Por Carla Gomes
A COP26 – Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas – realiza-se finalmente entre 31 de Outubro e 12 de Novembro, em Glasgow – e é aguardada com enorme expectativa. A pandemia da COVID-19, que forçou o adiamento da COP por um ano, veio agravar as desigualdades e sublinhar as limitações da solidariedade internacional, que há muito se tinham tornado evidentes na gestão da emergência climática. Enquanto os media internacionais enalteciam Portugal por ser o primeiro país a atingir 85% da população vacinada contra a COVID-19, um português com responsabilidades acrescidas, o secretário-geral da ONU António Guterres, considerava “inaceitável” o fosso entre os países ricos e pobres nas taxas de vacinação. A adaptação justa ganha agora ainda mais significado e sentido de urgência.
As negociações e compromissos – climáticos e financeiros – já estavam a resvalar pelo menos desde a conferência de Copenhaga (2009), uma das conferências de partes da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas) que se iniciaram com grandes expectativas – a aprovação de um acordo de redução de emissões que sucedesse ao Protocolo de Quioto – mas terminaram com resultados insatisfatórios. A COP21, em 2015, culminou no Acordo de Paris, que veio reavivar a esperança de se poder evitar as consequências mais desastrosas das alterações climáticas.
O Acordo de Paris assume a meta de limitar o aquecimento global a 2 graus centígrados até 2100 e envidar todos os esforços para o limitar a 1,5° C – valor que não deveríamos ultrapassar se queremos evitar consequências catastróficas e irreversíveis para a humanidade. O relatório divulgado em Agosto pelo IPCC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas) prevê que esse limiar de 1,5° C seja já atingido nos próximos 20 anos, sendo ultrapassados os 2° C ainda neste século. Por muito caos que tenha lançado a pandemia da COVID-19, as alterações climáticas acabam de ser reafirmadas pela Organização Mundial de Saúde como a “principal ameaça à saúde da humanidade”.
O dilema da justiça climática global é bem conhecido: muitos dos países com menor contribuição histórica para o aquecimento global são os mais afectados pelo impacto dos extremos climáticos, quer pela sua menor capacidade de resposta quer pelas características do seu território. Entre eles estão claramente os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) com quem Portugal assinou, há mais de uma década, memorandos de entendimento para enfrentar a crise climática. Desde as secas devastadoras em Angola (figura 1) aos furacões em Moçambique (figura 2), o aumento da frequência e intensidade dos fenómenos climáticos ameaça uma população que depende maioritariamente da agricultura familiar e dos regimes de chuvas, colocando em causa o cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Fonte: EC/ECHO Maria Olsen (licença Creative Commons)
Os planos nacionais de adaptação (NAP), que a UNFCCC estabeleceu na conferência de Cancun em 2010 (há mais de uma década!) são uma oportunidade única para reforçar a resiliência destes países de uma forma integrada. No entanto, ainda nenhum dos PALOP submeteu o seu NAP. No contexto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), apenas o Brasil e Timor-Leste já o fizeram.
Na 9.ª Conferência sobre Clima e Desenvolvimento em África, acolhida por Cabo Verde, apelou-se à unidade africana frente às negociações da COP26. No mesmo país, e precisamente no mesmo mês da COP 26, vão realizar-se duas conferências importantes para relançar a cooperação e a investigação climática entre os países da CPLP: o VI Congresso de Educação Ambiental dos Países e Comunidades de Língua Portuguesa e o XXII Encontro da Rede de Estudos Ambientais de Países de Língua Portuguesa. Posteriormente, em 2022, terá lugar a 2ª Conferência sobre Alterações Climáticas dos Países da CPLP, organizada pelo Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável.
Moçambique anunciou que pretende instalar o Centro de Operações Humanitárias, de Emergência e de Resiliência da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) em Nacala, na província de Nampula. O país é um caso revelador dos efeitos cumulativos de múltiplas ameaças sobre as populações mais vulneráveis. Ao impacto dos furacões, das cheias e secas – e em particular dos furacões Idai e Kenneth em 2019 – soma-se o da violência política, que provocou a deslocação de mais de um terço da população de Cabo Delgado, em plena pandemia.

Fonte: Denis Onyodi: IFRC/DRK/Climate Centre (licença Creative Commons)
Mais uma vez nesta COP26 há lutas antigas que se arrastam, e que os países em desenvolvimento têm vindo a travar ano após ano. O apoio financeiro à acção climática é um ponto fulcral – o compromisso de transferir 100 mil milhões anuais até 2020 nunca chegou a ser atingido (e além do mais boa parte são empréstimos). A ideia é fixar um objectivo mais ambicioso para 2025, o que poderá revelar-se ainda mais difícil no rescaldo da crise pandémica. Os países mais pobres e vulneráveis exigem reparação pelos danos já causados e apelam a uma redução de emissões muito mais ambiciosa, em particular dos países do G20, que se reúnem em Itália a 30 de Outubro. Em paralelo com a COP foi lançado o Acordo de Glasgow – Compromisso Climático dos Povos, em que a sociedade civil toma nas próprias mãos a emergência climática, face “ao falhanço sistemático” dos governos e instituições internacionais. O acordo foi já assinado por cerca de 200 organizações, incluindo várias de Moçambique.
Na cooperação e nas políticas públicas, é necessário que se coloque ainda uma maior ênfase na adaptação, a par da redução das emissões e em linha com os ODS – em áreas críticas como a gestão inteligente da água, a agricultura e a segurança alimentar. Na investigação, a vulnerabilidade tem de ser analisada através de uma abordagem multidimensional e interdisciplinar, que tenha em conta o efeito cumulativo de múltiplas ameaças na pobreza e nas desigualdades. Mas também com um envolvimento directo das comunidades e dos actores mais afectados, com a valorização das suas capacidades, recursos e conhecimento. A transição e a adaptação justas ganham um novo sentido de urgência num mundo que se encontra a braços com duas crises de grandes proporções. O caminho que se impõe implica uma transformação profunda do modelo de desenvolvimento económico e social.
Carla Gomes é investigadora do ICS-ULisboa, onde tem colaborado em múltiplos projectos nas áreas da sustentabilidade e das alterações climáticas. É autora do livro “Alterações Climáticas e Desenvolvimento Limpo: Cooperação entre Portugal e os PALOP”, premiado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Artigo recente sobre adaptação climática em Moçambique, na revista Climate and Development: “Trusted Land”; carla.gomes@ics.ulisboa.pt