Sustentabilidade e Justiça no Antropoceno

Autor: André Silveira

A sessão de lançamento do barómetro da sustentabilidade, organizada pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS-UL) no passado dia 6 de Setembro, tocou em aspetos da sustentabilidade e da governança que aqui merecem reflexão, e se podem associar ao conceito de justiça, no seu sentido mais lato.

O Ministro do Ambiente terminou a sua intervenção na sessão com dois pontos de particular interesse: (a) a constatação de que a administração pública está  demasiado distante das pessoas no que respeita à gestão do território, dos recursos naturais e dos ecossistemas que providenciam esses recursos; (b) um repto lançado ao grupo SONAE para que se faça uma análise cuidada da pegada ecológica dos seus produtos e cadeias logísticas, e se disponibilize esta informação ao consumidor.

Estes pontos vincam, por um lado, o interesse do estudo da sustentabilidade de modelos de produção e de consumo intensivos de alcance planetário e, por outro, a importância das instituições de proximidade que permitam criar parcerias com a população local, monitorizar a saúde dos ecosistemas e fazer face a desafios socio-ambientais do Antropoceno, como a poluição e as alterações climáticas.

São assuntos que assumem particular relevo quando se tem em conta, como o primeiro grande inquérito à sustentabilidade em Portugal revela a pouca sensibilidade da população portuguesa para as questões da governança, isto é, para o pilar institucional da sustentabilidade. Aqui adopto uma interpretação ampla de instituições, não como organizações, mas como regras ou normas sociais que ditam ou guiam ações, decisões e comportamentos quotidianos. As instituições influenciam profundamente o relacionamento entre a sociedade e os ecossistemas que lhe subjazem.

Passo agora, por razões de economia de espaço, a dar enfoque à questão da pegada ecológica das grandes empresas da indústria alimentar e suas cadeias logísticas. Em primeiro lugar, é importante notar que esta pegada ecológica é também intrinsecamente social. Pela sua capacidade de influenciar o uso do solo, água, florestas, recursos marinhos e biodiversidade em múltiplos locais, a actividade das empresas transnacionais pode, inclusive por via do comportamento dos seus fornecedores, restringir o acesso das populações locais aos recursos naturais de que dependem, e assim limitar a sua capacidade de adaptação às alterações climáticas. A relação de poder entre os atores envolvidos é de tal formal assimétrica (e.g. entre multinacionais e entidades governamentais em países com pouca capacidade de monitorizar a correcta implementação de leis ou a saúde dos ecossistemas), que se assiste a uma crescente pressão da parte de consumidores e da sociedade civil para repensar a responsibilidade social e ambiental destas empresas sob o prisma dos princípios morais da justiça e da equidade.

A título de exemplo, o programa behind the brands, sob a égide da organização não-governamental Oxfam, promoveu uma race to the top entre as 10 maiores empresas do mundo no ramo da indústria alimentar, incluindo as suas cadeias logísticas. Com o objectivo de criar uma cadeia alimentar global mais sustentável e justa, o programa compara práticas e pontuações, e põe em evidência lacunas e melhores práticas em certas categorias de ação.  É dada uma pontuação de 1 a 10 com base na informação que as empresas fornecem (ou não) e são preparadas, desde 2013, fichas de avaliação (scorecards como o da figura 1), apresentadas ao público uma ou duas vezes por ano. A tabela 1 pretende ajudar a um melhor entendimento das categorias e dos indicadores em causa.

Figura 1. Scorecard publicado em Fevereiro de 2013.

as1Fonte: www.behindthebrands.com

as2Fonte: Preparado pelo autor com base na informação disponibilizada em www.behindthebrands.org

O impacto deste programa de monitorização não foi ainda objeto de um estudo rigoroso. Contudo, a evolução dos mapas de indicadores disponíveis revela alguns sinais de melhoria e aprendizagem entre as organizações que visam liderar o mercado no campo da responsibilidade social e ambiental (por exemplo, através da adopção de um modelo de negócios baseado na criação de shared value).

Este programa reflecte também uma tendência interessante: o uso e operacionalização do conceito de justiça, em sentido lato, no contexto da sustentabilidade. É um conceito presente em variados contextos discursivos, tais como justiça climática, justiça em transições energéticas, justiça ecológica e outros exemplos bem documentados por David Schlosberg.

Parece-me útil, porém, sistematizar de modo sucinto as implicações que a noção de justiça traz no campo da sustentabilidade, para além de uma visão generalista assente na justiça inter-generacional e de uma visão centrada na capacidade do estado para “fazer justiça” e na eficácia do sistema judicial. Existe um conjunto de decisões empresariais de rotina que são de enorme importância para uma sustentabilidade justa, incluindo a criação de standards e ecolabels.

Assentes nos princípios éticos da igualdade no que respeita a direitos políticos e da equidade (mais do que utilidade) na distribuição de custos e benefícios económicos, um vasto conjunto de autores vem reflectindo sobre as diversas dimensões da noção justiça, que aqui se considera simultaneamente social e ambiental.

A dimensão distributiva da justiça, primeiro explorada por John Rawls no seu livro A Theory of Justice, de 1971, é a mais intuitiva e conhecida. Refere-se, antes de mais, à equidade na distribuição de custos e benefícios económicos segundo as necessidades de cada um. Aliada à dimensão distributiva, encontra-se muitas vezes a dimensão processual, que tem enfoque no igual acesso à informação, a uma participação efectiva em processos de decisão e, em última análise, ao sistema judicial.

Em complementaridade com estas facetas mais conhecidas, a dimensão do reconhecimento de identidades individuais ou de grupo é, segundo Nancy Fraser, fundamental. A falta de reconhecimento constitui uma das principais fontes de injustiça distributiva. Trata-se de um problema mais profundo, que pode incluir instâncias de dominação cultural; comportamentos de não-reconhecimento com vista a retirar visibilidade à identidade e necessidades de certos indivíduos ou grupo de indivíduos; ou ainda o desrespeito ativo, denegrindo a imagem de outros com representações públicas estereotipadas.

Reconhecendo a importância das anteriores dimensões, Amartya Sen, na obra A Ideia de Justiça, de 2009, propõe uma visão de justiça fundamentada em liberdade e na noção de capacidades. Estas existem quando um indíviduo tem a oportunidade de fazer e ser aquilo que é da sua escolha, conseguindo exercer, segundo a sua vontade, funções plenas na sociedade em que se insere. A obtenção de capacidades  e o exercício de funções presumem a existência do reconhecimento de identidades, de uma participação efectiva e de uma distribuição justa. Porém, estas capacidades constituem uma condição sine qua non para formas de desenvolvimento sustentável. Não basta, pois, dar o peixe, é também fundamental dar a cana de pesca, ensinar a pescar e conservar a saúde dos ecossistemas ripários.

Estas quatro dimensões da justiça assumem especial significado prático quando se tem em conta o tempo e o espaço como dimensões transversais. Os desafios ligados à justiça climática demonstram bem a importância destas duas dimensões adicionais. A geração presente tem um dever moral para com as gerações futuras quando se trata do combate e adaptação às alterações climáticas. Por outro lado, é necessário apoiar esforços de adaptação segundo as diferenças de responsabilidade histórica e de vulnerabilidade que existem, no tempo presente, entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como entre áreas urbanas e rurais.

Estas diversas dimensões da justiça interagem e podem formar um quadro analítico útil na avaliação de políticas e programas de ação públicos e privados quanto aos seus contributos no campo da justiça.

Figura 2. As múltiplas dimensões da justiça

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Fonte: Preparado pelo autor com base em Silveira, A. (2016), ‘The multiple meanings of justice in the context of the transition to a low carbon economy‘, University of Cambridge Institute for Sustainability Leadership (CISL), Working Paper 02/2016

A extensão dos problemas da sustentabilidade na actualidade parece exigir também novos entendimentos sobre o elo entre direitos e deveres. Autores como Onora O´Neill sublinham que o propósito da justiça não pode ser bem-sucedido apenas com o reconhecimento de direitos; este terá de ser acompanhado por um reconhecimento de deveres igualmente explícito. Parecem existir cada vez maiores exigências para aqueles que usufruem de maior poder no sistema económico global.

Não se vislumbra, porém, a possibilidade de reconhecimento legal dos deveres de multinacionais na promoção de uma sustentabilidade explicitamente justa. Resta a possibilidade que, por via do empoderamento de consumidores e da sociedade civil, se “normalize” uma ética que possa fazer emergir novas noções de dever e, em última análise, maior justiça na contestada era do Antropoceno. Uma resposta ao repto lançado pelo Ministro do Ambiente, no sentido de garantir o acesso a informação sobre a pegada  ambiental e social dos produtos que chegam às cadeias de distribuição, constituiria um passo crucial nesse sentido.

 

André Silveira é investigador de pós-doutoramento no ICS ULisboa.

 

 

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