QUEM FOI? A gestão de risco incorpora-se à responsabilidade socioambiental – 2ª parte

Por Luiz Carlos de Brito Lourenço

No interstício de Mariana e Brumadinho houve um terceiro desastre ambiental no estuário amazónico, cuja notícia ficou restrita às imprensas regional e económica. Chuvas volumosas abateram-se dias 16 e 17/02/2018 (200mm em 12 horas, metade do estimado para o mês) sobre as instalações da Alunorte (grupo norueguês Hydro ASA), a maior refinaria de alumina do planeta, no município de Barcarena (população 99.859, IBGE Censo 2010), junto ao porto de Vila do Conde, a 45 km por mar e 111 km por terra de Belém, capital do Pará.

Verificou-se na área industrial o transbordamento dos depósitos represados de resíduos de bauxita para gerar alumina (óxido de alumínio), etapa anterior aos lingotes de alumínio produzidos na Albrás, fábrica vizinha do grupo. A Secretaria de Saúde e o Ministério Público estaduais constataram o risco de contaminação da água distribuída à população pela própria Alunorte, em seguida suspensa.  A Secretaria de Meio Ambiente do Pará ordenou o corte de 50% da produção da refinaria a partir de março. Em setembro, juntamente com as ações do governo federal, foi firmado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).

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Hydro Alunorte. Fonte: Flickr

Em dezembro, estudos técnicos independentes desmentiram o transbordamento e confirmaram a segurança de 100% da capacidade de produção. Em janeiro de 2019, foi anulado o embargo pelo estado. Não obstante, em Oslo, a sede anunciou em 18/03/2019 novo CEO para o Brasil, quase em simultâneo com o caso Vale. O grupo extrai petróleo e gás natural no Mar do Norte e produz fertilizantes. Tem no Estado norueguês seu principal acionista: 34,3% do Ministério do Comércio, Indústria e Pesca e 6,6% do Fundo de Pensões do Estado. A Noruega foi apontada pelo Financial Times, em 05/06/2016, como heroína ou hipócrita ambiental. A propósito, Bauman (Liquid Modernity, 2000, 193) refere que o mundo ideal das multinacionais  – empresas globais com interesses e alianças locais dispersas e mutáveis – admite pequenos Estados e dispensa os demais. O ativista George Monbiot (Captive State, 2001) acredita na hipótese de um takeover da autoridade pelo mercado.

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Climatologia de Precipitação (Janeiro, Fevereiro, Março). Fonte: INMET apud INPE

Surpreendentemente, o vídeo “Alumínio infinito” (sic), um contrassenso científico da Hydro Brasil, contrasta frontalmente a finitude de recursos naturais apregoada pela norueguesa Gro Bruntland no Relatório “Our Common Future”, marco da sustentabilidade precursor da Earth Summit Rio 92, com a noção de desenvolvimento sustentável de proteção dos sistemas naturais como “a atmosfera, as águas, os solos e os seres vivos”. Logo, no caso da Hydro Brasil, o vídeo é uma assimetria de informação que compromete a relação que trata a teoria principal-agente. Ao dispor de 11 indústrias e 5.739 empregados, a Hydro Brasil atribui-se “a ambição de minimizar a pegada ecológica pela gestão proactiva (…) dos recursos e resíduos em toda sua cadeia de valor”.

 Impacto ambiental do Projeto Carajás    

A escalada mineral na Amazónia começou com o Projeto Grande Carajás, a rica região no Pará descoberta em 1967 com hematita a 65,15% de minério de alto teor (DNPM, 2017), juntamente a outras jazidas metálicas (estanho, ouro, cobre, níquel e bauxita). Como empresa do regime, a Companhia Vale do Rio Doce (criada por lei de 1942, privatizada em 1997) foi o global player pioneiro na área. Projetado inicialmente com a japonesa Mitsui, a Vale S.A. montou a Alunorte e a Albrás (vendidas em 2000 à Hydro), após o início de Tucuruí (rio Tocantins), a 377 km, a terceira hidrelétrica do país depois de Itaipu (rio Paraná) e Belo Monte (rio Xingu).

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Rejeito de bauxita em Barcarena. Fonte: Flickr

A bauxita processada tem duas origens. O maior volume vem de Paragominas (PA) por meio de polémico mineroduto (sic) de 244 km de extensão, tecnologia semelhante aos três pipelines de 400 km cada da Samarco (Mariana). O restante vem da Mineração Rio do Norte, um consórcio de 6 mineradoras mundiais, em Porto Trombetas (município de Oriximiná). Navios graneleiros (15 mil t a 51 mil t) seguem uma rota de 1.000 km ao longo do rio Amazonas até Barcarena, movidos a óleo diesel, moeda preciosa na região para embarcações de todos os portes.

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Convergem a Barcarena (Belém), a bauxita de Oriximiná (a oeste) e de Paragominas (sudeste), bem como a energia de Tucuruí (sul).  Fonte: Mapa elaborado pelo autor. Scribblemaps.com by Google Maps & Google Earth (Lisboa, 01/03/2019)

Barcarena recebe energia limpa de Tucuruí (PA), que entre 1984 e 1994 inundou 2.800 km2 de madeiras nobres da floresta. Aqui, Peter Fearnside,  investigador norte-americano do Instituto de Pesquisas da Amazônia (IPAM), e Nobel da Paz de 2007 com Al Gore, rejeita o conceito de energia limpa ao detalhar emissões de CO2 e metano gerados por Tucuruí.  Adicionalmente, a Alunorte garantiu à opinião pública que o resíduo de bauxita é “seco e armazenado em depósito específico (…) prensado para reduzir a humidade, a pegada ambiental, o uso de soda cáustica e as respectivas emissões de CO2 no transporte do resíduo”.

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Barcarena, 18/12/2017: Antes das chuvas de fevereiro 2018. Fonte: Diário Online (18/12/2017) – “Anger against Hydro in Brazil: Stakeholders blocked access to Hydro’s facilities in Barcarena, Brazil”, Dagens Naeringsliv,

Lógicas dominantes

À busca dos responsáveis, pela principal categoria profissional em causa, o engenheiro Vahan Agopyan, reitor da Universidade de São Paulo (USP), afirma que sua área disciplinar não é uma ciência exata. Ao relacionar-se com a natureza e sua variabilidade, afirma que o profissional analisa riscos e decide sob cenários de incerteza. A engenheira Maria Eugenia Boscov (USP) utiliza a expressão acidentes para os erros verificados neste milénio na mineração do Brasil, China e Europa. Reconhece que não há obra segura, mas “existem simulações de cenários de probabilidade de rupturas de reservatórios, que podem se liquefazer por causas estáticas ou dinâmicas”. Depoimentos colhidos sobre a influência do gerente financeiro da obra permitiram apurar ser regra respeitar as exigências de segurança. No país, culpam-se as “dúvidas da legislação para fiscais e os tribunais” e a pulverização entre vários órgãos, caso de uma inédita comissão interfederativa para Mariana. Em vigor, a Política Nacional de Segurança de Barragens de 2010 era competência do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), despreparado aos 84 anos de existência, extinto e restaurado, apenas menos de 2 meses antes de Brumadinho, como Agência Nacional de Mineração (ANM). Em linhas gerais, ao tolerar a ocupação humana em áreas de risco em todo o país, o Estado brasileiro não executa um ordenamento do seu território.

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Atingidos pelo vazamento de rejeitos da Hydro Alunorte denunciam 1 ano de impunidade do crime de Barcarena (PA). Fonte: Flickr

Na esfera privada, o valor do acionista (shareholder value) passou a ser a lógica imperativa dos negócios após os históricos juros nos EUA a 21,5% a.a. (prime rate de 19/12/1980). Tendo tal indicador por fasquia, aí começaram as terceirizações dos serviços, a deslocalização da produção e a concentração em ativos tecnológicos. Parametrizou-se a liberalização de regras, a autorregulação com compliance e a troca do managerial capitalism por equipas estratégicas rumo à economia globalizada. É um pós-moralismo segundo Lipovetsky (1992), que vê na governança corporativa um matrimónio da ética com os negócios, onde códigos de conduta das big corporations surgem a título de responsabilidade social corporativa (RSC) para atender ao mercado com certa plasticidade. Algo sintonizado com o pioneiro da governança corporativa, Peter Drucker, que definiu a empresa enquanto “uma importante instituição pela qual a sociedade industrial dá status, função e integra os esforços individuais num resultado comum.” (Cornford, 2008).

Giddens (Runaway World, 1999) associou o conceito de risco à probabilidade e à incerteza. Risco não é má sorte nem perigo: é uma avaliação de estimativa, tal qual se calculam lucros e prejuízos. Vimos que para Vale e Samarco não houve risco fabricado, sem experiências anteriores (6 casos desde 1986). Revelou-se posteriormente que na Vale haviam informes internos sobre os custos de impactos ambientais em caso de rompimento de barragens.

Portanto, em base a uma métrica de governança socioambiental, a exposição da carteira de ações da Vale pós-Brumadinho foi seriamente reavaliada pelo fundo de investimento Schroders (EUA), resultando num rebaixamento do valor da ação de 6 para 4,5 vezes um dado valor proxy de liquidez. Isso representa perda de caixa em momento de alta do preço do minério de ferro em abril (USD 95,50/t), estímulo para a Vale que detém 1/3 da produção global e capacidade técnica para crescer, enquanto suas concorrentes BHP Billinton e Rio Tinto encontram-se no limite. Paralisar a produção de 92 milhões t de minério implica retirar 10% do PIB do país projetado para 2,0% em 2019.

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Rota do Mineroduto da Hydro Paragominas. Fonte: Brasil. MPF (autor) vs. Vale (réu). Peça de Apelação, folha 4. Belém, 09/03/2018.

Para o sociólogo Colin Crouch (2011), as megaempresas acumulam capacidade política além do alcance dos governos. Vistas como ameaças ao pluralismo democrático, seu lobbying impõe interesses, inclusive contra o ambiente. Têm estratégias e relações trabalhistas exclusivas e privilegiadas com stakeholders, mas não têm total autonomia. Desastres ambientais as tornam alvo de pressões. Seus gestores não serão atores amorais. Conta-se com a abordagem ética do negócio, sendo os acionistas igualmente livres para escolher o bem-estar social e ambiental, lembrando que responsabilidade social corporativa não é caridade.

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Fonte: Ricardo Borges, Rio de Janeiro, 2017.

Para responder ao enunciado será necessário arguir os profissionais responsáveis pelas três tragédias. Contudo, diante dos dados aqui abordados, é claro o diagnóstico porque ocorreram, cabendo agora uma reflexão sobre Justiça Ambiental. Na experiência brasileira a tendência é proteger as corporações das demandas da sociedade mantendo seu papel de ator político validado pelo Estado, como é o caso da Vale. Cabe observar a norueguesa Hydro e todo o monolítico sector da mineração.



Luiz Carlos de Brito Lourenço é investigador Universidade de Brasília e atualmente é investigador visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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