Por Fábio Rafael Augusto
A resposta a esta interrogação, que admito ser algo abstrata e com inclinações ligeiramente poéticas, emerge no âmbito do meu projeto de doutoramento em Sociologia – onde me proponho analisar iniciativas de apoio alimentar e as dinâmicas que se estabelecem no seu seio – e pode seguir duas linhas de resposta, orientadas por dois olhares que, infelizmente, nem sempre andam de mãos dadas.
Por um lado, temos um olhar para os números, onde se procura, através de uma visão alicerçada nas estatísticas e assente, em diversos casos, na preocupação de fornecer uma perspetiva longitudinal e comparativa, apontar tendências que nos permitam responder a questões como: quem pratica voluntariado? Quais as motivações? Quantos praticam? Quanto tempo disponibilizam em prol da prática? Em que tipo de ações concretas o voluntariado se expressa? Quais as organizações que promovem a prática? E quantas são?
Por outro lado, temos um olhar que se preocupa em examinar o fenómeno de uma forma intensiva, ou seja, em perceber, de forma aprofundada, as dinâmicas por detrás dos números e que podem, em última análise, ajudar a explicá-los.
O exercício que aqui me proponho concretizar enquadra-se neste segundo olhar e assenta na promoção de um debate que se tem vindo a estabelecer, particularmente, no âmbito da Sociologia, que remete para as modalidades de envolvimento na prática do voluntariado e para a concretização de projetos coletivos numa altura em que os indivíduos estão voltados para si mesmos e para a construção dos seus próprios percursos de vida. No fundo, o debate articula-se em torno da seguinte questão: como pensar em projetos coletivos numa altura em que o projeto do “eu” parece imperar? Assim, será possível compreender não só a forma como o voluntariado se regula no contexto atual, como também as possíveis motivações por detrás da prática em causa.
A inspiração para este debate emerge da obra “Associativismo e Novos Laços Sociais” de Alcides Monteiro (2004), e particularmente da questão: “o que leva os indivíduos a unirem-se?” presente na página 119. Este foi o mote que me conduziu a olhar para o debate que a seguir se apresenta.
É recorrente ouvirmos em conversas de café ou de paragem de autocarro que a sociedade de hoje é caracterizada por indivíduos que estão muito focados em si próprios e nas suas vidas e que, por consequência, não pensam nos outros. Refiro-me um pouco àquela ideia de que podemos passar anos e anos a viver num prédio sem nunca conhecermos verdadeiramente os nossos vizinhos. Esta ideia encontra-se presente, não só, no discurso que podemos estabelecer com um estranho, amigo ou familiar, como também está presente nos media. No jornal expresso, por exemplo, Diogo Agostinho lança a questão: sociedade egoísta?
E o que tem a Sociologia a dizer acerca disto? Como explicar estas preocupações? Serão descabidas ou fazem sentido?
Pois bem, como em tantos outros casos, partir para generalizações é sempre um grande risco, mas o facto é que existe um longo debate sobre a caracterização da sociedade atual e das dinâmicas que podemos encontrar no seu seio.
Diversos teóricos acreditam que nos encontramos numa segunda fase da modernidade, caracterizada pelos processos de reflexividade e de individualização. Nesta fase, os indivíduos, não só convivem com os riscos que advêm da industrialização (primeira fase da modernidade) como também se libertaram de laços comunais e “ganharam” a capacidade de construir as suas próprias narrativas biográficas, o que se deveu, em parte, ao facto de instituições como a família e a igreja terem deixado de servir de referências que orientavam as decisões e os percursos de vida, tornando-se categorias zombie. De acordo com esta perspetiva, os indivíduos passam a ser responsáveis pelas decisões que tomam ao longo da vida.
Desta forma, as preocupações anteriormente expressas não serão totalmente descabidas, mas ficam por responder algumas questões: como explicar o voluntariado – uma prática voltada para os outros – numa altura em que os indivíduos estão focados em si e nos seus percursos de vida?

A este respeito, Monteiro (2004: 133) explica que os indivíduos estabelecem relações de acordo com os seus “interesses, identificações e necessidades”. Assim, o envolvimento em ações coletivas passa a ser uma escolha livre e pensada em função dos processos de individualização e de reflexividade. A participação em projetos coletivos deixa, portanto, de ser um destino orientado, por exemplo, pelas instituições supramencionadas, para passar a integrar um processo de decisão focado nos interesses individuais.
Como resultado destas transformações, teóricos como Monteiro (2008) apontam para a existência de um novo perfil de voluntários, caracterizado pela valorização do projeto do “eu”, onde o indivíduo é motivado por ações com que se identifique e que lhe permitam cumprir os seus objetivos pessoais. Desta forma, estamos perante um perfil que se distancia de um tipo de voluntário (do passado) que era movido por valores coletivos e perante o qual a prática do voluntariado aparecia, de certa forma, como um projeto que lhe era “imposto”, onde a fidelidade e a lealdade a uma associação algo inflexível (pelas regras impostas e modelo organizacional) constituíam palavras de ordem.
Porém, pensar que o caminho que o voluntariado tem vindo a percorrer se pauta pela existência de um corte claro entre o passado e o presente pode representar apenas parte da resposta. Para teóricos como Hustinx & Lammertyn (2000; 2004); Read (2010); Kristiansen, Skille & Hanstad (2014) e Sanghera (2016), as atuais práticas de voluntariado podem englobar características do passado com características do presente, não existindo, assim, uma separação clara entre os voluntários de “ontem” e os de “hoje”.
Em suma, a prática de voluntariado sofreu um conjunto significativo de transformações que conduziram à necessidade de identificar diferenças face ao passado. Porém, mais do que olhar para o caminho percorrido como sendo de rutura e de mudança de paradigma, fará sentido adotar uma perspetiva que, não desvalorizando as claras transformações que a prática tem vindo a sofrer, as enquadre numa perspetiva de continuidade.
Contudo, e ainda que encontre na literatura algum apoio para esta opção, deixo a questão em aberto para si (o leitor): para onde tem vindo a caminhar o voluntariado?
Fábio Augusto é bolseiro de investigação do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no âmbito do projecto “Families and Food in Hard Times” (http://foodinhardtimes.org/), e doutorando do Programa Doutoral em Sociologia – OpenSoc. fabio.augusto@ics.ulisboa.pt