Por: HAS-Hub
Em 2017, um colectivo de autoras assinava o texto A life of their own: children, animals, and sustainable development, questionando a invisibilidade dos animais não humanos na agenda do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas. O texto chamava a atenção para a sua ausência nos 17 Objetivos (SDGs) da Agenda 2030, onde só surgem mencionados indiretamente como “recursos” (SDGs 14 e 15), meios para um fim: construir uma vida e um futuro melhores para os humanos, no (e não com) o planeta. Sem o saber, este documento lançava as bases programáticas que inspiraram a agenda de investigação daquele que viria a ser o Human-Animal Studies Hub (HAS-Hub) – um espaço interdisciplinar para investigadores nacionais e internacionais unidos por um interesse comum: reconhecer os animais como sujeitos de investigação de pleno direito, com subjetividade e agência, parceiros no estudo das nossas relações com eles.
Uma vida que seja (mesmo) sua: uma agenda para um Hub que ainda não o era
O texto argumenta que a invisibilidade dos animais não humanos na agenda do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas reflete o profundo antropocentrismo que permeia as instituições e o pensamento ocidentais. Assente na trilogia de afinidades electivas entre cartesianismo, tradições cristãs e capitalismo moderno e global, este modo de pensar coloca um certo tipo de “humano” (masculino, branco, com poder) no centro de todas as preocupações ontológicas e epistemológicas. O antropocentrismo surge ancorado no excepcionalismo humano, i.e., a tendência para considerar que a espécie humana tem características “de excepção”, que não se encontram noutras espécies, que a tornam superior às restantes. Este argumento é, ainda hoje, usado para legitimar a hierarquização entre espécies e correspondente supremacia do humano sobre o não humano, atribuindo ao primeiro o lugar cimeiro nessa hierarquia, e um direito quase natural a exercer poder sobre as outras espécies, nomeadamente com vista à sua utilização para suprir as necessidades humanas. A força perene do pensamento antropocêntrico vem, em grande parte, da forma como se coseu na malha intrincada do tecido social, mistificando-se em “natureza”, num processo a que os cientistas sociais se habituaram a chamar de naturalização.
O artigo A Life of their Own propõe abordar este paradoxo entre a ubiquidade dos animais nas sociedades contemporâneas, e a sua centralidade como alvos dos processos de exploração acelerada dos recursos do planeta, por um lado; e o facto de continuarem a ser totalmente ignorados como agentes activos nesses processos, nem integrados como participantes de pleno direito, por outro. Se este enigma é crucial para compreender a discussão (antropocêntrica) em torno da sustentabilidade, na verdade ele atravessa as diversas áreas da vida social, e também dos saberes que sobre elas se vão constituindo. Por essa razão, os Human-Animal Studies e Critical Animal Studies colocaram na sua agenda, de há 40 anos para cá, o questionamento sistemático das formas múltiplas como as sociedades humanas se estruturam na exploração de outras espécies para seu benefício, resultando no sofrimento de todos os animais utilizados direta ou indiretamente para esse fim.

Caminhar no futuro, com os animais.
Um olhar transversal sobre a investigação que, desde há três anos e meio, se faz no HAS-Hub permite extrair algumas pedras angulares de um programa para os Human-Animal Studies em Portugal. Pautada pela interdisciplinaridade característica da área, e coadjuvada por grupos de estudo, seminários, e programas de formação pós-graduada na área, nacionais e internacionais, a investigação do HAS-Hub propõe-se conhecer as condições sociais que perpetuam a exploração e o sofrimento dos animais não humanos, contribuindo assim para melhorar as condições de vida das várias espécies envolvidas. São diversas as temáticas em que esta missão se espelha: sustentabilidade, animais de produção, práticas sociais de alimentação e transições alimentares para formas de produzir e consumir que impliquem minimização do sofrimento animal; animais de rua, animais em abrigos, animais de companhia; interacções crianças-animais e “humane education”; animais urbanos, cidade, território; animais em cativeiro, parques zoológicos e atividades de entretenimento; animais utilizados em experiências científicas, inclusive ao serviço da exploração espacial; zoonoses, epidemias, saúde e contágio interespécies; animais em desastres, risco e catástrofes; conservação da vida selvagem, alterações climáticas; desigualdades intra e inter-espécies e interseccionalidade.
Atravessando estas temáticas, o conhecimento produzido no Hub articula-se ao longo de alguns grandes eixos nodais, a saber:
O questionamento da dicotomia humano/animal, a par de outras distinções dicotómicas que legitimam a subordinação de uns grupos por outros (vg masculino/feminino; cultura/natureza; branco/não-branco) e o modo como a relação entrecruzada (ou interseccional) entre eles conduz de forma directa ou indirecta à exclusão explícita dos animais do arco da subjectividade. Neste programa os contributos dos Estudos de Ciência e Tecnologia, do Pós-Humanismo ou do mais-que-humano têm sido relevantes.
O questionamento da perspectiva antropocêntrica, e a conceptualização de uma visão biocêntrica, que considera os animais e todas as formas de vida como seres de pleno direito, com uma vida própria, recusando reduzi-los a projecções humanas (antropomorfismo). Isto implica um descentramento do humano, e um recentramento em relações de influência recíproca, conceptualizadas de modo não hierárquico.
O foco nas relações entre espécies entendidas como um continuum, que só pode ser abordado se implodirmos a distinção entre natureza e cultura, e considerarmos ao invés a fluidez entre as realidades que repousam nessas categorias redutoras. Nessas naturezasculturas, como lhes chamou D. Haraway, o nosso olhar foca-se nas relações entre humanos e outros animais e nos modos como co-constroem os mundos que co-habitam, nas sociabilidades partilhadas entre corpos de espécies diferentes.
A adopção de uma perspectiva mais-que-humana, em que cada ser vivo, independentemente da sua espécie, é considerado como um devir (becoming), seres em formação, que emergem da formação contingente de relações de influência recíproca, no tempo e no espaço. Esta redefinição do que é ser “animal” e “humano”, que rejeita o essencialismo, assenta na natureza relacional desse “devir”. Ou seja, cada ser vivo só “é o que é” por estar em relação com outros. Por estar sempre posicionado numa comunidade ou colectivo, conectando-se com as outras espécies precisamente através das suas diferenças, em comunidades híbridas. Aqui, esta ‘relação com outros’ estende-se não só aos animais vivos, mas também tem potencial para aprofundar a relação com outros elementos orgânicos (como as plantas) e inorgânicos (como rochas, minérios, corpos celestes, artefactos e elementos subatómicos).
Em termos metodológicos, isto implica considerar os outros animais como sujeitos de investigação de pleno direito, integrando plenamente as suas vozes e perspectivas em modos de conhecimento que possam mover as fronteiras do conhecimento, para lá dos limites historicamente impostos pelo especismo, i.e., a prática de tratar os membros de certas espécies como mais importantes que os de outras, com base na crença de que tal tratamento diferenciado é moralmente justificável. Ou seja, implica fazer investigação com os animais, e não sobre eles. Para isso, apoiamo-nos na melhor imaginação metodológica: trazemos para a frente de combate deste programa de investigação as metodologias multiespécies, como ferramenta que, a partir do contributo trazido pelos animais, permite repensar o modo como fazemos ciência.
O Human-Animal Studies Hub (HAS Hub) é uma plataforma científica horizontal, flexível e interdisciplinar, que pretende estimular o pensamento livre e crítico sobre as relações entre animais humanos e não-humanos, e suas implicações societais e éticas. Sedeada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa desde 2019, esta plataforma é constituída por investigadoras e investigadores de várias escolas nacionais e internacionais, e de várias áreas disciplinares: Ciências Sociais e Humanidades (Sociologia, Antropologia, História, Filosofia, Direito, Psicologia Social, Psicologia, etc.), Veterinária, Biologia, Arte e Design, Literatura, entre outras. Tem como missão inovar nas formas de pensar a relação entre o humano e o não-humano, contribuindo para a construção de um paradigma de pensamento e ação “more-than-human”, em que as relações inter-espécies sejam pensadas como um continuum, considerando todos os seres vivos como portadores de direitos equivalentes, a ser respeitados, e assim concorrendo para diminuir o seu sofrimento. O HAS-Hub promove a sua missão em três eixos: investigação científica; formação; e publicação, divulgação e extensão de conhecimento à sociedade. Tem parcerias com diversos atores da sociedade civil, incluindo associações de proteção e conservação da vida animal.
– email: info@humananimalstudiesics.net
– Instagram: @humananimalstudiesics
– Twitter: @humananimalics
Excelente artigo.
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