Por: Roberto Falanga
Nos últimos tempos, o debate público sobre “assembleias de cidadãos” tem vindo a ganhar palco. No entanto, este debate não é recente na academia, como o demonstra a vasta literatura sobre o tema. O que se destaca do debate em curso é certamente o impulso dado por organismos internacionais para a realização de assembleias, levando assim a um aumento exponencial de experiências no mundo. Neste post, pretendo abordar alguns aspetos deste debate, visando clarificar as caraterísticas essenciais das assembleias de cidadãos. A razão principal deste post prende-se com a relativa novidade deste debate em Portugal e as potencialidades abertas por experiências recentes, como o Conselho de Cidadãos lançado pela Câmara Municipal de Lisboa, em 2022.

O que são e o que não são as assembleias de cidadãos?
As assembleias de cidadãos podem ser entendidas como experiências de natureza participativa onde um conjunto de cidadãos é convidado por uma ou mais entidades a refletir, aprender, discutir e produzir recomendações sobre um tema de interesse público. Apesar de não haver um protótipo único de assembleia, este tipo de experiências insere-se na trajetória histórica dos chamados “mini-públicos deliberativos”, tais como os “júris cidadãos”, as “células de planeamento”, os “deliberative polls” e as “consensus conferences”. Vários organismos internacionais têm vindo a contribuir para o desenho e realização de mini-públicos, partindo do pressuposto de que a seleção aleatória de um conjunto de pessoas consegue garantir um mínimo de representatividade da população geral. Mais recentemente, a União Europeia deu um ulterior impulso a este debate através da organização da “Conferência sobre o Futuro da Europa” (CoFoE), onde um conjunto de cidadãos foi selecionado aleatoriamente, produzindo um total de 178 recomendações, que foram seguidamente agregadas em 49 propostas. O anúncio de uma futura conferência sobre o tema da alimentação deixa entender que a CoFoE não terá sido um evento isolado, sendo que a atual presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, mutuando as palavras do antigo presidente do Parlamento Europeu David Sassoli, declarou que as assembleias de cidadãos têm de começar a fazer parte do nosso modelo democrático: “Democracy has not gone out of fashion, but it must update itself in order to keep improving people’s lives”.
Em Portugal, a difusão de assembleias de cidadãos tem sido impulsionada, em particular, por algumas entidades, como o Fórum dos Cidadãos. Em paralelo, o país tem vindo a testemunhar o crescimento de outros tipos de eventos e processos de natureza participativa. Nas últimas duas décadas, por exemplo, a difusão de orçamentos participativos (OPs) ganhou destaque internacional pela elevada taxa de experiências ao nível local, bem como à escala regional e nacional. De um modo geral, os OPs são promovidos por entidades públicas que convidam todos os cidadãos a decidir sobre como usar uma verba disponibilizada para a realização de projetos de interesse público. Perante este cenário, convém entender melhor o que são e o que não são as assembleias de cidadãos, bem como o que distingue experiências de democracia deliberativa e democracia participativa.
Do ponto de vista teórico, as assembleias de cidadãos são estudadas no âmbito da “democracia deliberativa”. O termo deliberativo é aqui utilizado a partir do seu significado nas línguas anglófonas para designar o processo de troca de opiniões e discussão entre participantes. Os objetivos de experiências deste tipo referem-se principalmente aos conceitos avançados por Jurgen Habermas no que diz respeito à comunicação entre pares em condições de igualdade e livres de qualquer forma de coerção. Ao trocarem opiniões, os participantes são convidados a aprender uns com os outros e a mudar as suas ideias. No entanto, segundo alguns autores, como Ian Shapiro ou Chantal Mouffe, a democracia deliberativa não passa de um ideal que dificilmente se pode concretizar no dia-a-dia, limitando-se assim a práticas de pouco impacto que, aliás, reproduzem uma visão distorcida do poder.
Por deliberação não se entende, portanto, um tipo de discussão vinculativa, sendo que a maioria das assembleias de cidadãos costuma focar na compilação e entrega de recomendações aos representantes eleitos, deixando-lhes assim margem de decisão sobre as mesmas. Pelo contrário, outros processos, como os OPs, partem de pressupostos diferentes tais como a necessidade de dotar os cidadãos de poder de decisão com base num compromisso predefinido consubstanciado através de uma verba pública. O que distingue as assembleias de cidadãos de outros processos participativos é também o foco na comunicação entre os participantes. Como referido anteriormente, a atenção na troca e evolução das opiniões pessoais é um elemento essencial para a aprendizagem dos participantes. Para este efeito, as assembleias de cidadãos costumam investir num tipo de participação mais fundamentada através da partilha de informação factual e experiencial. De maneira diferente, outros processos participativos são orientados por objetivos distintos, tais como a partilha de poder entre participantes e eleitos ou ainda a inclusão social de grupos marginalizados. Finalmente, é importante sublinhar que o procedimento utilizado para convidar e reunir os participantes é mais um aspeto altamente diferenciador. Conforme referido, a seleção aleatória dos participantes é um pilar dos mini-públicos. Em alguns casos, o sorteio pode ainda ser estratificado de maneira a garantir maior representatividade do público geral. É exatamente o caráter “fractal” do mini-público que lhe outorga legitimidade perante as instituições democraticamente eleitas e a sociedade.
O Conselho de Cidadãos de Lisboa
A primeira assembleia de cidadãos promovida por uma autarquia portuguesa nos moldes previstos internacionalmente foi o Conselho de Cidadãos de Lisboa (CCL). Inserido no programa eleitoral do atual executivo camarário, sob a liderança do engenheiro Carlos Moedas, o CCL foi lançado em janeiro de 2022 com o intuito de debater temas prioritários para a cidade. A primeira sessão do CCL teve lugar nos dias 14 e 15 de maio de 2022, um fim-de-semana que convocou um conjunto de 50 cidadãos selecionados através de um sorteio. Estes participantes tinham-se registado previamente através de um formulário disponibilizado pela CML no seu site, e foi a partir da base dos 2351 inscritos que o sorteio foi efetuado, tendo uma entidade externa e independente sido contratada para este efeito: o Fórum dos Cidadãos. Outra entidade externa foi contratada para a facilitação dos dois dias de deliberação dedicados, nesta primeira sessão, ao tema das alterações climáticas, com o apoio de um conjunto de peritos convidados pela CML para partilhar conhecimento e experiências neste âmbito. Finalmente, o ICS foi a entidade externa convidada para produzir uma avaliação rigorosa e independente, sob a minha coordenação, disponível para consulta no site do CCL.
Cabe realçar que a avaliação de assembleias de cidadãos, apesar de recomendada, não é um requisito obrigatório. No entanto, o ritmo acelerado com que as experiências de deliberação têm vindo a acontecer e o crescente debate sobre as mesmas exige aos promotores, bem como aos participantes e sociedade civil no geral, conhecer mais a fundo os propósitos e as dinâmicas destas experiências. Para fins de comparação e divulgação nacional e internacional, decidiu-se utilizar o recente relatório sobre a avaliação de assembleias de cidadãos publicado pela OCDE como referência principal. Este documento ajudou a formular critérios e escolher métodos adequados para a análise das três fases principais do CCL: preparação e planeamento; deliberação e resultados; caminhos para o impacto. A recolha de informação de caráter quantitativo e qualitativo foi extremamente útil para proporcionar uma visão abrangente e pormenorizada dos múltiplos aspetos envolvidos nesta primeira sessão, destacando-se ainda a decisão de utilizar um desenho de pesquisa quase-experimental através da aplicação de inquéritos pré-pós, isto é, antes e depois da sessão deliberativa, com participantes e não participantes.
O que podem vir a ser as assembleias de cidadãos?
O CCL mostra que a força do debate em curso sobre assembleias de cidadãos e a atratividade que as mesmas têm vindo a exercer nos representantes políticos chegou a Portugal. No caso de Lisboa em particular, é útil realçar que a decisão de lançar o CCL foi tomada num contexto onde outros processos participativos estavam já em andamento. De resto, é interessante notar como a realização do CCL não é um caso isolado na Península Ibérica, sendo que na vizinha Espanha tem vindo a verificar-se uma multiplicação de assembleias de cidadãos sobre temas diversos e a múltiplas escalas. Esta conjunção deixa adivinhar não apenas que modelos de difusão parecidos poderão ocorrer em Portugal também, mas que estaremos perante a fase inicial de uma nova vaga deste tipo de experiências na Europa do Sul.
Alargando o espectro desta reflexão para o futuro da democracia na Europa, os teóricos fazem questão de dizer que estas experiências devem ser entendidas como um complemento às instituições democraticamente eleitas. Cresce, no entanto, o debate sobre as falhas do atual sistema partidário e a polarização do debate público. Se, por um lado, as assembleias de cidadãos podem inserir-se como um mecanismo integral das atuais instituições democráticas, por outro, abre-se a possibilidade de repensar radicalmente o funcionamento das nossas democracias. O valor desta reflexão dependerá também da capacidade de resposta das assembleias de cidadãos. Por esta razão, monitorizar e avaliar estas experiências já não podem ser encaradas como opções, mas sim necessidades. Seja qual for o futuro das assembleias de cidadãos em Portugal, será importante, para não dizer imperativo, entender de que forma estas conseguem juntar as solicitações de todos, em particular dos que menos voz têm no debate público, e de que maneira os seus resultados conseguem ter impactos significativos no atual sistema político.
Roberto Falanga é Investigador Auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. A sua investigação foca-se nas diferentes formas de participação cidadã na tomada de decisão. Coordena projetos locais, nacionais e internacionais sobre este tópico, colaborando também com entidades públicas para o acompanhamento de processos participativos e deliberativos.