Por Edson Cortez
Neste pequeno artigo pretendo dar a conhecer as vicissitudes inerentes a conduzir investigação sobre a economia política de Moçambique e assuntos similares num ambiente em que os responsáveis por fontes escritas e orais têm receio de prestar declarações ou fornecer documentos que sejam fulcrais para que o investigador obtenha resposta às suas questões de pesquisa.

Moçambique é uma democracia de partido dominante, onde a Frente de Libertação de Moçambique—FRELIMO detém o controlo sobre o Estado, a economia, os recursos e parte da sociedade civil. Segundo o estudo “Os custos da corrupção para a economia moçambicana“,
Neste tipo de economia política, as elites dominantes que ocupam posições-chave no partido, na administração pública, militar e económica possuem uma tendência de manter o poder através da ‘reciclagem’, entre posições no partido, governo, instituições do Estado e parlamento, bem como na criação de ‘arranjos políticos’ no seio dos vários segmentos das elites governantes. Estas elites podem ser consideradas como sendo agentes que estão para se servirem a si próprios e que consolidam o poder organizando grupos de clientes, oferecendo-lhes determinados benefícios (financeiros, organizacionais, económicos, etc.) e acesso aos recursos em troca do seu apoio.
A FRELIMO é o partido no poder desde a proclamação da independência em 25 de Junho de 1975. Como tal, é um partido que tem demonstrado uma enorme versatilidade e capacidade de adaptação face às mudanças ocorridas no país e no mundo ao longo dos anos. Após a independência, a FRELIMO transita de movimento de libertação nacional a Partido-Estado, iniciando o processo de construção do Estado-Nação em Moçambique através de um regime de partido único. Com a entrada em vigor da nova Constituição da República em 1990, que abriu espaço ao multipartidismo e à liberalização da economia, a FRELIMO mais uma vez acompanha a mudança de contexto. Desde as primeiras eleições realizadas em 1994 que a FRELIMO é o partido dominante da jovem democracia moçambicana.
As mudanças apresentadas pela Constituição de 1990 e reforçadas pela Constituição de 2004 obrigam à realização de eleições presidenciais e legislativas de cinco em cinco anos e permitem apenas uma renovação do mandato ao Presidente da República. Este constrangimento constitucional obriga a que a FRELIMO tenha de apresentar um novo candidato a Presidente da República a cada dez anos. Desde a introdução do multi-partidarismo, todos os candidatos deste partido ao cargo de Presidente da República têm consecutivamente ganho as eleições. Após a vitória eleitoral, o partido realiza “eleições” internas que visam tornar o Presidente da República simultaneamente o Presidente do partido. Este facto tem sérias implicações nas lógicas clientelares dentro do partido e em todo o processo de redistribuição de oportunidades de acumulação de capital.
Ao contrário de uma parte considerável dos movimentos de libertação nacional do continente africano, a FRELIMO nunca se tornou um partido controlado por um único individuo, “Patrão” ou “Big Man”, que tem um controlo absoluto sobre a sua rede clientelar e atribui benefícios a estes “clientes” para se manter no poder. Um exemplo claro de um partido controlado por um “Big Man” seria o caso de José Eduardo dos Santos com o MPLA em Angola.
No caso da FRELIMO há uma contínua negociação dos termos de troca, que muitas vezes conduz a tentativas bem-sucedidas por parte dos clientes de aumentar o preço da fidelidade. Isso decorre do facto de o partido não ter um único “Patrão” que detém o controlo absoluto sobre o partido e as redes clientelares, mas sim vários “Patrões” com rede clientelares particulares. Porém, essas redes não são estanques e há migração de “clientes” de uma rede para outra consoante os interesses em jogo.
Os principais “Patrões” do partido são Joaquim Chissano, Armando Guebuza, Alberto Chipande e Graça Machel, todos eles antigos combatentes da luta de libertação nacional. Pese embora se esteja na presença do mesmo partido que controla o Estado desde a independência nacional, há uma clara alternância dos indivíduos que controlam o partido e por conseguinte o Estado. Existem, por isso, tensões e disputas entre os principais “Patrões” do partido e as respectivas redes clientelares pelo controlo do partido, o que garante por sua vez o controlo do Estado.

Tendo em conta o contexto acima descrito, e apesar do país ser formalmente como um Estado de Direito e possuir legislação que obriga os servidores públicos ou detentores de cargos públicos a prestarem informação que seja de utilidade pública, a realidade prática demonstra que o acesso às fontes de informação ainda constitui um enorme obstáculo para aqueles que pretendem realizar pesquisas que impliquem uma análise documental e entrevistas com informantes privilegiados.
Estas dificuldades são motivadas pelo contexto onde os atores operam, havendo por conseguinte receios por parte dos servidores públicos, empresários, cidadãos e a sociedade no geral em disponibilizar informação, principalmente quando essa informação pode de alguma forma ser contrária àquilo que estes atores pensam que seja a vontade do partido dominante, no caso concreto a FRELIMO.
Portanto, o país torna-se refém daquilo que eventualmente poderá ser a vontade do partido. Quando falo do partido refiro-me às elites que o controlam e têm o poder de redistribuir as oportunidades para os demais. O receio de perder essas mesmas oportunidades inibe a disponibilização da informação, seja ela oral ou escrita.
Neste contexto como é possível conduzir pesquisas ou investigação científica em áreas sensíveis ao poder político?
O domínio ou controlo de quase todas as esferas da sociedade por parte do partido no poder torna a adesão à FRELIMO atrativa para indivíduos provenientes de diversos estratos sociais. Vários são os exemplos de indivíduos que alguns anos após a adesão ao partido conseguiram ascender política, económica e socialmente. Alguns deles tornaram-se mesmo “clientes” poderosos que aspiram a ocupar os lugares de alguns dos principais “Patrões“ do partido, apesar de possuírem redes clientelares relativamente menores.
Esta atratividade aumentou consideravelmente o número de membros que a FRELIMO possui. Atualmente, o partido reclama possuir mais de quatro milhões de membros. Tal crescimento cria problemas de redistribuição de oportunidades já que o partido não é capaz de satisfazer as necessidades de todos os seus membros, criando um ambiente propício para a ocorrência de disputas e tensões internas entre os diversos grupos que controlam o partido e também o Estado. É a partir da compreensão dos conflitos existentes entre os principais “Patrões” do partido e as suas redes clientelares que o investigador pode encontrar a janela de oportunidade para obter os dados que procura.
O período que antecede as eleições nacionais e locais ou as eleições internas ao comité central do partido, e ainda quando o Estado realiza grandes investimentos ou contratos com o setor privado (por exemplo, a decisão de entrega da exploração do gás natural na bacia do Rovuma à multinacional italiana ENI traz oportunidades a empresas moçambicanas de logística controladas por “Patrões” do partido), são momentos chave. É nestes momentos que as disputas, tensões e contradições tornam-se visíveis pois é neles que se definem quem são os indivíduos que irão ocupar as posições centrais no esquema clientelar; quais são ou qual é a fação vencedora e o que ela oferece em troca às fações perdedoras; e como será constituído o sistema de redistribuição de oportunidades entre os principais “Patrões” e as respetivas redes clientelares de modo a manter o equilíbrio do sistema como um todo.
Obviamente que é impossível agradar a todos e o processo de redistribuição nunca é proporcional, o que abre hipóteses para que o pesquisador se aproveite da “ zanga entre as comadres” para obter informações que serão cruciais para a construção do seu objeto de estudo.
Como as coisas se processam na realidade prática
Nada melhor do que um exemplo elucidativo para mostrar a minha experiência como pesquisador da realidade moçambicana e como os processos de alternância política dentro do partido FRELIMO e os conflitos inerentes a esse processo abrem oportunidades para a compreensão das dinâmicas do poder dentro deste partido e da sociedade no geral.
No âmbito das minhas obrigações profissionais como pesquisador do Centro de Integridade Pública (CIP), uma organização não-governamental moçambicana com objectivos de promoção da transparência, integridade e anticorrupção na gestão pública, investigo muitas vezes casos de corrupção procurando expor as más práticas na gestão pública.
Obviamente que a investigação que o CIP conduz não é de cariz científico académico, mas sim investigação virada para o âmbito do jornalismo investigativo. Contudo, esta também exige a consulta de fontes escritas e orais. Portanto, também aqui nos deparamos com as mesmas dificuldades em aceder às fontes de informação escritas e orais.
Em 2015, Filipe Nyusi assumiu a Presidência do país e do partido Frelimo após dez anos de governação de Armando Guebuza. Como fiz menção nos parágrafos anteriores, as mudanças ao nível do topo da estrutura do Estado e do partido acarretam alterações nas estruturas de oportunidade de acumulação e, consequentemente, abrem espaço para tensão e disputas internas entre os diversos grupos e indivíduos pertencentes ao partido dominante.
Desde a subida de Filipe Nyusi ao poder, como pesquisador do CIP tenho assistido a um aumento considerável de indivíduos ou grupos que se predispõem a expor más práticas na gestão pública, negócios do Estado que são distorcidos para beneficiarem interesses privados, casos de subornos e tráfico de influências, etc.
Contudo, emerge um perfil dominante em todos os indivíduos que se predispõem a partilhar este tipo de informações: todos eles são indivíduos ou empresas que durante os dez anos de governação de Armando Guebuza beneficiavam directamente do status quo. Eram tidos como empresas e empresários de sucesso, mas este sucesso estava diretamente ligado às suas ligações privilegiadas com o poder político.
A alteração na liderança do partido e do Estado abriu, assim, espaço para a ascensão de um novo grupo de indivíduos e empresas que beneficiam diretamente do facto de Filipe Nyusi ocupar o cargo de Presidente da República, fazendo com que os excluídos e que conhecem perfeitamente os esquemas usados para extrair rendas do Estado estejam predispostos a usar da sua experiência para contar a sua versão de como o Estado está a ser usado para efeitos de acumulação individual e não para o bem comum. Uma das expressões comumente usadas por aqueles que se sentem excluídos é a seguinte: “É a vez deles, é assim que as coisas funcionam aqui, só que eles também estão a exagerar, estão a comer tudo e não estão a deixar nada para os outros”.
A situação de conflitualidade decorrente da alteração das redes clientelares dominantes abre espaço para que o pesquisador possa operacionalizar as suas premissas teórico-conceptuais compreendendo as dinâmicas inerentes ao objeto de estudo analisado. Enquanto isso, os denunciantes esperam que a colaboração momentânea com o pesquisador abra espaço para a indignação geral da sociedade e, por conseguinte, as instituições públicas responsáveis tomem medidas que visem solucionar os desmandos ocorridos e, neste contexto, os excluídos possam de alguma forma reequilibrar as oportunidades de extrair rendas junto do Estado.
A abertura demonstrada para com o pesquisador em momentos de disputas e tensões não significa necessariamente que os diversos intervenientes pretendam produzir uma alteração do status quo, mas sim reivindicar as posições outrora detidas.
Cabe ao pesquisador aproveitar estas contradições internas resultantes de processos de redistribuições de oportunidade de acumulação mal conseguidos para compreender as dinâmicas inerentes a este grupo de indivíduos cujas decisões influenciam o processo de elaboração de políticas públicas de Moçambique.
Em modo de conclusão pode dizer-se que fazer pesquisa num contexto como o de Moçambique, onde o partido dominante não é controlado por um “Big Man” mas sim por vários “Patrões“ num sistema rotativo, exige por parte do investigador a capacidade de perceber as contradições reinantes entre esses diversos grupos de indivíduos. E, acima de tudo, exige a capacidade de compreender quando é que se está na presença dessas situações de conflito que trazem à tona dinâmicas que em outros momentos seriam difíceis de captar por parte de um observador que não faz parte do meio estudado.
Edson Cortez é estudante de doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa