“Mãe, porque é que as pessoas não bebem leite de porca?”: da histórica invisibilização dos animais

Por: Maria Inês Antunes

Em setembro de 2024, com 3 anos, a minha filha Alice fez-me repensar todo o sistema alimentar para tentar encontrar a razão para os humanos só beberem leite de herbívoros (vaca, ovelha, cabra, burra e búfala) na cultura ocidental. A primeira razão que considerei foi o valor nutricional, mas essa explicação cai por terra quando consideramos o facto de que o leite de porca é bastante rico em gordura e proteína (mais até do que o de vaca). Um conjunto diversificado de factores podem influenciar esta decisão: as glândulas mamárias das porcas são diferentes das da vaca e isso faz com que as máquinas usadas hoje em dia para extracção do leite sejam inúteis; tirar leite manualmente às porcas seria impraticável (em pequena escala há pelo menos dois relatos de ordenha manual de porcas: um nos Países Baixos, para se tentar produzir queijo a partir do leite, e outro na China, para se tentar comprovar o valor nutricional do leite); a porca produz menos quantidade de leite em cada lactação; o porco produzido actualmente é, regra geral, para consumo de carne; o porco é um animal rejeitado para consumo em algumas religiões e grupos sociais.

O que têm estas razões em comum? Uma visão economicista e, por isso, utilitarista do porco.

Da coisificação à categorização: a invisibilização como resposta

De acordo com Cole e Stewart (2014: 16), os “animais não-humanos são primeiramente definidos e categorizados de acordo com o tipo de relação que têm com os humanos”. De uma forma simplista, podemos dizer que existem três categorias de animais de acordo com a sua utilidade para os humanos: os animais de companhia, os animais para consumo (seja como alimento, para entretenimento ou para experimentação) e os animais selvagens.

Os humanos são expostos desde a infância a imagens do porco enquanto alimento, perpetuando a coisificação do animal, a manutenção da hierarquia entre humano e porco e a categorização do porco enquanto animal para consumo.

DeMello (2012: 12) explica que, desde a revolução neolítica, os humanos trabalham com os animais. Milhares de anos após a domesticação do cão enquanto parceiro de caça, os grandes ruminantes passaram a ter um papel essencial nas sociedades humanas, enquanto fonte de trabalho, carne e leite.

Hoje em dia, o porco é dos animais mais usados em todas as áreas da sociedade, desde alimentação (humana e animal), cosmética, roupa e acessórios, cerâmica, medicina (tanto em investigação como medicação), lubrificantes e até explosivos.

Tal como acontece com muitas outras espécies, existe em todas as áreas uma invisibilidade do porco, que se torna, como disse Carol J. Adams (2010), um ‘referente ausente’ (“o ‘referente ausente’ é aquilo que separa o comedor de carne do animal e o animal do produto final”, tradução livre da autora).

Apesar de não utilizarmos em português outra palavra para o designar (como em inglês passamos de ‘pig’ para ‘pork’), muitas vezes o porco é representado por uma parte do seu corpo (‘pezinhos’ ou ‘túbaros’), por um corte ou confecção específica de uma parte do seu corpo (‘torresmo’, ‘presunto’ ou ‘toucinho’) ou por denominações puramente culinárias que retiram totalmente o animal do imaginário (‘gelatina’, ‘salsicha’ ou simplesmente ‘carne’ sem qualquer detalhe sobre a espécie animal).

Esta invisibilidade do animal é referida por alguns autores como uma contradição e é chamada “paradoxo da carne”. Aqui foi ilustrada de uma forma prática por um jornalista que decidiu dedicar alguns anos de vida a aprender a ser cozinheiro profissional:  “(…) as pessoas não querem saber exactamente o que é a carne. Para o meu vizinho (e os meus amigos, e também para mim, durante a maior parte da minha vida), a carne não é carne, mas uma abstracção. As pessoas não pensam no animal quando usam a palavra: pensam num elemento de uma refeição” (Bufford, 2012).

A carne assumiu um estatuto simbólico na cultura ocidental e, por isso, não é surpreendente a forma como as crianças vão também integrando estas invisibilidades (Policarpo et al., 2018: 207).

Cultura popular e infância: novas formas de invisibilização

Às crianças é ensinado que devem sentir empatia pelo outro, mas para isso acontecer é necessária compreensão, evitando a antropomorfização. Isso pode explicar porque é que mesmo existindo empatia da parte de quem é espectador assíduo da personagem Porquinha Peppa, seja adulto ou criança, existe uma total dissonância cognitiva criada por essa antropomorfização da porca (Figura 1).

Segundo Policarpo et al. (2018: 212, tradução livre da autora), “Uma ligação emocional próxima com os animais é encorajada em tenra idade (através de peluches fofinhos, representações engraçadas em personagens de filmes e outros elementos da cultura popular)”. No entanto, o animal continua a ser um ‘referente ausente’, na medida em que as crianças acompanham um animal antropomorfizado que se comporta como elas, como é o caso da Peppa. Dessa forma, os espectadores não precisam de fazer nenhuma associação ao comportamento natural dos porcos, porque na realidade a Peppa representa-os a eles: humanos-espectadores.

Figura 1 Alice a ler um livro da Porquinha Peppa (Maio, 2023, foto da autora)

Neste episódio em particular, Peppa prepara, juntamente com o seu irmão e pai, uma gelatina para oferecer à mãe que esteve o dia todo a trabalhar. O episódio termina com a imagem da Peppa e sua família a comer a gelatina. Ao omitir-se a origem da gelatina, que é tradicionalmente de origem animal, a maior parte das vezes de porco, cria-se uma desconexão identitária: uma gelatina é “só” uma gelatina, independentemente de ser originária de um porco, isto é, a espécie destas personagens infantis. Tem lugar desta forma uma omissão intencional – a que Eisner (1985) chama “currículo nulo” – e que apresenta os alimentos no seu estado final (como vão ser consumidos), sem existir uma apresentação de como a indústria agroalimentar e todas as actividades inerentes funcionam, impedindo as crianças de aprender sobre estes temas.

Esta representação está presente tanto em desenhos animados como na literatura infantil. Cole e Stewart (2014: 21) explicam que para os leitores mais novos a incongruência não existe, pois já estão habituados a esta negação (ou omissão) e isso já decorre com naturalidade, não sendo na maioria das vezes questionada. Há, no entanto, um horizonte de esperança. Quando as crianças crescem numa cultura de empatia para com todas as espécies, começam elas mesmas a questionar. Questões essas que são muitas vezes incómodas para os adultos. Compete-nos a nós, adultos, ter a coragem de lhes dar uma resposta.

Maria Inês Antunes desenvolve iniciativas na área da sustentabilidade alimentar, através do seu projecto Kitchen Dates, e é aluna do curso de pós-graduação Animais e Sociedade do ICS-ULisboa, coordenado por Verónica Policarpo. Este texto foi produzido no âmbito do módulo Animais, Representações e Narrativas, sob a coordenação de Jussara Rowland. mipantunes@gmail.com

Ativismo pelos animais e redes sociais

Por: Ana Vidal

Nos últimos anos, o ‘animal turn’ despertou um interesse académico crescente pelos animais e pelas suas relações com os humanos, desafiando as hierarquias humano-animal e redefinindo o seu papel na sociedade. Este movimento reflete uma transformação interdisciplinar e multidisciplinar que reforça as metodologias multiespécies e a centralidade da questão animal, impulsionando a proliferação dos estudos humanos-animais e dos estudos críticos animais, contribuindo para lhes dar uma maior visibilidade. Simultaneamente, surgiram plataformas como o Facebook, o Twitter ou o Instagram, que possibilitaram às pessoas alargarem os seus contactos e conectarem-se, mas também dar visibilidade aos animais, através da criação de perfis e partilha de imagens.

Na continuidade do que acontece na vida social, os animais são frequentemente o tema de interesses compartilhados online. É neste contexto que as redes sociais têm desempenhado um papel importante no ativismo pelos direitos dos animais, constituindo ferramentas de divulgação de informação, denúncia, ação política e social e permitindo expor os horrores sofridos pelos animais à mão humana, para fins alimentares, turísticos, de entretenimento ou experimentação. As redes sociais também contam histórias inspiradoras e mostram os animais como indivíduos com valor intrínseco, senciência, estados emocionais e motivacionais. No caso dos santuários, as redes sociais são também indispensáveis para a sua subsistência, uma vez que estes dependem quase exclusivamente das doações dos seguidores e da ajuda dos voluntários.

 As redes sociais são também uma ferramenta de construção de comunidades e de identidade social. Nesse caso, de que forma podem elas conduzir a uma transformação efetiva das práticas sociais, ao expor a realidade dos animais, participando assim na construção de um mundo mais justo para todos os seres vivos? Estas reflexões surgem da minha experiência como ativista do Coimbra Animal Save, capítulo local do Animal Save Portugal e do Animal Save Movement, rede global de ativistas que lutam pela libertação animal.

Faço ativismo na rua, na sala de aula, no meu grupo de amigos e no seio familiar, mas é através das redes sociais que consigo um maior alcance. Através do Facebook e do Instagram, partilho imagens e vídeos de matadouros e de outros contextos de violência sobre os animais, mas também de santuários. Penso muitas vezes na eficácia das minhas partilhas. Que impacto terão nas pessoas que as veem?

Matadouros ou santuários?

Surgem então algumas interrogações: que tipo de conteúdo impacta mais as pessoas? Imagens de matadouros ou de santuários? Violência ou cuidado? Estes binários tendem a ser polarizadores. Imagens de matadouros podem gerar um sentido de urgência para a mudança e a ação, mas também provocar repulsa, afastando aqueles que se sentem atacados. Por outro lado, as imagens de santuários inspiram empatia, mas podem ser percebidas como menos urgentes, dificultando a procura de soluções.

Mia de Carvalho, uma das responsáveis e gestora das redes sociais do Coimbra Animal Save, do Animal Save Portugal e do Save & Care – Santuário Animal, partilhou comigo a sua opinião sobre estas questões. Da sua experiência, as imagens positivas, que mostram animais livres para expressar os seus comportamentos naturais e viver sem exploração e crueldade, têm um maior alcance, mais interações e partilhas. A opção por imagens negativas, que mostram animais em sofrimento, abuso ou exploração, pode resultar num menor alcance e, por vezes, na perda de seguidores. No entanto, imagens de violência extrema, embora impactantes, tendem a ter um maior alcance do que aquelas que mostram menor violência.

Vejamos, por exemplo, o caso comovente da porca Rosinha. A Rosinha foi salva de uma vida de negligência, fome e doença pelo Noel e pela Alice. Agora vive com dignidade e cuidado no Save & Care – Santuário Animal. Este caso foi acompanhado por muitas centenas de pessoas que se comoveram com a história da Rosinha e acompanharam a sua recuperação através das redes sociais.

Rosinha; Fonte: Imagem publicada no Instagram do Save & Care – Santuário Animal a 22 de julho de 2024

Ativismo pelos animais e redes sociais à luz do que dizem os estudos

Estudos que se debruçaram sobre estas questões evidenciam que, de forma geral, as pessoas preferem histórias felizes, com a positividade a exercer um impacto maior do que a negatividade no valor de partilha de uma notícia, especialmente no Facebook. Não obstante, outro estudo examinou em que medida o uso de imagens de violência explícita sobre os animais pode ser eficaz no combate ao especismo, isto é, à discriminação daqueles que não pertencem a uma determinada espécie. Para isso, foram analisadas estratégias de comunicação visual, centradas no uso estratégico do choque moral. Concluiu-se que o ativismo pela libertação animal pode beneficiar com esta abordagem.

Por outro lado, um estudo sobre expressões do veganismo no Facebook analisou o léxico usado nas publicações desta rede social, tendo encontrado palavras como “abate” e “assassinato” ao lado de termos compassivos como “cuidar” e “salvar”, sugerindo a coexistência de estratégias para atrair públicos variados, combinando choque e empatia para estimular a ação e o envolvimento dos utilizadores.

Um outro estudo analisou as reações dos consumidores de carne ao ativismo pelos animais, através das redes sociais. Estes consumidores veem este tipo de ativismo como “slacktivism”, isto é, “ativismo de sofá”, considerando as publicações pouco credíveis e os ativistas pessoas ignorantes. O estudo concluiu que é improvável que a informação gerada através das redes sociais mude as perceções dos consumidores de carne, pelo menos na forma como está a ser transmitida. Embora as redes sociais tenham ampliado a comunicação sobre questões relacionadas com a causa animal, o modo como a mensagem é percebida por pessoas que não se sensibilizam com a causa permanece inalterado. Para os autores do estudo, a atual estratégia de comunicação das organizações ativistas nas redes sociais pode não ser eficaz para aqueles que comem carne, e até reforçar a perceção de falta de valores comuns entre consumidores e não consumidores de carne.

Embora os ativistas pelos animais possam gerar grandes quantidades de tráfego online, isso não significa necessariamente sucesso em termos de mudança da opinião do público. Loy questiona de que forma os defensores dos animais podem fazer-se ouvir no cenário dos novos meios de comunicação, em constante mudança, e como podem as suas mensagens efetivamente penetrar nos debates públicos. Defende que os ativistas pelos animais devem adotar narrativas persuasivas, explorar o impacto emocional das redes sociais e associar a causa animal a questões mais amplas, como a justiça social. Estratégias como a colaboração com influenciadores, o uso de imagens impactantes e a adaptação da mensagem ao público-alvo são essenciais para garantir não só visibilidade, mas também mudanças reais na perceção e comportamento da sociedade.

Ativismo digital pelos animais: que futuro?

Numa abordagem de estudos críticos dos animais, torna-se evidente o papel ambíguo que as redes sociais podem desempenhar. Se por um lado possibilitam a ampliação do debate e a visibilização das injustiças, por outro operam dentro de dinâmicas que podem enfraquecer o potencial emancipador destas narrativas. O tipo de conteúdo mais eficaz na mobilização e sensibilização do público continua a ser uma questão em aberto: têm maior impacto imagens de matadouros, que expõem a violência e a crueldade, ou imagens de santuários, que transmitem cuidado e empatia?

Apesar destas ambiguidades, as redes sociais têm um enorme potencial para apoiar a causa animal e fortalecer o trabalho dos ativistas pelos direitos dos animais. No entanto, é essencial que estas plataformas sejam usadas de forma estratégica, com conteúdos que combinem emoções e informação. Ao partilhar histórias, imagens e vídeos que gerem empatia e promovam diálogos construtivos, é possível sensibilizar um público mais amplo, transformando a perceção pública e inspirando ações concretas em prol de um mundo mais justo para todas as espécies.

Ana Vidal, Professora do 1.º CEB, é aluna do curso de pós-graduação Animais e Sociedade do ICS-ULisboa, coordenado por Verónica Policarpo. Este texto foi produzido no âmbito do módulo Animais, Representações e Narrativas, sob a coordenação de Jussara Rowland.

Sustainable futures for whom? Towards an education for interspecies sustainability

By: Maria Helena Saari (University of Oulu)

What does cow’s milk have to do with education and sustainable futures? To explore this question we might ask, as environmental education scholar David Orr has done, if education stems from the word “educe”, meaning “to draw forth” or “bring out”, what is being brought out by the connections between the dairy industry and schools?

Image: Annie Spratt on Unsplash
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Uma vida que seja sua: um Hub de estudos com os animais

Por: HAS-Hub

Em 2017, um colectivo de autoras assinava o texto A life of their own: children, animals, and sustainable development, questionando a invisibilidade dos animais não humanos na agenda do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. O texto chamava a atenção para a sua ausência nos 17 Objetivos (SDGs) da Agenda 2030, onde só surgem mencionados indiretamente como “recursos” (SDGs 14 e 15), meios para um fim: construir uma vida e um futuro melhores para os humanos, no (e não com) o planeta. Sem o saber, este documento lançava as bases programáticas que inspiraram a agenda de investigação daquele que viria a ser o Human-Animal Studies Hub (HAS-Hub) – um espaço interdisciplinar para investigadores nacionais e internacionais unidos por um interesse comum: reconhecer os animais como sujeitos de investigação de pleno direito, com subjetividade e agência, parceiros no estudo das nossas relações com eles.

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The Roar of Catastrophes: animals and humans in the face of (not-so-natural) disasters

By: Verónica Policarpo

Breathing in, take one. Inspiring Svetlana.  

How can we attune ourselves to the suffering of those caught by catastrophes? How much wonder can we find in their unimaginable capabilities for recovery?

These were the questions that inspired me when I first read Svetlana Alexievich’s Voices of Chernobyl, and then all her other books, as it usually happens when I get obsessively caught by an author that speaks to my deepest soul. What is it that triggers a line of restless enquiry that clings to our mind, as much as to our heart, to the point that it seems to have a life of its own? Here, I wish to reflect briefly upon what draws me to the study of catastrophes, and in particular to the experiences and suffering of nonhuman animals caught therein. I depart from Svetlana’s words, which was precisely what triggered my interest in the topic. Her books on human-made catastrophes – nuclear incidents, wars – are mainly about humans. But it strikes me how, in her narratives, she weaves the human accounts of disaster together with the non-human. May it be the forests of Ukraine or Belarus, caught in a radioactive peaceful mortal beauty. Or the innumerable animals caught in between the cruelty of such human excesses. At some point, in the preface of one of her books, she poignantly states (in much more beautiful words than those I can now recollect): one day, someone should make the History of all the animals killed in these disasters.

Like all important ideas, its simplicity hit me as fire. How come we have for so long disregarded what happens to animals in catastrophes? I am not an historian. But I am a social scientist and a human-animal studies scholar. And part of what I do is exactly to explore how to bring the non-human animals into our knowledge of social phenomena, including them as legitimate subjects of research, full co-producers of knowledge, accounting for their perspectives and interests. How could I, then, make a contribution?

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A walk on the wild side: Rewilding Britain’s landscapes with large herbivores

By: Filipa Soares

Conservation is at a crossroads. Despite increasing efforts worldwide aimed at halting or preventing the extinction of animal and plant species, many reports and scientific studies paint alarming pictures of rocketing extinction rates, dwindling population sizes and habitat loss. The era of the sixth mass extinction is under way, the first for which humankind is deemed responsible. In response to these ‘doom and gloom’ scenarios, a growing number of ecologists and conservationists has emphasised the need for innovative, proactive and experimental approaches to nature conservation. Rewilding, which was the focus of my PhD thesis in environmental geography, is one such approach.

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