Por Lavínia Pereira e Olivia Bina
“Não se pode conceber a educação sem o pensamento de um futuro.” É Clément Rosset quem o diz numa entrevista concedida a Anita Kechichian publicada em 1985 no Le Monde de l’Éducation. Historicamente, a Universidade e a função educativa têm na Modernidade o seu momento alto: o projecto iluminista entende o conhecimento como fonte de emancipação do ser humano, finalidade associada a uma ideia redentora de futuro.
Como podemos conceber o projecto educativo no momento posterior àquele em que o ideal da Modernidade foi conduzido ao seu limite por auto-refutação? Um momento em que o risco e a incerteza alteraram a experiência humana do tempo: o futuro vem agora ao nosso encontro, interrogando-nos, interrompendo permanentemente o fluir do tempo presente? [1]
Três notícias recentemente vindas a público são ilustrativas do alcance da acção do ser humano sobre o equilíbrio do planeta: a destruição do mar de Aral; a separação de mais um enorme icebergue na Antártida Ocidental; e a sexta extinção de espécies em massa descrita pelos cientistas como ‘aniquilação biológica’. Tornámo-nos uma ‘força da natureza’ que introduziu uma alteração irreversível no equilíbrio planetário.
Por outro lado, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é maior que nunca. De acordo com o relatório Oxfam de Janeiro de 2017, o nível de desigualdade social ultrapassa as nossas piores expectativas.
A quantidade de informação gerada nos últimos dois anos é maior do que a informação produzida em toda a história humana. E, no entanto, apenas um valor inferior a 0,5% dessa informação será alguma vez usada ou analisada. Os resultados da investigação científica aumentam a um ritmo de 30% por ano, contudo, apenas uma pequena percentagem dessa produção é lida ou citada.
Está em curso uma revolução global no âmbito da qual a sociedade, as empresas e o Estado tendem a sofrer maiores mudanças nos próximos 20 a 30 anos do que nos últimos 500. Esta disrupção em larga escala está a ser conduzida pelos efeitos combinados entre a Inteligência Artificial (AI) e outras tecnologias, cuja velocidade, potência e capacidade têm vindo a crescer exponencialmente. As mudanças resultantes desta disrupção de ordem tecnológica, que se tornará milhares de vezes mais poderosa nas próximas décadas, significam uma mudança de tal forma profunda que afectará todas as actividades humanas: desde o sector empresarial ao nascimento de novas indústrias e ao desaparecimento de milhares de funções laborais, acompanhado do aparecimento de novas funções que exigem uma força laboral flexível e em permanente adaptação.
Diante deste cenário de radical transformação ecológica, económica, tecnológica, laboral e humana, que papel poderá desempenhar a Universidade enquanto lugar de produção de conhecimento? Ou, por outras palavras, que tipo de Universidade e de conhecimento precisamos nós? Um conhecimento que nos permita não só compreender e antever o alcance da mudança em curso, mas também decidir de modo consciente acerca do futuro num contexto de grande complexidade.
No âmbito da Rede INTREPID (COST Action), financiada pela União Europeia, decorreu em Londres, no passado mês de Março, um Workshop que deu início a um período de dois anos de investigação em torno do tema “Universidades e Conhecimento para Futuros Urbanos Sustentáveis: como se a Inter (IT) e a Transdisciplinaridade (TD) realmente importassem”, cujo principal objectivo era contribuir para moldar o espaço e os termos de produção do conhecimento de forma a possibilitar futuros urbanos mais sustentáveis. O Workshop reuniu especialistas e profissionais das mais diversas áreas com o objectivo de ajudar a definir o conjunto de actividades a desenvolver entre 2017 e 2019, tendo em vista o contributo possível do projecto para a discussão e a agenda em torno do Futuro das Universidades e do seu currículo urbano. A discussão focou-se principalmente nas seguintes questões: que conhecimento e aprendizagem são necessários para criar futuros mais justos e sustentáveis? Como é que o conhecimento será gerado, distribuído e usado no futuro? Quem irá gerar, distribuir e usar esse conhecimento?

No contexto desta investigação está a decorrer uma pesquisa que pretende mapear a discussão actual em torno do Futuro da Universidade. Os primeiros resultados desta pesquisa permitem-nos identificar nove tipos de abordagens diferenciadas, definidas de acordo com o enfoque que é dado ao problema: desenvolvimento sustentável, abordagens sistémicas, denúncia do modelo neoliberal e da progressiva mercantilização do ensino superior, função da academia e papel dos académicos, relevância da dimensão ética nos currículos, no planeamento da investigação e na organização das instituições, relevância da dimensão afectiva no processo cognitivo, questionamento em torno dos tipos de conhecimento necessários, alerta para uma ciência responsável, e antecipação de cenários futuros.

No interior destas abordagens identificámos cinco grandes dimensões em torno das quais decorre o debate: o ethos da instituição, ou quais os valores que devem orientar o projecto educativo; qual o seu propósito último; que relação com a cidade e o mundo; quais podem ser os principais motores de mudança; e, por fim, quais os desafios e barreiras a superar.
Apresentamos aqui algumas das principais linhas de discussão, tendências ou tensões que resultam de uma primeira leitura crítica da bibliografia seleccionada a respeito das duas primeiras dimensões do debate: o ethos da instituição e o propósito último do projecto educativo.
Relativamente ao ethos da instituição é notória a existência de uma tensão que percorre o debate em torno do Futuro da Universidade: à necessidade de operar nas instituições uma reconfiguração sistémica que permita proporcionar uma Educação para o Desenvolvimento Sustentável, tendo por base valores essenciais de inclusão, democracia, e protecção ambiental, contrapõe-se o actual modelo neoliberal ao qual estão sujeitas as instituições de ensino superior, cada vez mais vulneráveis a um processo de mercantilização que dá origem a um ethos essencialmente anti-democrático [2]. A consciência da necessidade de educar para uma cidadania global, capaz de liderar processos de mudança para um futuro sustentável, vem acompanhada pela necessidade de combater o modelo neoliberal [3], tornando ainda mais evidente a urgência em incluir no debate uma dimensão ética, não só no que diz respeito à avaliação do carácter e da relevância social da investigação, mas também à vida e às relações de poder no interior da própria instituição.
No que se refere ao Propósito da Universidade, podemos dizer que uma grande maioria da bibliografia consultada atribui à Educação Superior a função de contribuir para a transição descrita em 2011 pelo Conselho da Europa como: necessidade de “passar de um modelo de sociedade regulado pela parceria entre o Estado e o mercado (no âmbito do qual o progresso é sinónimo de crescimento do PIB) para um modelo de sociedade providente e co-responsável (onde o progresso é sinónimo de bem-estar para todos)” [4]. De facto, a necessidade da Universidade contribuir para um mundo mais sustentável e justo atravessa o discurso sobre o futuro das instituições de ensino superior: defende-se o acesso universal à educação, assim como a criação de um processo de consciencialização pública, com o objectivo de alcançar o bem-estar das pessoas e do planeta [5]. Em alguns casos são consideradas igualmente essenciais dimensões de bem-estar espiritual e de interdependência, e interligação, entre humanos e natureza [6].
Através da rede INTREPID, continuaremos a explorar estas questões nos próximos dois anos, organizando vários workshops e uma conferência final em 2019. O objectivo é aumentar o nível de consciencialização sobre as profundas mudanças que estão em curso e as suas implicações para o Futuro das Universidades. Procuraremos também identificar oportunidades e caminhos possíveis para a investigação e o ensino superior que possam contribuir para um futuro mais justo e sustentável.
Lavínia Pereira e Olivia Bina são investigadoras no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Texto escrito de acordo com a ortografia anterior ao Novo Acordo Ortográfico
2 thoughts on “O futuro da Universidade: precisamos de uma mudança?”