As cidades (in)conscientes

Autor: Roberto Falanga

Em Tamara, uma das cidades visitadas pelo Marco Polo do Italo Calvino na obra “Cidades Invisíveis” (1972), o protagonista observa que a cidade diz tudo o que é necessário pensar, faz repetir o seu discurso e enquanto o viajante pensa estar a visitar a cidade ele está, na verdade, a registar os nomes com que ela se define a si própria e a todas as suas partes.

O caráter relacional, contextual e conflitual da língua reflete-se nas formas como conhecemos as cidades. A origem das línguas e as negociações sobre os significados das palavras trilham caminhos que vale a pena percorrer para entender o presente. As histórias das línguas e das cidades são histórias de fusões e distanciamentos incessantes, são estórias de uma História que faz e desfaz, que junta e afasta, e que nos faz andar, saltar, correr e, por vezes, separar e parar. A língua é a evocação da memória, é a citação íntima e emocional do passado que nos permite aproximar do futuro. Recordar é voltar a pôr (-re-) no coração (-cor-), como fazem também os ingleses (by heart) ou os franceses (par coeur). Nas encostas das palavras existe a memória dos acontecimentos mais singulares, dos hábitos, das zangas, dos amores, das malandragens.

A língua portuguesa é rica em cruzamentos e encruzilhadas morfológicas e fonéticas, que testemunham o seu tourbillon de la vie. Olhando para o etymon de algumas palavras, e portanto para a “verdade”, que como um caroço de um fruto está pronta a germinar novamente, percebemos como os nomes das coisas viajam com as pessoas, os neologismos entram e saem das línguas, e passando de boca em boca transformam a vivência que temos dos lugares à medida que estes nos transformam a nós próprios. Vamos dar um passeio por uma rua urbana e encontraremos armazéns, onde por vezes vai haver xaropes, pacotes de açúcar ou garrafas de álcool, e a seguir vamos passar pelo mercado da cidade, onde poderemos comprar alfaces, alcaparras, e, por que não, alcachofras. Evocamos assim os encontros e os desencontros do passado com as populações árabes, bem como alguns dos seus legados. No banco do mercado ao lado, poderemos ainda comprar abacates, ananases e um bom chocolate, registos vivos do domínio e da colonização dos povos indígenas em terras americanas no século XV.

Rua Nova dos Mercadores, Lisboa, Séc. XVI
(o quadro, pintado por um artista holandês anónimo, foi descoberto em 2009 em Oxfordshire por Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe)
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Fonte: Jornal Público

Os legados da língua latina testemunham a transformação da língua e a articulação que palavras homófonas tiveram em relação a distinções de natureza social. Quando andamos pela cidade apropriamo-nos do espaço urbano, um espaço que remete para a palavra urbs, de origem etrusca, e que passou a designar apenas a cidade de Roma, capital do Império e das decisões políticas, assim como sucedeu com a polis grega. À urbs justapôs-se o termo civitas, que remetia para os diversos estratos da sociedade, constituídos por famílias ligadas por rituais comuns, o qual acabou por afirmar-se como a palavra de uso principal. Quando passamos pela nossa freguesia, entramos em ressonância histórica e emocional com a dimensão sagrada para que a palavra remete: freguesia, de filii ecclesiae, era o espaço dos “filhos da igreja”, da paróquia, da comunidade ligada por rituais religiosos. Quando voltamos para a casa depois de um dia de trabalho, cansados pela “tortura” para que esse termo remete (do latim tripalium, instrumento de tortura feito de três paus aguçados), voltamos para o nosso ambiente doméstico em memória da domus, habitação dos cidadãos onde ardia o fogo sagrado, enquanto a “casa” propriamente dita era a habitação mais humilde, por vezes a residência de campo.

O trilho etimológico chega sempre a um destino, a uma “de-finição”, mesmo que provisória, porque presente. As margens semânticas servem como paredes para a criação de significados, os quais correm, subterrâneos e invisíveis, e vibram junto dos seus habitantes, visitantes e viajantes. Sentidos e significados não coincidem, assim como o sentido de uma rua ou a sua etimologia não correspondem ao significado que lhe é atribuída por cada um de nós ao percorrê-la, ao evitá-la, ao observá-la, ao recordá-la ou ao imaginá-la. Os significados criam-se na relação única e contínua que o espaço tem connosco e que nós temos com o espaço.

«Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é direto, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projetar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições».

É com essas palavras que José Saramago, na obra “Todos os nomes” (1997), nos sugere que sem a função semiótica da língua o mundo seria uma selva de símbolos incomensuráveis, onde acabaríamos por perder a razão e deixar os impulsos fluir sem controlo. Como entender a dimensão que ultrapassa o sentido e a profundidade etimológica?

A psicanálise, que no século XX levou a cabo uma revolução profunda e controversa, e por isso maravilhosa, na nossa sociedade, e que fez penetrar as teorias do inconsciente nos estudos científicos, tentou compreender esta dimensão misteriosa, até então “sem nome”. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, reconheceu como os processos de simbolização obedecem a uma ordem de sentido perante a qual a lógica racional não tem valor. O inconsciente torna-se o reino do ilógico ou, como é apontado pelo psicanalista Ignacio Matte Blanco, de uma outra lógica que opera na mente por “simetrização” e “generalização”. O inconsciente categoriza o mundo em conjuntos emocionais infinitos na sua indiferenciação e, por fim, indivisíveis. Esta lógica age sem interrupção e faz de contraponto à nossa capacidade racional de discriminar e distinguir entre as coisas do mundo. Essa semiótica das emoções, que carateriza a experiência do mundo, procura – custe o que custe – uma expressão nas palavras.

Assim, porventura, o que parece contraditório, pensando em termos racionais, torna-se possível no nosso inconsciente. Por exemplo, em contraposição à geometria euclidiana, o espaço do inconsciente pode ter mais de três dimensões e dois volumes podem ocupar o mesmo espaço simultaneamente. Isto é claro nos sonhos: estamos num supermercado e de repente, sem mudar de sítio, estamos na nossa casa sem ter necessariamente deixado de estar no supermercado. E fica claro em certas novelas, como Alice no País das Maravilhas, do novelista Lewis Caroll (1865), ou em recentes películas blockbuster, como Matrix (1999), Inception (2010) e Interstellar (2014). E fica claro ainda em obras de arte como as de Maurits Cornelis Escher, o qual decidiu submeter as leis da perspetiva a novas pesquisas críticas projetando objetos tridimensionais em superfícies planas e bidimensionais, criando assim algo insólito, difícil de compreender a partir de uma lógica racional. A ambição de demonstrar que é possível pensar noutras geometrias que não as conhecidas, fez com que o arquiteto Vittorio Gregotti afirmasse que o problema não reside na possível “irracionalidade” da criação artística, mas sim na capacidade de  reconhecer a existência de racionalidades diferentes.

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M.C. Escher – Relativity (1953) 

Ora se as palavras servem para contornar a selva de símbolos em que andamos, o esforço da sociedade tem sido o de emancipar os indivíduos das formas mais primordiais e maniqueístas de discriminação. Às categorias binárias do género “amigo/inimigo”, “dentro/fora”, que fazem do mundo um lugar visto a “preto e branco”, temos contraposto sistemas de entendimento mais complexos. Isto porque uma problematização mais profunda da realidade permite não cair no trivial e não assentar em exercícios de mero poder perante o outro. Infelizmente, nem sempre o esforço foi bem-sucedido. O que torna a redução de significados mais apelativa é a sua capacidade de disfarçar as contradições internas à cultura.

O movimento semântico entre dimensões infinitas e finitas acaba, assim, por transformar algumas palavras em mundos em contraposição, onde a cidade tem sido teatro por excelência. O poder que a língua tem tido foi uma das marcas que contradistinguiram a obra deslumbrante de Michel Foucault. Segundo ele, os discursos têm de ser analisados não só no seu valor expressivo ou nas suas transformações formais, mas também nos modos de circulação, de valorização, de atribuição e de apropriação, que variam com cada cultura e mudam dentro cada uma, e que nos falam das formas de poder. Pensamos na palavra idiota, grecismo que se referia ao homem sem encargos públicos e que se simetrizou com o sentido de incompetente e se estendeu a uma dimensão emocional pejorativa. O mesmo destino ocorreu a palavras como vilão, a designar não apenas quem vive no campo mas também o indivíduo mau, como pagão, habitante do pagus e que se tornou sinónimo de infiel. Dentro e fora da cidade, esse foi o destino também de outras palavras, como imbecil, originariamente a significar o indivíduo fraco por não (-im-) possuir bengala (-baculum-), deficiente, estúpido, parvo, que significava simplesmente pequeno (“parvus”) mas que acabou por designar uma pessoa sem intelecto, ou chato, que vem de plato, ou seja, plano, talvez porque o que é plano não resultava particularmente interessante.

Existe um fator comum a todas estas palavras: o forasteiro sempre foi e continua a ser o não conhecido, o estranho tanto no sentido de esquisito como de estrangeiro. O indivíduo que vem de fora não é, por definição, como nós. O estranho é, no melhor dos casos, algo curioso, mas na maioria dos casos algo perigoso que precisa de ser sinalizado. Para lidar com os ventos que sopram no mundo contra o que é estranho porque diverso, precisamos de entender os nossos mundos semânticos e, junto a isso, necessitamos de poderes claros na sua forma de atuar e de aplicar medidas concretas para ampliar os direitos democráticos. Precisamos de governos que saibam dirigir os seus navios (do latim gubernare, “dirigir um navio”, de proveniência grega kybernân) e que nos façam atracar, e portanto chegar (“chegar” vem do latim plicare, que significa dobrar, entre outras coisas, as velas do barco) em terras onde os direitos civis e políticos sejam para todos e não só para alguns. Precisamos de continuar a sentar-nos junto ao Marco Polo e ao Grande Kublai Kan para falar de cidades do passado e do futuro. E precisamos, por que não, de inventar novos significados e novas palavras capazes de contar as cidades do presente.

Roberto Falanga é psicólogo de formação e Doutorado em Sociologia. A sua investigação é sobre formas de envolvimento de sociedades urbanas e tem privilegiado abordagens qualitativas de análise do discurso.

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