conhecimentos que permitem cultivar e cozinhar diferentes variedades locais, contribuindo para um futuro sustentável.

 

Dulce Freire é historiadora e investigadora auxiliar do ICS ULisboa.

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