Mudanças Climáticas, secas e segurança hídrica no município de Campina Grande, Região Semiárida da Paraíba, Brasil

Por: Rafael Albuquerque Xavier

De acordo com o 6° Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, 2023), entre 3,3 e 3,6 bilhões de pessoas vivem em vulnerabilidade face às mudanças climáticas. O aumento de eventos meteorológicos e climáticos extremos tem exposto milhões de pessoas à insegurança alimentar aguda e reduzido a segurança hídrica. Dentre esses fenômenos climáticos, as secas têm se tornado cada vez mais severas e frequentes, comprometendo a segurança hídrica em diversas regiões do mundo, principalmente das zonas áridas e semiáridas.

Dentro desse contexto, está sendo desenvolvido uma pesquisa sobre os impactos das mudanças climáticas na segurança hídrica no município de Campina Grande na Paraíba, região semiárida do Brasil. Esse estudo faz parte do meu pós-doutorado junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), sob supervisão de Luísa Schmidt e Carla Gomes, e está inserido dentro do projeto global “Desafios escalares da governança da água em territórios hidrossociais no Brasil em contexto de mudanças climáticas: um estudo comparado com México, Portugal e Inglaterra”, coordenado pelo Prof. José Irivaldo Alves Oliveira Silva. Como parte integrante das ações desse projeto, encontra-se também no ICS-ULisboa realizando seu estágio de doutorado sandwich a doutoranda Maria de Lourdes Saturnino Gomes, da Universidade Federal de Campina Grande, com o projeto “Governança da água nas dimensões político-institucionais em territórios hidrossociais no Cariri Paraiba”.

Como objetivo principal o estudo busca analisar os impactos das mudanças climáticas sobre a segurança hídrica do principal reservatório que abastece Campina Grande e região. Dessa forma, estão sendo elaborados cenários futuros dos impactos das mudanças climáticas sobre a bacia hidrográfica de contribuição do açude Epitácio Pessoa e, assim, discutir a sua segurança hídrica para as próximas décadas. A pesquisa utiliza bases de dados globais e modelos preditivos para as mudanças climáticas neste século, além de dados históricos dos volumes do reservatório, do crescimento econômico e populacional.

O município de Campina Grande está localizado na região semiárida do Brasil, especificamente no Estado da Paraíba, e possui cerca de 420 mil habitantes. Ao longo de sua história, o município sempre teve o abastecimento de água como um entrave ao seu crescimento e, nesse sentido, a construção de diversos açudes (albufeiras) foi necessária para acompanhar o seu desenvolvimento.

Durante os séculos XIX e XX, Campina Grande foi abastecida por diversos reservatórios que sempre colapsaram à medida que o município se desenvolvia. A figura 1 mostra a cidade de Campina Grande e três desses reservatórios que foram construídos e abandonados por não atenderem a demanda hídrica crescente. Atualmente esses reservatórios foram incorporados na cidade como áreas de lazer e cumprem função paisagística.

Figura 1. Parte da cidade de Campina Grande com destaque para os açudes Velho, Novo (foi aterrado) e Bodocongó. Foto: Gabriel de Paiva Cavalcante, acervo Geografia da Paraíba, 2024.

A situação hídrica só teve maior estabilidade com a inauguração do Açude Epitácio Pessoa em 1957 e da adutora construída para levar água para Campina Grande em 1958. Assim, o Açude Epitácio Pessoa, ou Açude Boqueirão, com capacidade inicial de 536 hm3, abastece Campina Grande e mais 22 municípios da Paraíba.

Desde então, acreditou-se que o problema da insegurança hídrica estava resolvido. Recentemente, o reservatório enfrentou a pior seca da sua história, entre os anos de 2012 e 2017, levando Campina Grande e região a um longo racionamento de água que durou de dezembro de 2014 até agosto de 2017.

Em abril de 2017, o açude Epitácio Pessoa atingiu o pior nível volumétrico da sua história, com apenas 2,9% da sua capacidade total (Figura 2). Essa situação dramática foi gradativamente sendo superada com o início da chegada das águas da transposição do Rio São Francisco. Aceleraram as obras do eixo-leste para que as águas chegassem mais rápido ao Rio Paraíba, e deste até o açude.

Figura 2. Imagens de Satélite do Açude Epitácio Pessoa. Fonte: Google Earth.

Essa seca mostrou o quanto a insegurança hídrica continua a estar presente em Campina Grande. Em tempos de mudanças climáticas, acende o alerta sobre as previsões de aumento de temperatura, diminuição dos totais de precipitação, aumento da concentração das chuvas e principalmente e o agravamento do balanço hídrico negativo para as próximas décadas. Por outro lado, destaca-se a crescente demanda hídrica na região. Campina Grande teve um aumento populacional de 115%, nos últimos 50 anos, e de 107% no seu PIB, nos últimos 10 anos, revelando novos padrões de produção e consumo.

Diante desse cenário, qual o nível de segurança hídrica do açude Epitácio Pessoa para o decorrer deste século? Soma-se a este contexto sensível, os projetos de expansão da infraestrutura hídrica previstos pelo Governo do Estado, que visam aumentar a captação e distribuição de água a partir do açude Epitácio Pessoa.

Todos esses reservatórios, incluindo o rio São Francisco, dependem de água das chuvas para a recarga dos mananciais. As previsões são de cenários desfavoráveis para a segurança hídrica no semiárido brasileiro. Ao que tudo indica, o açude Epitácio Pessoa sofrerá cada vez mais com as secas e dependerá muito mais das águas da transposição para sua manutenção hídrica.

Assim, esse estudo contribuirá com a análise da segurança hídrica de Campina Grande e região a partir da discussão sobre a vida-útil deste reservatório face às previsões das mudanças climáticas para este século. Por fim, serão propostas alternativas de mitigação das crises hídricas e adaptação aos novos cenários climáticos.

Rafael Albuquerque Xavier é investigador visitante no ICS ULisboa. Graduado em Geografia, mestre em Geografia e doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor Associado do Departamento de Geografia da Universidade Estadual da Paraíba, é Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UEPB e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPB. Coordena o grupo de pesquisas sobre Geomorfologia e Hidroecologia de Ambientes Tropicais (GEGHAT).

Envolvimento de cidadãos no armazenamento geológico de carbono offshore: uma exposição/evento na Figueira da Foz

Por: Ana Delicado, Jussara Rowland e Joana Sá Couto

É crescentemente reconhecida a necessidade de envolver as comunidades na implementação de tecnologias de mitigação das alterações climáticas. Das energias renováveis à mobilidade elétrica, do hidrogénio ao armazenamento geológico de carbono, é crucial auscultar os cidadãos, para entender as suas preocupações e expectativas, identificar as condições de aceitação e adoção, desenvolver salvaguardas e garantias que permitam uma descarbonização justa.

No âmbito do projeto PilotSTRATEGY CO2 Geological Pilots in Strategic Territories, financiado pela União Europeia (programa Horizonte Europa), que se foca nas potencialidades da captura e armazenamento de CO2 em França, Portugal, Espanha, Grécia e Polónia, temos desenvolvido várias atividades de envolvimento dos cidadãos e stakeholders, desde reuniões regulares da Comissão Regional de Stakeholders a um workshop com cidadãos em Fevereiro de 2024. Estas atividades têm ocorrido na zona da Figueira da Foz, onde etapas prévias do projeto identificaram as melhores condições para o armazenamento geológico de carbono no subsolo marinho.

Figura 1 Sinalética a promover o evento numa área central da Figueira da Foz, Setembro de 2025. Fonte: as autoras.

Neste sentido, no dia 13 de setembro de 2025, organizámos uma exposição/evento no Meeting Point da Figueira da Foz (debaixo da Esplanada Silva Guimarães, junto à praia) (Figura 1), onde procurámos disponibilizar informação sobre o projeto e recolher a opinião dos cidadãos. O evento foi apoiado pela Câmara Municipal da Figueira da Foz através da cedência do espaço, participação e ajuda na divulgação.

A exposição consistia numa secção inicial de enquadramento, em formato de posters, desenvolvida pela equipa ICS, uma secção de natureza técnica, concebida pela equipa da Universidade de Évora, com base em posters, suportes audiovisuais, modelos e espécimes geológicos. Na secção final, era pedido a cada visitante que partilhasse de forma escrita quais as suas preocupações e os benefícios deste projeto na sua opinião pessoal e por fim, uma votação sobre se estaria de acordo com o projeto ao largo da Figueira da Foz. Os investigadores estavam presentes ao longo da tarde para esclarecer as dúvidas dos visitantes e debater com eles diferentes aspetos do projeto.

Figura 2 Fotografias da exposição. Fonte: membros da equipa

Tivemos cerca de três dezenas de visitantes, homens e mulheres, alguns em família, outros sozinhos, alguns previamente conhecedores do projeto, outros atraídos pela divulgação feita. A maioria dos visitantes passou quase uma hora no espaço, observando, lendo, escutando atentamente as explicações, fazendo perguntas, comentando os materiais da exposição.

Ainda que a maioria dos visitantes se tenha mostrado favorável ao projeto de armazenamento de carbono, expressaram também as suas preocupações: questões de segurança (terramotos, fugas, contaminação ambiental, transporte), a pegada de carbono do próprio projeto, os custos (e quem os financiará) e os atrasos burocráticos, a necessidade de consultar a comunidade e o risco de atrasar ou renunciar à redução das emissões causadoras das alterações climáticas. Mas também reconheceram benefícios, como a mitigação das alterações climáticas e a proteção do ambiente, a responsabilização das indústrias, os ganhos económicos e a criação de emprego.

O evento foi bem-recebido, elogiado pela sua transparência e disponibilidade dos investigadores responderem às diferentes preocupações e dúvidas dos visitantes. Foi especialmente valorizado o facto de o evento ser feito numa fase embrionária do projeto e não quando as decisões já estão tomadas. No entanto, pelos comentários deixados nas redes sociais, nas publicações de divulgação do evento, é possível perceber que também há oposição à proposta do projeto, com críticas centradas no risco de favorecer soluções tecnológicas para as alterações climáticas em lugar da redução de emissões e de soluções baseadas na natureza. Estas discussões fazem parte do processo participativo e só demonstram o interesse das pessoas em envolver-se em projetos que afetam, de forma mais ou menos direta, a sua vida.

Algo que retiramos desta experiência é, sem dúvida, o valor das colaborações interdisciplinares: sem os módulos desenvolvidos pela equipa da Universidade de Évora, a exposição teria sido mais limitada e dificilmente geraria o interesse e o debate que esta proporcionou. Por fim, fazemos um balanço positivo dos meios utilizados para recolher dados científicos, não só os habituais post-its e votações, mas também a presença de uma antropóloga que fez observação participante durante o evento, registando as questões e os comportamentos de visitantes e investigadores (a autora Joana Sá Couto).

O evento cumpriu a sua função de criar um espaço aberto, disponível a todos os que quisessem participar. No entanto, é necessário notar que a abertura formal não se traduz necessariamente em participação efetiva. Por desconhecimento do evento ou por autoexclusão, a participação não foi tão alargada como o esperado e, apesar dos esforços de divulgação, o número e diversidade dos visitantes ficou aquém do almejado. Como tal, esta experiência não deve ser tomada como uma consulta à população, nem nos permite tirar conclusões firmes sobre a aceitação social da tecnologia. Ainda assim, o exercício revelou o valor de criar espaços de diálogo, mas mostrou que, para serem efetivos, os processos participativos têm que ir mais além, isto é, ser continuados, em formatos múltiplos e direcionados a diversas populações-alvo. Os resultados deste evento irão ser incorporados num relatório sobre envolvimento dos cidadãos, que irá contribuir para o desenho de recomendações sobre este tema em projetos de captura e armazenamento de carbono.

Ana Delicado é socióloga e investigadora principal do ICS-Ulisboa.

Jussara Rowland é socióloga, investigadora auxiliar no INESC-ID e investigadora associada no ICS-Ulisboa.

Joana Sá Couto é antropóloga, doutorada pelo ICS em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. Está neste momento a trabalhar no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Risco Ambiental e Relocalização: O Futuro Incerto de Duas Povoações Costeiras

Por: Michelle Dalla Fontana

Como reagiria se lhe dissessem que precisa de abandonar a sua casa devido a riscos ambientais? Esse é o dilema enfrentado pelos habitantes de Pedrinhas e Cedovém, duas pequenas povoações situadas na costa noroeste de Portugal.

Originalmente formadas como comunidades piscatórias, as duas povoações seguiram trajetórias de desenvolvimento distintas ao longo do final do século XX. Pedrinhas, que mantém os seus edifícios bem conservados, conta atualmente com cerca de 40 habitações sazonais e 7 abrigos de pescadores. Já Cedovém, localizada 300 metros mais a sul, evoluiu para uma área de construção mais densa, tornando-se um centro de pesca ativo. Hoje, abriga aproximadamente 49 habitações, predominantemente segundas residências, embora cerca de 12 famílias ainda vivam ali permanentemente. Além disso, dispõe de 7 restaurantes, 9 abrigos de pescadores, e cerca de 50 anexos.

Ambas as povoações estão localizadas na duna primária, próximo da costa, numa área sujeita a rápida erosão. Essa realidade tem sido uma crescente preocupação para as autoridades responsáveis que enfrentam o desafio de lidar com os riscos associados ao avanço do mar.

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Figura 1: Lado norte de Cedovém, Novembro 2023, Foto do autor.

Em junho de 2023, o município de Esposende submeteu a consulta pública o “Projeto de Regeneração Ambiental e Valorização das Atividades Tradicionais de Pedrinhas e Cedovém”, propondo intervenções destinadas a garantir a gestão sustentável das zonas costeiras e a proteção das populações em risco.

Centrado na sua primeira fase em Cedovém, o projeto prevê a demolição de todas as habitações e infraestruturas. No entanto, a atividade piscatória será mantida, e os restaurantes serão relocalizados para o interior, em estruturas de madeira amovíveis. O projeto ainda inclui alimentação artificial da praia, recuperação das dunas, passadiços de madeira e a renovação da Avenida Marginal.

Contudo, o plano não esclarece o destino das famílias que ainda residem permanentemente em Cedovém. O Presidente da Câmara garantiu, em reuniões com os moradores, que ninguém ficará sem casa e que a autarquia está a adquirir terrenos para a construção de novos apartamentos. Ainda assim, a proposta gerou forte oposição de várias partes interessadas.

A resistência à relocalização planeada não é incomum e, muitas vezes, está enraizada no apego das pessoas ao lugar. No entanto, cada caso apresenta circunstâncias únicas, e compreender esses fatores é fundamental para desenvolver políticas de adaptação às alterações climáticas que sejam justas e eficazes.

Para compreender essa resistência, passei seis semanas em Cedovém, alojado numa das casas previstas para demolição. Observei como a povoação é vivenciada, realizei entrevistas, identificando-me como investigador, e testemunhei os efeitos da erosão costeira, agravados por eventos extremos como as tempestades Bernard e Celine (outubro-novembro de 2023). O que encontrei foi uma interação complexa  de fatores sociais e estruturais, que leva muitas pessoas a recusarem a relocalização, indo além do simples apego ao lugar.

A house on a rocky shore

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Figura 2: Cedovém, Outubro 2023, Foto do autor.

Os habitantes de Pedrinhas e Cedovém percecionam o risco de forma diferente das autoridades. Embora reconheçam algum perigo, muitos — principalmente pessoas idosas — sentem-se seguros, confiantes na sua experiência de viver ali sem registo de incidentes graves. Essa familiaridade pode levá-los a subestimar a ameaça, acreditando que a erosão ocorre de forma lenta e previsível. Dependendo da proximidade das suas casas à linha de costa, alguns não sentem urgência em relocalizar-se ou sequer consideram essa hipótese. Em contraste, a Agência Portuguesa do Ambiente e o município avaliam o risco de forma uniforme em toda a área, considerando nos seus relatórios a possibilidade de eventos extremos capazes de causar devastação súbita. Com base nesse entendimento, defendem a necessidade de medidas radicais. Essa diferença de perspetiva cria tensão entre a experiência da comunidade e o planeamento oficial, influenciando a forma como as pessoas percecionam a relocalização.

Outro fator relevante é a idade avançada de muitos residentes. Embora reconheçam que as condições podem deteriorar-se, não veem isso como uma preocupação imediata, mas sim um desafio para as gerações futuras. Para quem tem um horizonte de vida mais curto, cenários climáticos projetados para 2050 parecem distantes ou irrelevantes. Como consequência, a relocalização preventiva pode ser percebida como desnecessária ou até absurda.

Além disso, muitos entrevistados expressaram um forte sentimento de injustiça, pois veem Pedrinhas e Cedovém desprotegidas, enquanto áreas próximas, como a Praia de Ofir, beneficiaram de medidas de proteção. Situada dois quilómetros a norte de Pedrinhas, Ofir tem moradias residenciais, três torres de apartamentos de quinze andares e um hotel. Embora esteja sobre a duna, numa zona de risco, nem o Programa da Orla Costeira nem o município preveem intervenções de relocalização. Na prática, os custos de compensação necessários para realojar ou compensar os proprietários tornariam essa medida inviável para a administração local. Há também evidências de que os esporões construídos a norte de Pedrinhas e Cedovém agravaram a erosão, interrompendo o fluxo natural de sedimentos e acelerando a degradação costeira. Isso reforça a desconfiança no governo e o sentimento de injustiça. Assim, a relocalização é entendida como uma continuação de injustiças históricas, levantando questões sobre até que ponto os erros do passado devem ser considerados na formulação de políticas de realojamento.

Figura 3: Torres de Ofir, Foto do autor.

O caso de Pedrinhas e Cedovém ensina-nos algumas lições. O desalinhamento entre a perceção de risco da comunidade e a avaliação dos peritos gera tensões. Isso não se resolve apenas com educação e informação, mas exige envolvimento ativo das comunidades no planeamento, garantindo que as suas preocupações sejam integradas. A composição demográfica, especialmente a presença de residentes mais idosos, influencia a resistência à mudança. Modelos de relocalização geracional ou parcial, que permitem uma transição gradual, podem ser uma solução viável, sobretudo em países como Portugal, onde o envelhecimento populacional é um fator relevante. Por fim, a resistência à relocalização intensifica-se em comunidades com histórico de discriminação ou cuja vulnerabilidade resulta não só de fatores ambientais, mas também de políticas falhadas de proteção costeira, urbanização e habitação. Reconhecer essas responsabilidades é fundamental para garantir que as práticas de relocalização sejam justas e equitativas.

Michele Dalla Fontana é investigador pós-doutoral MSCA (Marie Skłodowska-Curie Actions) na Wageningen University. A sua investigação recente foca-se nos processos de retirada planeada e na relação entre mobilidade humana e incêndios florestais em Portugal, contribuindo para a adaptação às alterações climáticas na Europa.

O Fim das Centrais a Carvão em Portugal: o bom, o mau e o que há a aprender

Por: Ricardo Moreira

O conceito de Transição Justa é considerado um princípio fundamental nas transformações para uma economia de baixo carbono. A ideia, que surgiu nos movimentos sindicais americanos nos anos 70 do século passado, busca garantir que trabalhadores e comunidades  não sejam deixados para trás à medida que indústrias com elevadas emissões de carbono passam pelo processo de phase-out. No entanto, como constatei no caso das centrais a carvão em Portugal, a realidade é muito mais complexa. O encerramento das centrais termoelétricas de Sines e Pego, em 2021, representou um momento significativo na transição energética do país, mas será que houve justiça nessas transições? Com base em entrevistas de campo e na análise de documentos oficiais, investiguei as implicações sociais, económicas e políticas dos encerramentos das termoelétricas para evidenciar os desafios de política pública e os problemas que os trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram e enfrentam.

Portugal tentou descarbonizar rápido o que era mais simples

Em alinhamento com o Pacto Ecológico Europeu e o Acordo de Paris, o país definiu o fim do carvão na sua matriz energética, anunciando o encerramento da central de Sines até 2023 e da central do Pego até 2021. No entanto, este calendário foi adiantado e no meio da crise da Covid-19 ambas as centrais encerraram. As decisões de encerramento foram diferentes, mas resultaram na maior redução de emissões de gases com efeito de estufa da história de Portugal, servindo para demonstrar o compromisso do país com os objetivos climáticos. Mas, enquanto os decisores políticos e ambientalistas celebravam este marco, centenas de trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram um futuro incerto.  

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Figura 1: Central termoelétrica a carvão de Sines, encerrada em 2021, Foto do autor

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Figura 2: Central termoelétrica a carvão do Pego, encerrada em 2021, Foto do autor

Quem decidiu e quem foi afetado

Uma Transição Justa é, acima de tudo, uma questão de governação—como as decisões são tomadas, quem é incluído e como os custos e benefícios são distribuídos. No caso de Sines e Pego, os encerramentos foram marcados por uma abordagem de cima para baixo, com diferentes atores “em cima” e a mesma classe de pessoas “em baixo”. Sines terá fechado porque a empresa de energia decidiu encerrar muito antes do previsto devido ao custo dos impostos verdes que o governo passou a implementar. Já a Central do Pego encerrou porque o governo não renovou a licença de produção de energia. Seja como for, as decisões-chave do governo foram tomadas sem consulta aos trabalhadores, sindicatos ou mesmo municípios. 

Para os responsáveis governamentais e os decisores europeus, o encerramento das centrais a carvão era um passo necessário na transição energética de Portugal. As autoridades enquadraram a mudança como uma transformação económica, uma “oportunidade”, em que as indústrias devem adaptar-se, os trabalhadores devem requalificar-se e as regiões devem reinventar-se. O Mecanismo de Transição Justa Europeu teria 60 milhões de euros para apoiar as regiões afetadas em Portugal, mas os atrasos no acesso a estes fundos deixaram muitos trabalhadores e comunidades sem apoio imediato. O discurso oficial enfatizava o otimismo em relação à liderança de Portugal na descarbonização, mas pouco reconhecia os impactos socioeconómicos imediatos: “ninguém fica para trás” – dizia o governo.

Presidentes de câmara e líderes sindicais têm outra versão. Embora reconheçam a necessidade de políticas de ação climática, criticaram a forma abrupta como os encerramentos ocorreram e a falta de um plano estruturado de transição. As economias locais que dependiam direta ou indiretamente das receitas do carvão sofreram um declínio acentuado. Em Abrantes, a central do Pego era o maior empregador e o seu encerramento criou o que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”—um período de estagnação económica sem alternativas de emprego imediatas.  

Os líderes sindicais entrevistados sublinharam que os trabalhadores mais vulneráveis, especialmente os precários subcontratados, foram os mais prejudicados pela transição. Muitos destes precários foram dispensados sem apoio, apesar do seu papel essencial nas operações das centrais. Na central de Sines os trabalhadores diretos foram realocados para outras funções ou para a reforma. No entanto, os subcontratados não tiveram as mesmas garantias, o que gerou um sentimento generalizado de desilusão com o processo.

As empresas energéticas posicionaram-se como facilitadoras da transição. Salientaram a importância das condições de mercado e da agenda europeia de descarbonização na definição das suas decisões. Embora em Sines a empresa tenha promovido programas de requalificação e recolocação para os seus trabalhadores, essas iniciativas não abrangeram todas as pessoas. No Pego, uma nova empresa de energias renováveis assumiu o ponto de injeção na rede elétrica, comprometendo-se a contratar antigos trabalhadores da central a carvão—mas, até ao momento, apenas uma pequena parte foi reempregada, refletindo os atrasos mais amplos nos projetos de investimento.  

O “Vale da Morte” da Transição

Um dos aspetos mais marcantes da eliminação do carvão em Portugal é o surgimento do que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”. Este termo refere-se ao período entre o encerramento das centrais e a materialização dos novos empregos verdes. O Mecanismo de Transição Justa foi concebido para colmatar esta lacuna, mas a sua implementação foi lenta e desigual. Muitos trabalhadores, a quem foram prometidos programas de requalificação, encontraram-se num limbo, à espera de investimentos que ainda não se concretizaram.  

Em Sines, o governo confiou em investimentos privados projetados—particularmente em hidrogénio verde e centros de dados—para absorver os trabalhadores deslocados. No entanto, estes projetos ainda estão em fase embrionária, deixando muitos trabalhadores subcontratados no desemprego. No Pego, face ao atraso dos apoios europeus, o governo criou um apoio ad hoc para garantir os salários para trabalhadores em formação.

Que lições do fim do carvão?

O caso português sublinha a necessidade de planeamento e governança das políticas de transição. Embora a ação climática seja essencial, a forma como as transições são geridas determina se exacerbam ou mitigam as desigualdades sociais. 

Sines e Pego fazem-nos reter três ideias:  

A governança da Transição Justa deve ser formalizada

A ausência de um quadro formal de governação excluiu trabalhadores, sindicatos, municípios e comunidades do processo de decisão. Seria importante criar um Comité de Transição Justa no âmbito do Conselho Económico e Social, para permitir um debate tripartido. Este comité deveria acompanhar os planos regionais de transição, garantindo que as comunidades afetadas tenham voz nas políticas climáticas.  

Só o planeamento evita o “Vale da Morte”

A lacuna entre o encerramento das centrais a carvão e a criação de novos empregos pode deixar muitos trabalhadores em situações precárias. As políticas climáticas devem incluir cronogramas para a requalificação, vias garantidas de emprego e acesso à proteção social. 

Os sistemas de Segurança Social têm de ter em conta a ação climática  

Os mecanismos existentes da Segurança Social não foram concebidos para acomodar mudanças industriais de grande escala, mas é lhes exigido que respondam a várias alterações no modo de trabalhar, desde a Inteligência Artificial à ação climática. Os trabalhadores enfrentaram perdas significativas de rendimento, com opções limitadas de apoio financeiro. No caso das políticas climáticas, é necessário equacionar a realocação de impostos verdes para o financiamento da segurança social, tornando-os resilientes e adequados para uma transição para uma economia de baixo carbono.

E então, foi justo?

À luz dos padrões estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a Transição Justa, o fim do carvão em Portugal não cumpriu os princípios de uma transição justa. Embora se tenham alcançado os objetivos ambientais, a falta de diálogo social, as alternativas económicas tardias e a proteção insuficiente dos trabalhadores ilustram os desafios na implementação das políticas de ação climática.

À medida que Portugal prossegue o seu caminho para a neutralidade carbónica, o caso de Sines e Pego pode servir de alerta. Estes casos destacam a necessidade de abordagens políticas integradas que priorizem tanto a sustentabilidade ambiental como a equidade social. 

Ricardo Moreira é doutorando do Programa de Doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. moreiraricardo@edu.ulisboa.pt

Incêndios, Sensacionalismo e Invisibilidade: como os media ignoram as causas estruturais de Pedrógão Grande

Por: João Carlos Sousa

O incêndio de Pedrógão Grande, ocorrido em junho de 2017, foi um dos mais devastadores da história recente de Portugal, resultando na morte de 66 pessoas e na destruição de milhares de hectares de floresta. A tragédia capturou a atenção dos media portugueses durante duas semanas, com uma cobertura intensa que acompanhou o desenvolvimento da crise, os esforços de combate ao fogo e as consequências humanas e materiais. No entanto, um aspeto crucial ficou à margem do debate mediático: as causas estruturais dos incêndios florestais, como as alterações climáticas (AC) e a desertificação do interior rural português.

A Cobertura Jornalística: Emoção e Sensacionalismo

A análise de 427 notícias, publicada no artigo “Anatomia de uma Catástrofe Mediática: Pedrógão Grande e a política da invisibilidade,” revelou que a cobertura mediática seguiu um padrão trifásico. Nos primeiros dias, houve um foco intenso na descrição do desastre em si: imagens dramáticas, relatos de testemunhas e declarações de autoridades. Nos dias seguintes, a narrativa mediática deslocou-se para a identificação das vítimas e as consequências humanas, privilegiando um tom emocional e sensacionalista. Por fim, na última fase da cobertura, a atenção voltou-se para as responsabilidades políticas e jurídicas, deixando para trás qualquer aprofundamento sobre os fatores ambientais e sociais subjacentes à tragédia.

Figura 1 – Judite Sousa a realizar direto junto do corpo de uma das vítimas; Fonte: Captura de imagem do direto ocorrido no Jornal Nacional da TVI de 18 junho 2017

Este padrão de cobertura reflete um modelo de jornalismo de crise que prioriza o impacto imediato e a dramatização dos eventos, em detrimento da exploração das suas causas profundas. Como apontam estudos internacionais (cf. Houston et al, 2012; Crow et al, 2016; Lock et al., 2024), os media tendem a focar-se no que é visível e imediato, deixando de lado explicações estruturais que exigem mais contexto e análise especializada. Esta abordagem contribui para a superficialidade do debate público (Pantti e Wahl-Jorgensen, 2007) e limita a capacidade da sociedade de enfrentar desafios ambientais de longo prazo.

O Silêncio sobre as Alterações Climáticas e o Despovoamento Rural

Um dos aspetos mais preocupantes da cobertura mediática de Pedrógão Grande foi a ausência de uma discussão sobre as alterações climáticas (AC) e o despovoamento do interior rural português. Apesar do crescente reconhecimento científico de que os incêndios florestais estão a tornar-se mais frequentes e severos devido às AC, esta ligação raramente foi mencionada nas reportagens analisadas. Concomitantemente, a desertificação do interior e o abandono das práticas agrícolas tradicionais, que contribuem para o aumento da biomassa combustível, foram ignorados na narrativa mediática.

Os incêndios florestais não são apenas fenómenos naturais, mas também consequências de decisões políticas e económicas. O abandono do interior, a falta de gestão florestal e a crescente intensificação de eventos climáticos extremos criam condições ideais para a propagação de grandes incêndios. No entanto, ao concentrar-se quase exclusivamente nas consequências imediatas, a cobertura mediática negligenciou a necessidade de debater políticas públicas de prevenção e mitigação dos riscos associados aos incêndios.

Este fenómeno não é exclusivo de Portugal. Estudos sobre a cobertura de desastres naturais noutras latitudes demonstram que os media frequentemente falham em contextualizar os eventos dentro de processos mais amplos, optando por um enquadramento que privilegia o imediato e o emocional. No caso português, esta abordagem reforça uma cultura de invisibilidade das questões ambientais e territoriais, dificultando a implementação de políticas eficazes para mitigar futuros incêndios. Sem uma compreensão pública abrangente dos fatores que contribuem para os incêndios, as transformações estruturais necessárias ficam relegadas para segundo plano.

Figura 2 – Carros carbonizados apanhados pelo incêndio; Fonte: Imagem divulgada pela edição da Revista Sábado de 24 maio de 2021

Outro fator importante é o impacto económico da falta de cobertura aprofundada. O turismo e a agricultura, setores essenciais para o interior do país, sofrem diretamente com a devastação dos incêndios. A ausência de um debate mais alargado sobre políticas de reflorestação sustentável, incentivo à agricultura regenerativa e reocupação do interior rural contribui para a perpetuação de um ciclo de abandono e degradação ambiental. Sem uma abordagem mais estruturada nos media, a tomada de decisões políticas fica à mercê da pressão mediática de curto prazo, sem respostas efetivas para problemas sistémicos.

O Papel dos Media na Transformação do Debate Público

A cobertura jornalística de crises como a de Pedrógão Grande tem implicações significativas na forma como o público e os decisores políticos percebem os riscos ambientais. Se os media não abordam as causas estruturais dos incêndios florestais, torna-se mais difícil gerar um debate informado e impulsionar as mudanças políticas necessárias. O papel dos jornalistas vai além de reportar factos: é também sua responsabilidade contextualizar os acontecimentos e contribuir para uma compreensão mais aprofundada dos problemas socioambientais.

Algumas iniciativas jornalísticas internacionais têm demonstrado que é possível abordar desastres naturais de maneira mais abrangente. Projetos de jornalismo de dados, por exemplo, têm explorado a relação entre incêndios ou inundações e AC, utilizando mapas interativos e análises estatísticas para ilustrar padrões e tendências. Um bom exemplo inclui as investigações do projeto “Boomtown, Burntown” da ProPublica. Estas iniciativas demonstram que uma abordagem mais aprofundada e baseada em dados pode ajudar a compreender melhor os incêndios e a tomar medidas eficazes para preveni-los.

Neste sentido, os media podem e devem desempenhar um papel educativo, informando a população sobre práticas de prevenção e adaptação às novas realidades climáticas. A comunicação de risco e a sensibilização para medidas de mitigação são fundamentais para reduzir o impacto dos incêndios. Jornalistas especializados em ambiente e ciência poderiam acrescentar valor à cobertura destes eventos, proporcionando uma análise mais informada e com menor pendor sensacionalista.

Outro aspecto relevante é o papel das redes sociais digitais na disseminação de informação. Embora os media tradicionais sejam fundamentais para a construção da agenda mediática, as redes sociais ampliam e moldam a forma como a informação circula e é percecionada pelo público. A rápida disseminação de imagens e vídeos pode reforçar a narrativa emocional e sensacionalista, mas também oferece oportunidades para um jornalismo mais colaborativo e investigativo. Projetos de fact-checking e análises aprofundadas podem contribuir para uma melhor compreensão dos fenómenos e incentivar o envolvimento cívico na mitigação dos riscos ambientais.

A tragédia de Pedrógão Grande expôs não apenas a vulnerabilidade do território português aos incêndios florestais, mas também as limitações da cobertura mediática em momentos de crise. Ao ignorar as causas estruturais do problema, os media contribuíram para a sua invisibilidade no debate público. Para que situações como esta não se repitam, é fundamental que o jornalismo adote uma abordagem mais crítica e contextualizada, ajudando a sociedade a compreender os desafios ambientais e sociais que enfrentamos. Com efeito, informar não é apenas relatar o que aconteceu, mas também explicar por que aconteceu e como podemos evitar que se volte a repetir.

A longo prazo, uma cobertura mediática mais informada pode incentivar alterações nas políticas ambientais e promover uma maior responsabilização dos governos e das empresas na gestão dos recursos naturais. Sem uma transformação na forma como os incêndios florestais são abordados pelos media, o risco de repetir tragédias como a de Pedrógão Grande continuará elevado. O jornalismo tem o poder de moldar narrativas e influenciar políticas públicas, e é crucial que esse poder seja utilizado de maneira responsável e construtiva. Só com agentes mediáticos comprometidos com a verdade e a informação objetiva poderemos evitar que a próxima tragédia se torne apenas mais uma manchete efémera.

João Carlos Sousa é doutorado em Ciências da Comunicação pelo Iscte-IUL com uma tese com o título “Sócrates e os “outros”: contributos para a compreensão do efeito mediático na confiança institucional” com bolsa individual da FCT (SFRH/BD/136605/2018). É licenciado em Sociologia (2009) e Mestre em Sociologia: exclusões e políticas sociais (2013) pela Universidade da Beira Interior. Foi bolseiro de investigação do projeto (A Matriz das) Atitudes Populistas e Negacionistas face à Ciência PTDC/CPO-CPO/4361/2021 no ICS-ULisboa. Joao.Carlos.Sousa@iscte-iul.pt

B-WaterSmart: contributos para uma maior resiliência hídrica na Europa

Por: Carla Gomes

Durante muito tempo considerado um problema dos países do Sul, as secas prolongadas  dos últimos anos já lançaram o alerta sobre o risco de escassez de água no resto da Europa. A eficiência hídrica tornou-se uma prioridade, levando ao lançamento de programas de financiamento comunitário para uma “gestão inteligente” da água, em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Neste âmbito, o Horizon 2020 lançou a call CE-SC5-04-2019 – Building a water-smart economy and society, em que foram aprovados os cinco projetos do consórcio CIRSEAU. O primeiro a ser concluído, em Agosto de 2024, foi o B-WaterSmart, uma Research and Innovation Action em que o ICS-ULisboa coordenou a área de Sociedade, Governança e Políticas.

O B-WaterSmart envolveu seis cidades e regiões da Europa, constituídas em “Living Labs” (“Laboratórios Vivos”): Alicante (Espanha), Bodø (Noruega), Flandres (Bélgica), Lisboa (Portugal), Veneza (Itália) e Frísia Oriental (Alemanha). O consórcio foi coordenado pelo IWW Water Centre da Alemanha e envolveu 35 entidades, entre elas instituições de investigação, municípios, entidades gestoras de água e parceiros tecnológicos.

O “Laboratório Vivo” de Lisboa, coordenado pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), acaba de ser distinguido nos PT Global Water Awards 2024, na categoria de Investigação, Desenvolvimento e Inovação. O galardão foi anunciado na 19.ª Expo Conferência da Água. No LL de Lisboa, o ICS assumiu o papel de moderador da Comunidade de Prática, plataforma de envolvimento de atores-chave, que terá continuidade através do novo Water-Oriented Living Lab (WoLL) de Lisboa.

O LL Lisboa desenvolveu um conjunto de soluções, incluindo ferramentas de apoio à decisão e à avaliação de risco da agua para reutilização, bem como certificados inovadores para edifícios (que incluem eficiência hídrica e energética) e um observatório para o ciclo urbano da água. O projeto contribuiu, assim, para uma economia circular da água e para a adaptação às alterações climáticas. O LL Lisboa contou ainda com a participação da Lisboa E-Nova, da ADENE (Agência para a Energia), das Águas do Tejo Atlântico e da Baseform. 

Crise hídrica requer “abordagem holística”

As alterações climáticas vêm perturbar o ciclo da água, tornando mais desafiante geri-lo ao longo do ano. Por um lado, as secas prolongadas e a redução da precipitação anual têm vindo a agravar o risco de escassez (figura 1). Mas, por outro lado, as cheias catastróficas que têm assolado vários países, como foi recentemente o caso de Valência, em Espanha, vêm alertar para a necessidade de gerir melhor as águas pluviais, criando sistemas de armazenamento que ajudem a prevenir as cheias e a ter água disponível durante o ano. As crescentes pressões sobre os recursos hídricos requerem uma abordagem integrada, que nos últimos anos se tem vindo a assumir sob o conceito de resiliência hídrica. Não está apenas em causa a segurança do abastecimento, como também a manutenção da qualidade da água disponível e a saúde dos ecossistemas. 

O uso de pesticidas, que o Pacto Ecológico previa cortar para metade até 2030, tem sido um grande foco de conflito, tendo contribuído para os protestos de agricultores em Março de 2024. No entanto, o problema da poluição da água causada por pesticidas é grave e as metas previstas na Diretiva Quadro da Água estão longe de estar alcançadas, nem em 2015, como inicialmente previsto, nem no prazo alargado de 2027. Apenas 37%  das águas superficiais da Europa têm um estado ecológico considerado ‘bom’ ou ‘elevado’, sublinha o relatório sobre o estado da água da Agência Europeia do Ambiente.

Perante sucessivos anos secos, o racionamento de água imposto em pleno inverno tornou-se uma realidade em vários países, incluindo Portugal, Espanha e Itália. No Algarve (Janeiro de 2024) rapidamente geraram protestos do setor agrícola, o mais penalizado pelos cortes. Prevê-se que o acesso à água potável esteja comprometido em 35% da área do continente europeu até 2070, pelo que urge garantir a proteção dos grupos sociais mais vulneráveis.

Figura 1 – De acordo com o Observatório Europeu da Seca, mais de 17% do território UE-27 + Reino Unido estava em nível de ‘aviso’ de seca em Dezembro de 2024. Fonte: https://drought.emergency.copernicus.eu/

Este sentido de urgência deu já origem a uma Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE), apresentada em Setembro de 2024, que reclama um plano de ação estratégico e holístico para a água na UE. Uma Estratégia para a Resiliência Hídrica, bem como um novo Ato para Economia Circular, estão entre as prioridades da Comissão Europeia no mandato 2024-2029.

No último Eurobarómetro relativo às “Atitudes dos Europeus sobre o Ambiente” (2024), 78% dos inquiridos apoiam medidas adicionais para enfrentar os problemas de gestão de água na Europa. Quando questionados sobre o papel de cada setor socioeconómico na melhoria da eficiência hídrica, a indústria, o sector elétrico e o turismo são apontados como aqueles que têm feito um menor esforço nesse sentido (figura 2).

A chart of water consumption

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Figura 2 – Perguntas sobre água no Eurobarómetro “Atitudes dos Cidadãos Europeus em Relação ao Ambiente” (Maio 2024). Fonte: https://europa.eu/eurobarometer/surveys/detail/3173 (Creative Commons Attribution 4.0 International licence)

Nos inquéritos realizados pelo B-WaterSmart (figura 3), a disponibilidade de dados e a monitorização dos consumos revelou-se a principal prioridade para uma melhor governança da água, seguida da integração entre as políticas setoriais, em particular no nexus água-energia. O financiamento é outra preocupação central, tendo em conta que abordagens eficientes, tais como a reutilização, requerem investimentos avultados em infra-estruturas e sistemas de tratamento.

Figura 3 – Inquérito a stakeholders, B-WaterSmart (N = 60) – Q: Regarding water governance in your region, which of these areas you think need to be improved to ensure the adoption of water-smart solutions, if any?

As soluções desenvolvidas pelo B-WaterSmart, bem como as recomendações de política, pretendem contribuir para uma melhor resiliência hídrica, podendo ser replicadas em outras regiões com desafios semelhantes, na Europa e mais além. Os resultados do B-WaterSmart estão disponíveis nos relatórios publicados ao longo destes quatro anos,  incluindo a análise dos modelos de governança em cada país, com recomendações específicas para uma governança adaptativa, bem como uma análise das principais barreiras e fatores impulsionadores para a aceitação social das soluções de gestão inteligente, abrangendo aspetos económicos, sociais e políticos. 

Carla Gomes é investigadora nas áreas da justiça ambiental e adaptação climática. Colaborou com o ICS-ULisboa em diversos projetos interdisciplinares, mais recentemente no B-WaterSmart – Acelerando a gestão inteligente da água nas regiões costeiras da Europa (Horizon 2020, Grant Agreement N.º 869171), onde liderou o work package Society, Governance, Policy.

Nordeste brasileiro: diferentes narrativas sobre desenvolvimento e transição energética

Por: José Gomes Ferreira

O Nordeste brasileiro é constituído por nove estados, que ocupam 1.558.000 km². Segundo o Censo 2022 residem na região cerca de 55 milhões de habitantes. Dado o atraso no desenvolvimento económico, a possibilidade das energias renováveis integrarem os investimentos fez parte, em 1959, das prioridades do documento Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, coordenado por Celso Furtado, que deu origem à Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

Arranque

Foi a partir do apagão no fornecimento de eletricidade, ocorrido em 2001 e resultante da seca que afetou o Brasil, que a produção de energias renováveis foi desenvolvida. Ainda nesse ano, o Governo Federal avançou com o Programa Emergencial de Energia Eólica (PROEÓLICA), substituído no ano seguinte pelo Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA). Data também de 2001 o primeiro Atlas de Potencial Eólico Brasileiro, que mostrou que o Nordeste tem os ventos mais favoráveis à produção eólica. Em 2006, foi publicado o Atlas Brasileiro de Energia Solar, destacando igualmente o potencial produtivo do Nordeste. A implementação de empreendimentos eólicos tem sido muito rápida, enquanto que a produção de energia solar está ainda em fase de expansão.

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A interdisciplinaridade na pesquisa sobre mudança climática: reflexões a partir da experiência do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia no Brasil

Por: Julia S. Guivant

O apelo ao estudo interdisciplinar sobre mudança climática passou a ser bastante consensual, com maior número de periódicos publicando artigos com este caráter, e presente em editais de agências de financiamento. Este destaque está intimamente relacionado com a evidência incontestável sobre o papel da influência humana no clima. A interdisciplinaridade é considerada chave tanto para entender como as sociedades interpretam e respondem às mudanças climáticas quanto para formular e orientar na implementação de políticas públicas para mitigação e adaptação. É importante diferenciar a interdisciplinaridade, o estudo de um problema complexo integrando num esforço coletivo diversas perspectivas disciplinares, sem privilegiar um método ou uma teoria disciplinar, da multidisciplinaridade. Esta estuda um tópico a partir da perspectiva de várias disciplinas ao mesmo tempo, sem procurar integrar estas. E se diferencia da transdisciplinaridade, que tende a ser definida como um tipo de interdisciplinaridade, que procura integrar não apenas disciplinas, mas conhecimentos diversos, fora da academia.

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Adaptação climática: governança da água tem de ser mais justa e resiliente

Por: Carla Gomes

As medidas de racionamento de água no Algarve, anunciadas em janeiro pelo governo português para os setores da agricultura, turismo e até o doméstico, são um claro sinal de alerta sobre futuros cenários de escassez. Os eventos climáticos extremos, a maior parte dos quais estão relacionados com a água ou com a falta dela, causaram perdas de meio trilião de euros na Europa nos últimos 40 anos, bem como milhares de mortes. As secas são responsáveis, por si só, por 9 mil milhões de euros anuais de perdas.

O envolvimento dos cientistas sociais é mais crucial do que nunca para enfrentar a crise climática e para garantir uma governança da água mais resiliente e mais justa. Um tema que estará em discussão no dia 19 de Março no ICS-ULisboa, no âmbito do seminário SHIFT “Water justice for climate adaptation” (11h-13h). O documentário “Esta é uma história sobre água”, sobre os problemas e conflitos suscitados pela escassez hídrica no sul de Portugal, será o ponto de partida para o debate, que conta com a presença do realizador.

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Dois anos de Shared Green Deal: balanço das principais atividades

Por: Mónica Truninger

O projeto Europeu Shared Green Deal foi apresentado num post deste blogue há quase dois anos, a 16 de fevereiro de 2022. Naquela altura, o projeto estava ainda no início de um longo percurso de cinco anos. Por isso, vale a pena fazer agora um balanço das principais atividades realizadas passados dois anos, sobretudo aquelas que envolveram mais ativamente os membros do grupo de investigação SHIFT que fazem parte da equipa deste projeto.

Para recordar, o objetivo do Shared Green Deal é estimular ações conjuntas entre parceiros académicos e não académicos em torno de iniciativas promotoras do Pacto Ecológico Europeu (PEE), em toda a Europa. Para tal, estão a ser utilizadas ferramentas das Ciências Sociais e Humanas (CSH) para apoiar a implementação de oito áreas do Pacto Ecológico Europeu, a nível local e regional. Estas áreas são: Energia Limpa, Economia Circular, Renovações Eficazes, Mobilidade Sustentável, Alimentação Sustentável e Preservação da Biodiversidade. O trabalho realizado em cada uma destas frentes vai igualmente contribuir para dois importantes eixos transversais: a ação climática e as ambições de poluição zero do Pacto Ecológico Europeu.

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