Por João Guerra
Pouco depois do coronavírus ter emergido no panorama mundial e ocupado um lugar imperativo na imprensa, nos fora de decisão política e na vida quotidiana, as anteriores preocupações sociais perderam fôlego, tal a proeminência alcançada pela nova ameaça. Para isso contou a descomunal extensão das suas consequências, de que não há memória recente quer na saúde pública, quer na economia, quer nas comunidades. Cada vez mais pronunciados, os efeitos múltiplos e multiplicadores da pandemia fazem adivinhar, já a curto e médio prazos, convulsões sociais e crises políticas não menos inquietantes.

Estamos, portanto, perante muito mais do que uma crise sanitária. Trata-se de uma crise sistémica, simultaneamente económica, social e ambiental. Afinal, uma crise de sustentabilidade.
Na semana em que este post começava a ser gizado, em meados de outubro de 2020, as dúvidas sobre a existência de uma segunda vaga pandémica já se tinham dissipado: os contágios sucediam-se a um ritmo acelerado, tendo sido, até à data, notificados à Organização Mundial de Saúde cerca de 40 milhões de casos de COVID-19, incluindo mais de um milhão de mortes. Apesar dos apelos de técnicos de saúde e responsáveis políticos, o cansaço provocado por sucessivas medidas de confinamento e distanciamento social pareciam estar a provocar o “afrouxar da guarda” entre o cidadão comum, franqueando o caminho ao novo vírus um pouco por todo o mundo. Em Portugal, ultrapassavam-se, pela primeira vez, os dois milhares de infeções diárias.
Mas a verdade é que os sinais da maior debilidade societal (espelhada no afrouxamento de medidas, ou, pelo menos, nalguma resistência em pô-las em prática) não se ficam apenas pelo menor empenho dos cidadãos. A hesitação dos governos nacionais, pressionados pela necessidade de revitalizar a economia e regressar a uma trajetória de “crescimento sustentável”, como se defendia, no Roteiro europeu para o levantamento das medidas de contenção do coronavírus, é notória e transversal. Por outro lado, a contestação a medidas de prevenção (mesmo que menos exigentes) cresce um pouco por todo o mundo. Multiplicam-se protestos nem sempre confluentes, alargando-se a contestação a um espectro diversificado de manifestantes: desde os defensores de melhores e mais eficazes políticas de testagem e reforço de serviços saúde e assistência social, até aos defensores de teorias da conspiração que entendem a COVID-19 como um embuste e rejeitam quaisquer medidas preventivas.
Neste contexto, as desigualdades estruturais pré-existentes exacerbam-se, à medida que se multiplicam as dificuldades económicas e os serviços públicos perdem capacidade de resposta. A comunidade de todas as nações precisaria, por isso, de um contrato social transversal, mais do que nunca, viável, justo e inclusivo, em linha com o que já era preconizado pela Agenda 2030 e agora, na prática, se mantém postergado.
No entanto, não serão apenas os sinais de degradação socioeconómica a adiar tais imperativos. Em simultâneo, retrocederam movimentos que, face à emergência climática (que se mantém), estavam a ganhar protagonismo no espaço público, como são exemplo o Fridays for Future, ou o People Climate Movement, atualmente confinados a atividades on-line. Por outro lado, apesar de alguns sinais positivos decorrentes do confinamento e da consequente diminuição de emissões de gases de efeito de estufa (GEE), a poluição causada por material descartável usado para fazer face à pandemia (máscaras, luvas e outro equipamento de proteção individual produzido, em grande parte, com recurso ao polipropileno) multiplicou-se e começa a competir com os restantes resíduos da sociedade de consumo.
Assim, ao contrário do que estava previsto antes da pandemia, os produtos descartáveis de uso único aumentaram exponencialmente e os “anti-Covid-19” são agora uma realidade que invade não apenas os aterros sanitários, mas também ruas, bosques, parques, praias, rios e oceanos, pondo em risco não só a vida selvagem e a qualidade ambiental, como a qualidade de vida e a saúde humana. Segundo um estudo desenvolvido por um consórcio de Organizações Não-Governamentais de Ambiente (ANP|WWF, SCIAENA e ZERO), se, no mundo, todos usássemos uma máscara descartável por dia (tal como a Direção-Geral de Saúde chegou a defender para Portugal), ao fim de um ano atingir-se-iam três biliões destes resíduos de uso único, cujo destino seria, no melhor dos cenários, o aterro, sem hipótese de reciclagem.

Quer isto dizer que também as práticas de reciclagem e reutilização (criadas e estimuladas nas últimas décadas) dão sinais de retrocesso. Aos que ainda pouco se preocupavam com as questões do ambiente, juntam-se agora muitos outros cidadãos que, mesmo que genuinamente comprometidos com a reciclagem e o consumo responsável, são impelidos, pela pandemia e pelas autoridades de saúde, a descartar material de proteção e outro material de uso único, a ritmos já em desuso.
O resultado não se fez esperar. Já todos testemunhámos o descarte irresponsável deste tipo de resíduos nas ruas, nos ecopontos (apesar do Ministério do Ambiente aconselhar o descarte no contentor de lixo indiferenciado), nas estações de tratamento de águas residuais (evidenciando o descarte pela rede de esgotos), nos rios e oceanos, onde os sinais de poluição resultante deste “lixo COVID” começam a revelar-se preocupantes.
Do ponto de vista da sustentabilidade, a diminuição de emissões de GEE pode, portanto, ser insuficiente para colmatar o retrocesso verificado, desde logo nas condições de vida das populações, e depois nas práticas de consumo e reciclagem e no consequente agravamento da degradação ambiental. Até porque tudo aponta para que as melhorias desencadeadas pela pandemia sejam temporárias – prevendo-se o retorno ao nível de emissões de GEE logo que os bloqueios e confinamentos abrandem ou desapareçam.
Resta-nos esperar que o caminho previamente traçado pela Agenda 2030 – não deixar ninguém para trás num planeta social e ambientalmente sustentável – seja retomado, reassumindo-se, nomeadamente, a redução de desigualdades, o fortalecimento de serviços públicos e o estímulo de práticas de reciclagem e consumo que permitam reduzir velhos e novos resíduos plásticos. Confiar que, afinal, o coronavírus não se transforme em mais um óbice permanente para a sustentabilidade.
João Guerra é sociólogo, investigador auxiliar no ICS-ULisboa e cocoordenador do Seminário de Ciências da Sustentabilidade e Alterações Climáticas no Programa Doutoral de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. É membro da equipa de pesquisa do Grupo de Investigação em Ambiente, Território e Sociedade do ICS-ULisboa e membro da equipa de coordenação da Secção Ambiente e Sociedade da Associação Portuguesa de Sociologia.
joao.guerra@ics.ulisboa.pt