Inquéritos ao Território. Uma exposição a não perder. Uma prática a reforçar.

Rosário Oliveira

“INQUÉRITOS AO TERRITÓRIO – PAISAGEM E POVOAMENTO” é uma exposição que coloca em diálogo múltiplos olhares e perspetivas sobre Portugal, de finais do século XIX à atualidade.

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Através de uma cuidada integração de domínios disciplinares, como a Etnologia, a Arquitetura e a Geografia, com as narrativas artísticas da fotografia, do vídeo, da ilustração e da sonoplastia, a exposição é, antes de mais, uma dupla homenagem; ao Território e aos diversos trabalhos e autores que têm tomado o Território e a Paisagem em Portugal como objeto da sua investigação, produção ou intervenção no último século.

São confrontados um amplo conjunto de imagens, documentos e publicações, alguns deles nunca antes vistos em contexto museológico, oferecendo-nos uma miríade de retratos do território português, tão diversos quanto fascinantes, que nos induzem a uma reflexão sobre nós mesmos e o lugar em que nos foi dado viver.

Em que consiste, então, Inquirir o Território? Consiste em pesquisar, investigar, observar, anotar, recolher e sistematizar informações, analisar, documentar, registar, guardar memórias, no caso desta exposição sobretudo através da fotografia, no sentido dado por Jean-Paul Sartre na sua obra L’Imagination – “A imagem não é uma coisa, é um ato” (1936).

Consiste também em pôr-se em campo, caminhar, calcorrear, perscrutar, vivenciar, experienciar, enlamear as botas, empoeirar-se, interagir, sentir, caracterizar um território e o seu povoamento, permitindo-nos, mais do que ampliar o conhecimento sobre essa realidade, conferir-lhe a dimensão de Paisagem, cujo conteúdo chega à sala de exposições embebido num misto de linguagens – científica, poética, estética e artística.

No Museu Nacional de Etnologia, com curadoria de Nuno Faria e até Outubro de 2016, são assim representadas as diversas atividades e formas de vida que moldaram o Território e a Paisagem nos últimos 130 anos. Através delas percebemos, sobretudo, dois tempos. No primeiro, que decorre pelo menos entre o final do século XIX e a década de 50 do século XX, manteve-se um ritmo de transformação à medida da força do braço humano ou dos animais de tração, dependente dos recursos que o Território oferecia e das ambições que o sistema político ditava. Um tempo que obedecia ao ritmo das estações, que por sua vez determinava os ciclos de produção, das práticas quotidianas, dos rituais culturais e religiosos. Pode dizer-se, um “tempo orgânico”, passado, que correlacionava as morfologias do território, as atividades económicas, as técnicas, os engenhos e os artefactos, os sons da natureza, do labor e a linguagem. A exposição apela a essa memória, ao conhecimento de um território como espaço de coerências e consistências sedimentadas por esse “tempo orgânico”. Depois vem o outro tempo, um “tempo inorgânico”, incongruente, insensível e distante da verdadeira base de geração de riqueza – o Território. Este é o tempo que tem determinado um espaço de incoerências e inconsistências, que importa repensar.

No essencial, a Exposição documenta essa trajetória e a ruptura entre os dois tempos. Apresenta-nos a matriz de autossubsistência que perdurou até meados do século XX, assente numa ruralidade muitas vezes sofrida, com centros urbanos contidos que, de repente e descontroladamente, explodem para parte incerta. Segue-se a litoralização da demografia, da economia e da cultura, que passou a ser confundida com progresso, deixando o interior do país vazio de dinâmicas e de sonhos, remetido para uma enorme periferia, afirmando-se este processo de “ocidentalização” como a mais determinante força anímica em que se investiu nas últimas cinco décadas, de onde resultou um crescimento disforme e descontínuo, difícil de converter numa estratégia de coesão para o desenvolvimento.

Os três vídeos autorais exibidos a par da Exposição reforçam este olhar crítico, absorto, de um país seriamente fragmentado e desconexo, onde pontualmente persistem espaços de memória que relembram dispormos de um património físico, biológico e humano únicos, a par de uma escala espacial e temporal muito particulares, de onde resultou uma identidade que não convém deixar dissipar sem deixar rasto.

Este manancial de informação que nos é apresentado na Exposição torna inevitável uma atitude reflexiva, levando a crer que os Inquéritos ao Território devem ser entendidos como exercícios de que não podemos abdicar. A sua indispensabilidade é tal que deveriam merecer uma prática regular, à semelhança dos censos da população, dos registos agrícolas ou de outras práticas de inquérito nacionais, essenciais à avaliação da transformação do Território e da Paisagem.

Tendo como exemplo a expedição à Serra da Estrela, realizada sob a égide da Sociedade de Geografia de Lisboa em 1881, ou o Inquérito à Arquitetura promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitetos entre 1951 e 1955, elencados na exposição, torna-se evidente a necessidade de prosseguir com o registo das transformações territoriais como base da monitorização do processo de mudança, procurando, a partir deles, decisões mais responsáveis, equilibradas e consistentes para o Território no quadro da enorme complexidade em que vivemos.

Para além da fotografia e do vídeo, são diversas as técnicas, as tecnologias e os métodos que poderão ser utilizados num processo de inquirição regular, quiçá permanente, do Território. A integração destas diversas possibilidades sugere uma imensa oportunidade de soluções inovadoras, tanto de natureza expositiva e museográfica, como inspiradoras do desenho de soluções integradas para a gestão do próprio Território. Talvez um impulso para a criação do Observatório do Território e/ou da Paisagem, como há muito se prevê. Tal iniciativa poderia ser enquadrada no contexto da Política Nacional de Arquitetura e Paisagem, prosseguindo os seus objetivos estratégicos.

Em última instância, inquirir o Território deverá ser uma atitude responsável, programada e cívica, tanto na esfera individual como coletiva, pois é desse conhecimento sobre a evolução da relação entre o território, o povoamento e os seus habitantes que poderemos construir um país capaz de assegurar uma maior qualidade de vida aos seus cidadãos.

O vídeo de Daniel Blaufuks remete-nos para uma “reflexão pessoal desencantada sobre o destino e a memória de um povo que parece não ter a capacidade de compreender aquilo que lhe acontece, que confunde nostalgia e memória”.

É precisamente isso que os Inquéritos ao Território, como prática regular, deverão contrariar.

 

Rosário Oliveira é investigadora associada do instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

1 thoughts on “Inquéritos ao Território. Uma exposição a não perder. Uma prática a reforçar.

  1. Eduardo Guimarães 2 Maio 2016 / 9:41 am

    Minha amiga Rosário Oliveira, pode essa exposição ser/tornar-se itinerante?
    Imagino-a a percorrer as ilhas dos Açores.

    Abraço atlântico, desde a ilha do Corvo.
    Eduardo

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