Por Roberto Falanga
A caminho do Bem?
Nos últimos anos, as iniciativas de regeneração urbana têm vindo a ganhar uma relevância estratégica nas cidades que lidam com transformações, em muitos casos incomportáveis por pequenas e médias autarquias. Contudo, por regeneração podemos entender coisas diferentes. Não existindo uma interpretação única desse conceito, este post pretende esboçar algumas pistas de reflexão a partir da sua origem etimológica, passando pelo seu uso e, finalmente, por alguns exemplos de Lisboa.
De onde vem o conceito de regeneração?
A origem etimológica da palavra regeneração, do sânscrito g’ânia, remete para a ação das forças naturais chamadas a dar origem e (re)produzir o mundo e a espécie humana, bem como a sua redenção. A evolução do termo para o latim gènus confirma essa valência apologética, como testemunham as palavras “genesis”, “genitor”, “geração”. Portanto, o verbo regenerar – literalmente, voltar a gerar – assume por defeito que, após um processo de deterioração e degeneração, é necessária uma intervenção destinada à reparação e melhoria do objeto em causa. A regeneração é, portanto, um conceito normativo que define o desejável e que se funda numa ética histórica e geograficamente situada de intervenções e que é orientada por conceções e crenças partilhadas sobre o Bem (e o Mal).
Na literatura científica que discute o conceito de regeneração urbana é apontada uma sucessão de conceitos que preparam o terreno para a sua difusão. A partir do segundo pós-guerra, e concomitantemente à progressiva desindustrialização das cidades nas democracias ocidentais, intervalaram-se sucessivas intervenções de caráter público contra a sua degradação, passando pela reconstrução, reabilitação e revitalização do edificado, especialmente entre os anos 1950 e ’60, e a renovação e o re-desenvolvimento de áreas urbanas inteiras entre os anos 1970 e ’80. É nos anos 1990 e 2000 que a regeneração urbana se afirma na agenda política internacional, com o propósito de intervir não apenas na componente estrutural de territórios carenciados, mas também na sua dimensão social. Mais recentemente, o peso dos programas de financiamento internacional sobre quase tudo o que aborda matéria urbana tem vindo a alterar de forma incisiva a geometria e as regras da concertação entre atores públicos e privados, com novas sinergias e idiossincrasias que precisam de maior atenção.
Para onde vai o conceito de regeneração?
Atualmente, o aumento da população residente nos aglomerados urbanos é acompanhado de uma tendência global de (re)produção de um sistema neoliberal baseado na competitividade entre pessoas e entre territórios. Este binómio leva a uma crescente desproporção na gestão e acumulação de recursos devido ao aumento exponencial de crescimento económico em algumas áreas do planeta (e de algumas grandes empresas e corporações) face às restantes. Se em meados do século XX cerca de 41% da população vivia em cidades, estima-se hoje a confirmação desta tendência em que mais de 50% reside em territórios urbanizados. No contexto europeu, cerca de 70% da população vive em médias e grandes cidades, com cerca de 23 cidades a ultrapassar um milhão de habitantes. Apesar de ocuparem menos de 3% da superfície terrestre, as cidades concentram a mais elevada taxa de atividades económicas, representando a maior fonte de trabalho e riqueza do mundo, bem como de desigualdades sociais e poluição ambiental.
Na lógica neoliberal, o crescimento económico não é uniforme e justo por natureza e, muito pelo contrário, abre oportunidades excecionais para alguns enquanto empurra violentamente outros para fora desse sistema. A aceleração das transformações urbanas no século XXI tem vindo a despertar preocupações, pois a distância entre ricos e pobres torna-se cada vez mais abissal, e a perpetuação de situações de marginalização faz-se acompanhar da criação de novos nichos de pobreza. Perante esses riscos, as Nações Unidas indicaram recentemente um conjunto de 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável do planeta, e sistematizaram os princípios e objetivos inerentes às cidades na chamada Nova Agenda Urbana. O eco dessa agenda levou a União Europeia a adotar medidas semelhantes na Agenda Urbana, com o objetivo de reverter o crescimento das desigualdades resultantes do crescimento das cidades. É na procura desse desalinhamento que a regeneração urbana tem vindo a ser utilizada e celebrada como uma das ferramentas mais populares entre os governos na sua intervenção em territórios carenciados.
Como regenerar?
O uso do conceito de regeneração nas políticas urbanas pressupõe uma abordagem holística da cidade que ultrapassa a resolução pontual e cirúrgica dos problemas tomados individualmente, combinando intervenções na malha urbana juntamente à ação para (e com) a sociedade. Quais os critérios adotados para classificar o que é degeneração e o que é regeneração? Quais os aspetos considerados desejáveis e indesejáveis do espaço público e edificado? E quais os aspetos mais repreensíveis na sociedade?
Quem trabalha e estuda os processos de regeneração urbana indica que as condições estruturais e sociais degeneradas poderão encontrar-se tanto no centro como, mais frequentemente, na periferia da cidade, na sua cintura peri e suburbana. Contudo, enquanto as zonas centrais e históricas têm sido alvo de intervenções mais dedicadas à valorização do setor cultural, as que acontecem em zonas periféricas têm assumido outro tipo de caráter.

A valorização dos centros históricos, como mostra o caso emblemático de Bilbau, baseia-se em novas estratégias de promoção cultural como veículo para o reposicionamento das cidades no mercado global. A atração de novas sinergias público-privadas para o crescimento do setor empresarial e turístico leva consigo, na maioria dos casos, novas dinâmicas no setor imobiliário. Contrariamente, a regeneração urbana em zonas periféricas que potenciam menos a atração dos fundos privados está vocacionada, grosso modo, para a dinamização de atividades comunitárias. Contudo, quando a nossa definição de periferia já não consegue intercetar a forma como os interesses dos atores públicos e privados se debruçam em territórios urbanos diversos, o cenário torna-se mais peculiar. Não faltam exemplos de regeneração em zonas periféricas voltados para uma certa mercantilização de tradições locais destinada à atração turística, como acontece nos centros históricos, mesmo quando isto implica usar de forma perversa e grotesca situações de pobreza extrema.
O que regenerar em Lisboa?
Lisboa representa hoje um caso emblemático entre as cidades em expansão e transformação. Se o crescimento económico aumentou o custo de vida, a realidade mostra uma redistribuição ímpar do poder de compra e da riqueza produzida, com situações de marginalidade que se arrastam e novos nichos de pobreza a difundirem-se na cidade. Relativamente às políticas de regeneração urbana, a Iniciativa Bairros Críticos, promovida em 2005 pela administração central em territórios carenciados das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto tinha como principio norteador a adoção de uma abordagem holística de intervenção que juntasse componentes urbana e social. Esta iniciativa diferiu de outros programas e financiamentos da administração central (como, por exemplo, o POLIS e o POLIS XXI, orientados a ações também de regeneração nas cidades), pela sua vocação no envolvimento das comunidades locais em territórios carenciados. Em 2012, porém, a iniciativa foi interrompida no âmbito das restrições orçamentais levadas a cabo durante o período da Troika (2011-2014).

Nos mesmos anos, inspirada pelo desenho da Iniciativa Bairros Críticos assim como por experiências marcantes do passado pós-revolucionário, como o processo SAAL, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu avançar com um programa de parcerias locais à escala municipal chamado BipZip. Ultrapassando a distinção entre centro e periferia urbana, o programa funda-se na análise de carências múltiplas como elemento discriminador, e destina fundos públicos para a melhoria da componente territorial e da dimensão social pela mão de atores locais. No centro histórico, a regeneração urbana financiada por fundos públicos tem colocado novas tensões desde que a chegada de investidores privados estimulou uma acesa discussão sobre a existência de uma ideia de Bem partilhada na cidade. Por exemplo, a regeneração do Largo do Intendente, até há uma década considerado um território com potencial atrativo subaproveitado, mas surpreendentemente degenerado, relata como o envolvimento de atores locais e comunidades residentes tem sido gradualmente subalternizado pelo crescimento exponencial do setor imobiliário e do turismo na cidade.

Outro caso que merece atenção é o da regeneração na zona oriental da cidade, onde a ação conjunta do poder público e de investidores privados tem vindo a impor novas dinâmicas num território extremamente complexo e diverso. Numa parte desse território, entre as freguesias de Marvila e Beato, o ICS-ULisboa é parceiro da Câmara Municipal no ROCK, um projeto de investigação-ação que tem como primeiro objetivo fomentar o debate científico e experimentar novas soluções para a regeneração urbana. É no contexto da reflexão académica produzida no âmbito desse projeto que sobressaem indícios de esperança e de incerteza. O presente de uma Lisboa em rápida mudança, e os planos para um futuro da cidade que se vislumbra, mas que resta ainda conhecer, fazem deste território um lugar privilegiado para a observação do caminho traçado pelo conceito de regeneração.

Está na hora, é agora?
Como sugere o Tim Maia, o caminho do Bem é essencialmente uma questão de fé. É necessário acreditar e não duvidar para ele acontecer já. Mas tal como no caso da regeneração urbana, não está claro qual é o Bem de que se fala, e qual a sua temporalidade efetiva. Como descrito acima, não se pode entender a regeneração urbana como um mecanismo alheio às forças globais que intervêm hoje nas cidades. Será ainda essencial reconhecer que diferentes tipos de regeneração urbana atuam nos territórios com razões e objetivos distintos, por vezes explícitos, mas outras implícitos, que cruzam agendas públicas e privadas. Isto põe em causa qualquer redução simplista da conceção e crença sobre o Bem procurado através da desejada redenção dos territórios carenciados. Pelo contrário, a regeneração urbana precisa de continuar a ser debatida atenta e criticamente, porque se o caminho do Bem “é agora”, convém recordar que o caminho do inferno assenta igualmente em boas intenções.
Roberto Falanga é investigador de Pós-Doutoramento no ICS-ULisboa. É membro do Grupo de Investigação de Ambiente, Território e Sociedade e desenvolve a sua investigação/ação em torno dos processos de participação da sociedade civil nas decisões públicas.