Depois do Fogo: Repensar a Educação para o Fogo a partir dos Desastres Lentos e dos Riscos Quotidianos

Por: Ana Sofia Ribeiro

Em junho e outubro de 2017, o centro de Portugal foi palco de dois dos mais devastadores incêndios rurais da sua história recente. Mais de 115 pessoas perderam a vida, milhares de animais morreram e vastas áreas de floresta e terreno agrícola foram consumidas pelas chamas. Estes acontecimentos transformaram-se num trauma nacional, expondo a fragilidade dos territórios rurais, os limites dos sistemas de resposta de emergência e os profundos desequilíbrios sociais e ecológicos acumulados ao longo do tempo.

Contudo, por mais que esses incêndios se tenham manifestado como catástrofes súbitas, foram também o resultado de um processo de negligência prolongada da gestão do território, da política florestal e das próprias condições de vida quotidiana das populações que habitam em regiões propensas ao fogo. Esta dupla temporalidade (o momento dramático do desastre e os processos lentos que o possibilitam) enquadra a minha investigação recente sobre educação para o risco de incêndio e sobre as experiências de crianças em comunidades afetadas pelos fogos de 2017, em Portugal.

Crianças, Jovens e as Lacunas da Educação para o Risco

Em Portugal, a educação para o risco encontra-se formalmente integrada na componente de Cidadania e Desenvolvimento do currículo nacional, na sequência do referencial de educação para o risco, lançado em 2015. Este enquadramento procura promover a consciência em torno da proteção civil, da preparação e dos comportamentos de autoproteção entre os alunos. A nível local, as escolas e os municípios colaboram frequentemente com corporações de bombeiros voluntários, forças de segurança e a Cruz Vermelha Portuguesa na organização de simulacros e campanhas de sensibilização.

Todavia, estas iniciativas são intermitentes e distribuídas de forma desigual. Tendem a reproduzir um modelo tradicional e vertical de comunicação do risco — centrado na transmissão de informação sobre perigos, em vez de fomentar a reflexão sobre vulnerabilidade, cuidado e preparação comunitária. Como revelaram várias investigações, as crianças e os jovens raramente são considerados participantes ativos naredução do risco de catástrofe. As suas perspetivas, receios e saberes informais permanecem em grande medida invisíveis nas narrativas institucionais de resiliência.

As corporações de bombeiros voluntários proporcionam uma forma paralela de educação cívica. Através das escolas de infantes e cadetes, crianças entre os 6 e os 16 anos aprendem noções de primeiros socorros, técnicas básicas de combate a incêndios e princípios de serviço cívico. Estes programas envolvem centenas de jovens em todo o país e oferecem espaços de pertença, responsabilidade e envolvimento público.

Para compreender o significado da educação para o desastre para além dos enquadramentos políticos e institucionais, procurei escutar as crianças que viveram os incêndios de 2017, através do contacto com uma destas escolas de infantes e cadetes. Os seus testemunhos revelam que, para muitos, o fogo não foi uma ameaça abstrata, mas sim uma experiência vivida e sensorial — marcada pelo medo, pela confusão e por formas improvisadas de agência.

Figura 1. Trabalho de campo, 1 fevereiro 2020, ação de reflorestação. Foto: Autora,.

A Rita, de 13 anos, recordou como ela e a avó molharam a terra em redor da casa para manter as chamas afastadas, observando as cinzas a caírem sobre as ovelhas do vizinho. A Joana, então com 14 anos, descreveu como a sua família combateu o avanço do fogo com baldes de água, depois de as mangueiras terem ardido. Estas não são histórias de vítimas passivas, mas de crianças e jovens que enfrentaram o perigo com a coragem de quem luta pela vida.

Para outras, o período pós-incêndio foi igualmente marcante. Um cadete dos bombeiros voluntários relatou como um colega deixou de frequentar os treinos durante meses, assombrado pelo medo de perder o tio bombeiro. A corporação local acabou por solicitar o apoio de uma psicóloga para acompanhar crianças e pais – um reconhecimento raro de que a recuperação é tanto emocional como material.

Através destes relatos, o fogo emerge como um acontecimento intensamente social e intergeracional. Reconfigurou rotinas familiares, esbateu fronteiras entre brincadeira e responsabilidade e gerou formas de conhecimento experiencial raramente reconhecidas pelos sistemas formais de ensino.

As Escolas e o Trabalho Lento da Recuperação

A educação formal e não formal desempenha um papel central na restauração de um sentido de normalidade após os desastres. Os professores e animadores juvenis com quem falei descreveram o trabalho delicado de “juntar toda a gente”, protegendo os mais novos enquanto se criavam espaços para que os mais velhos pudessem partilhar memórias e formular perguntas. Algumas escolas organizaram atividades de reflorestação ou limpezas coletivas — gestos simbólicos que procuravam religar os alunos à paisagem e entre si.

No entanto, as próprias crianças tendem a perceber poucas mudanças. Como afirmou o Luís, de 14 anos: “Houve algumas iniciativas, mas depois acabou… as pessoas esqueceram o que aconteceu.” As suas palavras ecoam um cansaço mais amplo observado nas comunidades pós-incêndio — uma sensação de que, apesar das comemorações e reformas políticas, pouco se alterou na forma como o risco é vivido e partilhado.

O Eduardo, de 12 anos, foi ainda mais direto: “As pessoas são muito… só pensam nas coisas depois de elas acontecerem. Não sabem preparar-se. Porque quando uma coisa acontece dizem sempre «podíamos», não dizem «vamos fazer»… Não sabem lidar com o que pode acontecer, porque é sempre uma possibilidade”. A sua crítica remete para uma condição coletiva designada por “desastre lento” (slow disasters): a normalização quotidiana da negligência, da desigualdade e do desinvestimento que torna certos lugares perpetuamente vulneráveis.

Desastres Lentos e as Políticas do Cuidado

O conceito de desastre lento, inspirado na ideia de “violência lenta” de Rob Nixon, desafia a noção de desastre como acontecimento súbito e excecional. Em vez disso, chama a atenção para os processos crónicos de abandono, marginalização e degradação ambiental que se desenrolam silenciosamente ao longo do tempo.

Aplicar esta lente a Portugal, um país propenso a incêndios rurais, permite revelar as continuidades ocultas entre o “antes”, o “durante” e o “depois” do desastre. Os fogos de 2017 não foram apenas eventos meteorológicos — foram também o culminar de décadas de despovoamento rural, fragmentação fundiária, insuficiente governação florestal e uma cultura de gestão reativa da emergência. Trata-se de questões estruturais que não podem ser resolvidas por campanhas anuais ou reformas técnicas isoladas.

Vistos como um desastre lento, os incêndios rurais exigem umapolítica do cuidado: uma política que valorize o conhecimento situado, a interdependência e a reprodução social da resiliência entre gerações. Implica repensar como escolas, famílias e comunidades cultivam (ou falham em cultivar) as capacidades necessárias para viver com o fogo — não como uma crise pontual, mas como parte de uma realidade ecológica e social em transformação.

Repensar o Risco e a Responsabilidade

Em Portugal, como noutros contextos, o discurso da proteção civil centra-se frequentemente na segurança: proteger os cidadãos, salvaguardar bens, garantir a ordem. Todavia, como referi anteriormente, segurança e cuidado não são opostos, mas dimensões profundamente interligadas. A etimologia de “segurança”, derivada de securitas, remete para estar “livre de cuidado”. Talvez isto ajude a explicar porque as instituições tendem a procurar controlar ou neutralizar o risco, em vez de se envolverem com as vulnerabilidades que ele expõe.

Uma abordagem baseada no cuidado implicaria, pelo contrário, abrandara governação do desastre. Significaria deslocar o foco do momento espetacular do incêndio para o trabalho quotidiano e relacional da prevenção, da educação e da memória. No contexto escolar, isto poderia traduzir-se em tratar o fogo não como tema de uma única aula de geografia ou de um exercício de simulação, mas como uma lente para a aprendizagem interdisciplinar, articulando ecologia, cidadania, história e ética. Implicaria também reconhecer as crianças não apenas como destinatárias de proteção, mas como agentes ativos de conhecimento, capazes de interpretar, comunicar e transformar os seus ambientes.

Conclusão: Aprender a Viver com os Fogos

Os incêndios de 2017 obrigaram Portugal a repensar a forma como compreende e gere o fogo, tendo melhorado bastante o seu conhecimento e resposta aos mesmos. Contudo, ainda este verão, voltámos a ser assolados por violentos incêndios que duraram mais de três semanas. Isto demonstra que uma transformação significativa exige mais do que reforma institucional: requer reimaginar o próprio desastre.

Se encararmos o fogo como um desastre lento, veremos não apenas as chamas, mas as histórias: de transformação do uso do solo, de marginalização económica, de lacunas educativas e da resistência silenciosa de quem permanece. Veremos também oportunidades para outras formas de cuidado – cuidado que escuta as experiências das crianças, que valoriza a participação comunitária e que inscreve a preparação no quotidiano, e não apenas em momentos excecionais.

Em última análise, abrandar o desastre não é um gesto de resignação, mas de atenção. É reconhecer as vulnerabilidades entrelaçadas que definem o nosso futuro comum. Nesse sentido, a educação sobre incêndios rurais em Portugal não é apenas um desafio técnico ou pedagógico: é uma tarefa ética e política. Convida-nos a imaginar o que significa viver e aprender, depois do fogo.

Ana Sofia Ribeiro é investigadora auxiliar do ICS ULisboa. É investigadora em educação e sociologia, atualmente financiada pelo programa Estímulo ao Emprego Científico da Fundação para Ciência e Tecnologia. Os seus interesses prendem-se com as catástrofes, juventude, metodologias artísticas e territórios de baixa densidade.

Mudanças Climáticas, secas e segurança hídrica no município de Campina Grande, Região Semiárida da Paraíba, Brasil

Por: Rafael Albuquerque Xavier

De acordo com o 6° Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, 2023), entre 3,3 e 3,6 bilhões de pessoas vivem em vulnerabilidade face às mudanças climáticas. O aumento de eventos meteorológicos e climáticos extremos tem exposto milhões de pessoas à insegurança alimentar aguda e reduzido a segurança hídrica. Dentre esses fenômenos climáticos, as secas têm se tornado cada vez mais severas e frequentes, comprometendo a segurança hídrica em diversas regiões do mundo, principalmente das zonas áridas e semiáridas.

Dentro desse contexto, está sendo desenvolvido uma pesquisa sobre os impactos das mudanças climáticas na segurança hídrica no município de Campina Grande na Paraíba, região semiárida do Brasil. Esse estudo faz parte do meu pós-doutorado junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), sob supervisão de Luísa Schmidt e Carla Gomes, e está inserido dentro do projeto global “Desafios escalares da governança da água em territórios hidrossociais no Brasil em contexto de mudanças climáticas: um estudo comparado com México, Portugal e Inglaterra”, coordenado pelo Prof. José Irivaldo Alves Oliveira Silva. Como parte integrante das ações desse projeto, encontra-se também no ICS-ULisboa realizando seu estágio de doutorado sandwich a doutoranda Maria de Lourdes Saturnino Gomes, da Universidade Federal de Campina Grande, com o projeto “Governança da água nas dimensões político-institucionais em territórios hidrossociais no Cariri Paraiba”.

Como objetivo principal o estudo busca analisar os impactos das mudanças climáticas sobre a segurança hídrica do principal reservatório que abastece Campina Grande e região. Dessa forma, estão sendo elaborados cenários futuros dos impactos das mudanças climáticas sobre a bacia hidrográfica de contribuição do açude Epitácio Pessoa e, assim, discutir a sua segurança hídrica para as próximas décadas. A pesquisa utiliza bases de dados globais e modelos preditivos para as mudanças climáticas neste século, além de dados históricos dos volumes do reservatório, do crescimento econômico e populacional.

O município de Campina Grande está localizado na região semiárida do Brasil, especificamente no Estado da Paraíba, e possui cerca de 420 mil habitantes. Ao longo de sua história, o município sempre teve o abastecimento de água como um entrave ao seu crescimento e, nesse sentido, a construção de diversos açudes (albufeiras) foi necessária para acompanhar o seu desenvolvimento.

Durante os séculos XIX e XX, Campina Grande foi abastecida por diversos reservatórios que sempre colapsaram à medida que o município se desenvolvia. A figura 1 mostra a cidade de Campina Grande e três desses reservatórios que foram construídos e abandonados por não atenderem a demanda hídrica crescente. Atualmente esses reservatórios foram incorporados na cidade como áreas de lazer e cumprem função paisagística.

Figura 1. Parte da cidade de Campina Grande com destaque para os açudes Velho, Novo (foi aterrado) e Bodocongó. Foto: Gabriel de Paiva Cavalcante, acervo Geografia da Paraíba, 2024.

A situação hídrica só teve maior estabilidade com a inauguração do Açude Epitácio Pessoa em 1957 e da adutora construída para levar água para Campina Grande em 1958. Assim, o Açude Epitácio Pessoa, ou Açude Boqueirão, com capacidade inicial de 536 hm3, abastece Campina Grande e mais 22 municípios da Paraíba.

Desde então, acreditou-se que o problema da insegurança hídrica estava resolvido. Recentemente, o reservatório enfrentou a pior seca da sua história, entre os anos de 2012 e 2017, levando Campina Grande e região a um longo racionamento de água que durou de dezembro de 2014 até agosto de 2017.

Em abril de 2017, o açude Epitácio Pessoa atingiu o pior nível volumétrico da sua história, com apenas 2,9% da sua capacidade total (Figura 2). Essa situação dramática foi gradativamente sendo superada com o início da chegada das águas da transposição do Rio São Francisco. Aceleraram as obras do eixo-leste para que as águas chegassem mais rápido ao Rio Paraíba, e deste até o açude.

Figura 2. Imagens de Satélite do Açude Epitácio Pessoa. Fonte: Google Earth.

Essa seca mostrou o quanto a insegurança hídrica continua a estar presente em Campina Grande. Em tempos de mudanças climáticas, acende o alerta sobre as previsões de aumento de temperatura, diminuição dos totais de precipitação, aumento da concentração das chuvas e principalmente e o agravamento do balanço hídrico negativo para as próximas décadas. Por outro lado, destaca-se a crescente demanda hídrica na região. Campina Grande teve um aumento populacional de 115%, nos últimos 50 anos, e de 107% no seu PIB, nos últimos 10 anos, revelando novos padrões de produção e consumo.

Diante desse cenário, qual o nível de segurança hídrica do açude Epitácio Pessoa para o decorrer deste século? Soma-se a este contexto sensível, os projetos de expansão da infraestrutura hídrica previstos pelo Governo do Estado, que visam aumentar a captação e distribuição de água a partir do açude Epitácio Pessoa.

Todos esses reservatórios, incluindo o rio São Francisco, dependem de água das chuvas para a recarga dos mananciais. As previsões são de cenários desfavoráveis para a segurança hídrica no semiárido brasileiro. Ao que tudo indica, o açude Epitácio Pessoa sofrerá cada vez mais com as secas e dependerá muito mais das águas da transposição para sua manutenção hídrica.

Assim, esse estudo contribuirá com a análise da segurança hídrica de Campina Grande e região a partir da discussão sobre a vida-útil deste reservatório face às previsões das mudanças climáticas para este século. Por fim, serão propostas alternativas de mitigação das crises hídricas e adaptação aos novos cenários climáticos.

Rafael Albuquerque Xavier é investigador visitante no ICS ULisboa. Graduado em Geografia, mestre em Geografia e doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor Associado do Departamento de Geografia da Universidade Estadual da Paraíba, é Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UEPB e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPB. Coordena o grupo de pesquisas sobre Geomorfologia e Hidroecologia de Ambientes Tropicais (GEGHAT).

Ecologias do Trabalho da Pesca: uma etnografia com Pescadores de Setúbal e Sesimbra

Por: Joana Sá Couto

Perante as crises ecológica, económica, política e social em que nos encontramos, as dinâmicas da pesca têm vindo a ser alteradas de várias formas, aumentando a sua invisibilização e marginalização, refletindo e reproduzindo tensões históricas e produzindo novos desafios.

É neste contexto que foi mobilizado o conceito de trabalho enquanto mediador da relação humano/natureza, para esclarecer como os pescadores de Setúbal e Sesimbra manifestam o conhecimento local da natureza no seu dia-a-dia; e como este se alterou ao longo do tempo no quotidiano e como os pescadores interpretam as políticas de conservação da natureza impostas que influenciam a sua atividade.

Ilustração 1 Mapa com as localizações dos terrenos etnográficos – Sesimbra e Setúbal – e a área do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Fonte: Mapa pela autora, a partir do Google Earth.

Para responder a esta interrogação, optou-se pela etnografia, em Setúbal e Sesimbra, não só pela proximidade histórica entre as duas zonas, mas pela importância do caso do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Apesar desta proximidade, estes contextos apresentam importantes diferenças: Sesimbra, uma vila nos recortes da Arrábida de difícil acesso, é desde 2018 o maior porto de pesca do país em volume de pescado transacionado, é também um espaço urbano limitado e cobiçado por diferentes áreas económicas. Já Setúbal é uma cidade perto da capital, em rápido processo de gentrificação, com uma comunidade piscatória em reconhecido declínio e uma lota em rápida transformação, de que é exemplo a criação de um terminal de cruzeiros na doca dos pescadores.

Ilustração 2 A autora numa traineira, em processo de trabalho de campo após uma noite atribulada no mar. Fonte: a autora

Através da etnografia foi possível encontrar nos dois lugares um sistema cumulativo de contrariedades e resistências a diversos níveis.

Ilustração 3 Sistema de Contrariedades e Resistências encontradas nos pescadores de Setúbal e Sesimbra. Fonte: a autora

No que toca às questões do rendimento, este é o que mais se associa à incerteza inerente da pesca, uma vez que este depende se se vai ao mar, do que se pesca, quanto se pesca, e do que é vendido. O preço do pescado é determinado pelas regras de mercado num leilão decrescente que historicamente tem vindo a beneficiar o intermediário e não o produtor. Para contrariar esta incerteza, os pescadores criaram uma norma social para assegurar o pagamento de todos os trabalhadores de forma equitativa, o sistema de partes, assim como a distribuição do quinhão ao final do dia de pesca. Este sistema de partes apesar de apresentar alguns benefícios como o estímulo da produtividade e promoção da cooperação também reproduz uma hierarquia dentro do barco, colocando os armadores em vantagem, principalmente visto que são eles que tomam as decisões de como se reparte o que receberam.

Outra contrariedade são os trâmites processuais, que se referem não apenas às críticas sobre a pesada burocracia e fiscalização, mas à própria lentidão e pouca eficiência dos procedimentos necessários para ter um barco, por exemplo.

No que toca às políticas e mercados, perante o contexto de crescimento da economia azul, tem vindo a ser dada mais atenção a áreas económicas com maior potencial de crescimento, como o turismo e cruzeiros, o setor portuário, a aquacultura e as energias renováveis. Mesmo no setor da pesca, existe uma tendência geral para privilegiar a pesca industrial e a aquicultura em detrimento da pequena pesca.

Paralelamente, os pescadores são afastados dos processos de decisão no que toca à gestão da sua atividade e da gestão do espaço onde a praticam. Também a Política Comum das Pescas, que sentem ser uma imposição, é muito criticada por não corresponder às realidades locais.

Outro conceito que se mostrou central é o de ocean grabbing ou blue grabbing, que se refere à expropriação da pesca em nome da conservação, gestão ou desenvolvimento. Tem origem em formas de gestão e governança inapropriadas que comprometem as condições socioecológicas, podendo ocorrer devido a interesses públicos ou privados resultando numa maior marginalização das comunidades costeiras.

Através da expansão capitalista, foram os sucessivos processos de mercadorização que alteraram a pesca. Desde a mercadorização do peixe, que transforma uma atividade de subsistência numa atividade comercial, à própria mercadorização da força de trabalho humana. Um exemplo disso mesmo é a introdução da força de trabalho migrante na pesca como forma de colmatar a falta de mão-de-obra.

É o caso destes migrantes que são contratados de países africanos ou do sudeste asiático e que se encontram a viver em situações precárias no porto de abrigo de Sesimbra, mas também em condições de trabalho precárias, visto que a sua cédula marítima não é reconhecida e se encontram em vários dos barcos como observadores. Estes pescadores são bastante distintos daqueles pescadores pitorescos utilizados pelos municípios como símbolo da identidade e como atração turística, ainda que desfasada das realidades presentes.

Ilustração 4 Imagem do Porto de Abrigo de Sesimbra, 2023. Fonte: a autora.

Estes exemplos de contrariedades, aumentam o contexto de crise e desvalorização em que as comunidades piscatórias se encontram, o que nos denuncia como estes processos de mercadorização alteram a valorização do trabalho, e se sentem nas relações sociais e ecológicas presentes.

Ainda assim, os pescadores resistem. Estas resistências apresentam-se de diferentes formas, ainda que os pescadores possam não ver a sua resistência como tal. Porém, é através destas que os pescadores persistem e continuam a trabalhar no mar, mesmo apesar da sombra de declínio, apesar de alguns deles acharem mesmo que a pesca vai acabar, mesmo apesar de todas as contrariedades.

O mercado torna-se independente da relação metabólica entre humanos e natureza, dominando-a, impondo um novo sistema em que a natureza se torna uma mercadoria barata que se vende para acumulação de capital. Uma relação outrora de equilíbrio e troca, hoje pode caracteriza-se por uma degradação sem precedentes.

Argumento, assim, que a relação das comunidades piscatórias com a natureza está perante um tipping point, em risco de uma rutura metabólica.

A dissociação do humano e da natureza no raciocínio hegemónico e eurocêntrico, usada para justificar a dominação através de classe, raça, género e espécie, também permitiu uma desvalorização histórica do trabalho que seja manual, sujo, difícil, como a pesca, mas que é mediador indispensável da nossa relação com o ambiente.

Ao equacionarmos questões de justiça e direitos humanos na nossa análise, ao identificarmos as relações de poder, quem tem vindo a ser silenciado e quem tem vindo a ser priorizado nos discursos da economia azul, torna-se imperativo reavaliar as formas de governança destes recursos ancestralmente comuns, assim como formas de implementação de um novo paradigma económico e de gestão.

Até lá, os pescadores de Setúbal e Sesimbra continuam a resistir e a pescar, a partilhar conhecimento com quem os quer ouvir, no seu silêncio e humor, uma vez que, como me disse um pescador, “Enquanto houver pescadores, há peixe”.

Joana Sá Couto é antropóloga, doutorada pelo ICS em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, com a tese Ecologias do Trabalho da Pesca: uma etnografia com Pescadores de Setúbal e Sesimbra, defendida em julho de 2025. Está neste momento a trabalhar no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). j_sacouto@disroot.org

Democracia para o Clima? O papel (ainda limitado) das Inovações Democráticas na Sustentabilidade Ambiental

Por: José Duarte Ribeiro, Roberto Falanga e João Moniz

A crise climática colocou em xeque a eficácia das instituições democráticas tal como as conhecemos. A incapacidade para responder de forma célere e justa a desafios ecológicos complexos tem alimentado o apelo por novas formas de governança que combinem democracia e sustentabilidade. Neste contexto, as chamadas inovações democráticas (IDs) – como orçamentos participativos, mini-públicos e modelos colaborativos e participativos de governança – têm sido promovidas como instituições e processos promissores para reimaginar o papel dos cidadãos na formulação de políticas públicas ambientais.

Mas será que estas experiências têm realmente contribuído para uma transição ecológica justa e eficaz?

Essa foi a pergunta central de um artigo científico publicado recentemente por nós, na revista Sustainable Development, no âmbito do projeto europeu INCITE-DEM. Através de uma revisão sistemática da literatura focada no contexto europeu, os autores mapearam a relação entre diferentes tipos de IDs e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), procurando compreender o seu real impacto nas políticas e práticas de sustentabilidade ambiental.

De promessas a resultados: o que diz a literatura?

A análise sistemática identificou 129 estudos focados em experiências europeias de participação cidadã com relevância para a sustentabilidade ambiental. Os resultados confirmam que, embora as IDs não sejam uma panaceia, podem desempenhar um papel significativo na aproximação entre cidadania ativa e governança ambiental.

Muitos dos estudos demonstram que as IDs contribuem para a sensibilização dos cidadãos, para o fortalecimento do capital social e para a formulação de políticas públicas mais alinhadas com as preocupações ecológicas locais. O envolvimento dos cidadãos em decisões sobre recursos hídricos (ODS 6), energia limpa (ODS 7), consumo sustentável (ODS 12) e ação climática (ODS 13) tem permitido integrar saberes locais e promover soluções contextualizadas. Contudo, a literatura revela também limites importantes: muitas destas iniciativas são episódicas, dependentes de vontades políticas locais, e raramente produzem mudanças estruturais. O impacto real sobre as decisões políticas e os processos institucionais tende a ser frágil, especialmente quando não existem mecanismos de acompanhamento, de responsabilização ou de integração dos resultados na administração pública.

Mini-públicos, orçamentos participativos e governança colaborativa: diferentes caminhos, desafios semelhantes

As três principais formas de inovação democrática analisadas – mini-públicos (como assembleias de cidadãos), orçamentos participativos (OP) e modelos de governança participativa e colaborativa – oferecem diferentes respostas ao desafio de envolver os cidadãos na governação ecológica.

Os mini-públicos têm ganho protagonismo, especialmente na forma de assembleias climáticas nacionais ou municipais. Estas iniciativas, como se viu na Irlanda, França ou Reino Unido, procuram informar e deliberar sobre temas complexos com cidadãos selecionados aleatoriamente. No entanto, enfrentam dois desafios críticos: a falta de poder vinculativo e a ausência de mecanismos para garantir que as suas recomendações sejam incorporadas em políticas concretas. O estudo aponta que o entusiasmo inicial destas assembleias pode ser minado pela perceção de que “nada muda”, o que compromete a confiança pública a longo prazo.

Já os OPs demonstraram versatilidade na incorporação de preocupações ambientais, indo além da sua origem voltada para a justiça social. Em várias cidades europeias, o OP tem sido usado para financiar projetos de agricultura urbana, eficiência energética, mobilidade sustentável ou regeneração de espaços verdes. Ainda assim, subsiste a crítica de que muitas vezes estas escolhas estão limitadas a envelopes orçamentais reduzidos e a ciclos curtos, o que dificulta a sua capacidade para enfrentar os desafios estruturais das transições ecológicas.

No caso da governança participativa e colaborativa, a literatura destaca o seu potencial para envolver múltiplos atores – como comunidades locais, autoridades públicas, investigadores e ONGs – em processos de gestão de recursos naturais, planeamento territorial ou conservação da biodiversidade. No entanto, a complexidade dos arranjos institucionais e as barreiras de confiança entre atores frequentemente impedem a sua eficácia. A falta de clareza sobre competências e responsabilidades, associada à fragmentação das políticas ambientais, continua a dificultar a adoção de soluções sustentáveis integradas.

Entre o ideal participativo e os limites institucionais

Um dos objetivos do estudo é evidenciar que o potencial transformador das IDs depende menos do seu desenho formal e mais das condições institucionais em que são implementadas. Sem enquadramento político, apoio institucional e mecanismos que garantam continuidade, estas iniciativas correm o risco de se tornarem exercícios simbólicos, com pouco efeito prático.

Este diagnóstico é particularmente relevante quando se pensa na urgência e complexidade da crise climática. A literatura analisada pelos autores mostra que a maior parte das IDs continua a operar numa lógica de incrementalismo – promovendo ajustes em vez de rupturas – e raramente desafia os interesses estabelecidos ou os paradigmas dominantes de crescimento económico. Como sublinham os próprios autores, o ideal democrático de co-criação de políticas públicas enfrenta limites reais num sistema ainda marcado por desigualdades, resistências burocráticas e prioridades políticas de curto prazo.

O estudo conclui com um apelo a um duplo aprofundamento: da democracia e da sustentabilidade. Isso significa não apenas multiplicar espaços participativos, mas sobretudo garantir que esses espaços tenham impacto efetivo. Implica também alinhar os mecanismos participativos com objetivos de longo prazo e com compromissos ecológicos claros.

Mais do que uma agenda de inovação institucional, trata-se de uma reconfiguração das prioridades do próprio sistema político. A governança sustentável exige uma democracia que não se limite a escutar os cidadãos, mas que os envolva desde o diagnóstico até à implementação e monitorização das soluções. E isso só será possível com estruturas que transcendam a lógica eleitoral imediatista e permitam decisões informadas, equitativas e com visão de futuro.

Em última instância, este artigo oferece uma mensagem clara: não há sustentabilidade sem democracia, mas também não há democracia ecológica possível sem transformação institucional. As IDs são apenas tão eficazes quanto as instituições que as acolhem permitem que sejam. E por isso, o desafio é político, e não apenas metodológico.

Figura 1 – Ilustração utilizada na campanha “El Saler per al poble”

El saler al poble, [detalhes de um poster]1974, Asociación Española de Ordenación del Medio Ambiente

Este é um dos casos históricos de participação cidadã recolhidos na pesquisa de arquivo do projecto INCITE-DEM. É um exemplo, entre vários, de conflitos ambientais no período pós-ditadura franquista em Espanha: El Saler, Valência (1973 – 1986). Durante o verão de 1974, foi lançada uma campanha cidadã sob o lema “El Saler per al poble”, através de uma recolha de assinaturas, que levou a Câmara Municipal de Valência a recuar e, em dezembro desse ano, a aprovar uma remodelação do Plano de Ordenamento que iria afectar o bosque, junto ao mar, da Devesa de El Saler. Esta decisão implicou o cancelamento de 23 torres de apartamentos, a recuperação de 70 hectares da zona arenosa e a transferência da parte edificável para outra zona.

José Duarte Ribeiro concluiu recentemente o seu doutoramento em Sociologia na Middle East Technical University (METU), em Ancara, Turquia. Conta com investigação em Portugal e na Turquia na área da sociologia rural e movimentos sociais. É investigador de pós-doutoramento no ICS no projecto europeu INCITE-Dem. É também membro da equipa editorial deste blogue.

Roberto Falanga é Investigador auxiliar no ICS, trabalha sobre processos participativos e deliberativos nas políticas públicas. É coordenador no ICS dos projetos europeus Incite-Dem, Infrablue e INSPIRE.

João Moniz concluiu recentemente o seu doutoramento em ciência política pela Universidade de Aveiro e o seu percurso profissional conta com várias participações em projetos de investigação, tanto a nível nacional como internacional. É investigador de pós-doutoramento no ICS no projecto europeu Incite-Dem.

O Fim das Centrais a Carvão em Portugal: o bom, o mau e o que há a aprender

Por: Ricardo Moreira

O conceito de Transição Justa é considerado um princípio fundamental nas transformações para uma economia de baixo carbono. A ideia, que surgiu nos movimentos sindicais americanos nos anos 70 do século passado, busca garantir que trabalhadores e comunidades  não sejam deixados para trás à medida que indústrias com elevadas emissões de carbono passam pelo processo de phase-out. No entanto, como constatei no caso das centrais a carvão em Portugal, a realidade é muito mais complexa. O encerramento das centrais termoelétricas de Sines e Pego, em 2021, representou um momento significativo na transição energética do país, mas será que houve justiça nessas transições? Com base em entrevistas de campo e na análise de documentos oficiais, investiguei as implicações sociais, económicas e políticas dos encerramentos das termoelétricas para evidenciar os desafios de política pública e os problemas que os trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram e enfrentam.

Portugal tentou descarbonizar rápido o que era mais simples

Em alinhamento com o Pacto Ecológico Europeu e o Acordo de Paris, o país definiu o fim do carvão na sua matriz energética, anunciando o encerramento da central de Sines até 2023 e da central do Pego até 2021. No entanto, este calendário foi adiantado e no meio da crise da Covid-19 ambas as centrais encerraram. As decisões de encerramento foram diferentes, mas resultaram na maior redução de emissões de gases com efeito de estufa da história de Portugal, servindo para demonstrar o compromisso do país com os objetivos climáticos. Mas, enquanto os decisores políticos e ambientalistas celebravam este marco, centenas de trabalhadores e as suas comunidades enfrentaram um futuro incerto.  

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Figura 1: Central termoelétrica a carvão de Sines, encerrada em 2021, Foto do autor

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Figura 2: Central termoelétrica a carvão do Pego, encerrada em 2021, Foto do autor

Quem decidiu e quem foi afetado

Uma Transição Justa é, acima de tudo, uma questão de governação—como as decisões são tomadas, quem é incluído e como os custos e benefícios são distribuídos. No caso de Sines e Pego, os encerramentos foram marcados por uma abordagem de cima para baixo, com diferentes atores “em cima” e a mesma classe de pessoas “em baixo”. Sines terá fechado porque a empresa de energia decidiu encerrar muito antes do previsto devido ao custo dos impostos verdes que o governo passou a implementar. Já a Central do Pego encerrou porque o governo não renovou a licença de produção de energia. Seja como for, as decisões-chave do governo foram tomadas sem consulta aos trabalhadores, sindicatos ou mesmo municípios. 

Para os responsáveis governamentais e os decisores europeus, o encerramento das centrais a carvão era um passo necessário na transição energética de Portugal. As autoridades enquadraram a mudança como uma transformação económica, uma “oportunidade”, em que as indústrias devem adaptar-se, os trabalhadores devem requalificar-se e as regiões devem reinventar-se. O Mecanismo de Transição Justa Europeu teria 60 milhões de euros para apoiar as regiões afetadas em Portugal, mas os atrasos no acesso a estes fundos deixaram muitos trabalhadores e comunidades sem apoio imediato. O discurso oficial enfatizava o otimismo em relação à liderança de Portugal na descarbonização, mas pouco reconhecia os impactos socioeconómicos imediatos: “ninguém fica para trás” – dizia o governo.

Presidentes de câmara e líderes sindicais têm outra versão. Embora reconheçam a necessidade de políticas de ação climática, criticaram a forma abrupta como os encerramentos ocorreram e a falta de um plano estruturado de transição. As economias locais que dependiam direta ou indiretamente das receitas do carvão sofreram um declínio acentuado. Em Abrantes, a central do Pego era o maior empregador e o seu encerramento criou o que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”—um período de estagnação económica sem alternativas de emprego imediatas.  

Os líderes sindicais entrevistados sublinharam que os trabalhadores mais vulneráveis, especialmente os precários subcontratados, foram os mais prejudicados pela transição. Muitos destes precários foram dispensados sem apoio, apesar do seu papel essencial nas operações das centrais. Na central de Sines os trabalhadores diretos foram realocados para outras funções ou para a reforma. No entanto, os subcontratados não tiveram as mesmas garantias, o que gerou um sentimento generalizado de desilusão com o processo.

As empresas energéticas posicionaram-se como facilitadoras da transição. Salientaram a importância das condições de mercado e da agenda europeia de descarbonização na definição das suas decisões. Embora em Sines a empresa tenha promovido programas de requalificação e recolocação para os seus trabalhadores, essas iniciativas não abrangeram todas as pessoas. No Pego, uma nova empresa de energias renováveis assumiu o ponto de injeção na rede elétrica, comprometendo-se a contratar antigos trabalhadores da central a carvão—mas, até ao momento, apenas uma pequena parte foi reempregada, refletindo os atrasos mais amplos nos projetos de investimento.  

O “Vale da Morte” da Transição

Um dos aspetos mais marcantes da eliminação do carvão em Portugal é o surgimento do que uma entrevistada chamou o “Vale da Morte”. Este termo refere-se ao período entre o encerramento das centrais e a materialização dos novos empregos verdes. O Mecanismo de Transição Justa foi concebido para colmatar esta lacuna, mas a sua implementação foi lenta e desigual. Muitos trabalhadores, a quem foram prometidos programas de requalificação, encontraram-se num limbo, à espera de investimentos que ainda não se concretizaram.  

Em Sines, o governo confiou em investimentos privados projetados—particularmente em hidrogénio verde e centros de dados—para absorver os trabalhadores deslocados. No entanto, estes projetos ainda estão em fase embrionária, deixando muitos trabalhadores subcontratados no desemprego. No Pego, face ao atraso dos apoios europeus, o governo criou um apoio ad hoc para garantir os salários para trabalhadores em formação.

Que lições do fim do carvão?

O caso português sublinha a necessidade de planeamento e governança das políticas de transição. Embora a ação climática seja essencial, a forma como as transições são geridas determina se exacerbam ou mitigam as desigualdades sociais. 

Sines e Pego fazem-nos reter três ideias:  

A governança da Transição Justa deve ser formalizada

A ausência de um quadro formal de governação excluiu trabalhadores, sindicatos, municípios e comunidades do processo de decisão. Seria importante criar um Comité de Transição Justa no âmbito do Conselho Económico e Social, para permitir um debate tripartido. Este comité deveria acompanhar os planos regionais de transição, garantindo que as comunidades afetadas tenham voz nas políticas climáticas.  

Só o planeamento evita o “Vale da Morte”

A lacuna entre o encerramento das centrais a carvão e a criação de novos empregos pode deixar muitos trabalhadores em situações precárias. As políticas climáticas devem incluir cronogramas para a requalificação, vias garantidas de emprego e acesso à proteção social. 

Os sistemas de Segurança Social têm de ter em conta a ação climática  

Os mecanismos existentes da Segurança Social não foram concebidos para acomodar mudanças industriais de grande escala, mas é lhes exigido que respondam a várias alterações no modo de trabalhar, desde a Inteligência Artificial à ação climática. Os trabalhadores enfrentaram perdas significativas de rendimento, com opções limitadas de apoio financeiro. No caso das políticas climáticas, é necessário equacionar a realocação de impostos verdes para o financiamento da segurança social, tornando-os resilientes e adequados para uma transição para uma economia de baixo carbono.

E então, foi justo?

À luz dos padrões estabelecidos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) para a Transição Justa, o fim do carvão em Portugal não cumpriu os princípios de uma transição justa. Embora se tenham alcançado os objetivos ambientais, a falta de diálogo social, as alternativas económicas tardias e a proteção insuficiente dos trabalhadores ilustram os desafios na implementação das políticas de ação climática.

À medida que Portugal prossegue o seu caminho para a neutralidade carbónica, o caso de Sines e Pego pode servir de alerta. Estes casos destacam a necessidade de abordagens políticas integradas que priorizem tanto a sustentabilidade ambiental como a equidade social. 

Ricardo Moreira é doutorando do Programa de Doutoramento em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. moreiraricardo@edu.ulisboa.pt

B-WaterSmart: contributos para uma maior resiliência hídrica na Europa

Por: Carla Gomes

Durante muito tempo considerado um problema dos países do Sul, as secas prolongadas  dos últimos anos já lançaram o alerta sobre o risco de escassez de água no resto da Europa. A eficiência hídrica tornou-se uma prioridade, levando ao lançamento de programas de financiamento comunitário para uma “gestão inteligente” da água, em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Neste âmbito, o Horizon 2020 lançou a call CE-SC5-04-2019 – Building a water-smart economy and society, em que foram aprovados os cinco projetos do consórcio CIRSEAU. O primeiro a ser concluído, em Agosto de 2024, foi o B-WaterSmart, uma Research and Innovation Action em que o ICS-ULisboa coordenou a área de Sociedade, Governança e Políticas.

O B-WaterSmart envolveu seis cidades e regiões da Europa, constituídas em “Living Labs” (“Laboratórios Vivos”): Alicante (Espanha), Bodø (Noruega), Flandres (Bélgica), Lisboa (Portugal), Veneza (Itália) e Frísia Oriental (Alemanha). O consórcio foi coordenado pelo IWW Water Centre da Alemanha e envolveu 35 entidades, entre elas instituições de investigação, municípios, entidades gestoras de água e parceiros tecnológicos.

O “Laboratório Vivo” de Lisboa, coordenado pela Câmara Municipal de Lisboa e pelo Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), acaba de ser distinguido nos PT Global Water Awards 2024, na categoria de Investigação, Desenvolvimento e Inovação. O galardão foi anunciado na 19.ª Expo Conferência da Água. No LL de Lisboa, o ICS assumiu o papel de moderador da Comunidade de Prática, plataforma de envolvimento de atores-chave, que terá continuidade através do novo Water-Oriented Living Lab (WoLL) de Lisboa.

O LL Lisboa desenvolveu um conjunto de soluções, incluindo ferramentas de apoio à decisão e à avaliação de risco da agua para reutilização, bem como certificados inovadores para edifícios (que incluem eficiência hídrica e energética) e um observatório para o ciclo urbano da água. O projeto contribuiu, assim, para uma economia circular da água e para a adaptação às alterações climáticas. O LL Lisboa contou ainda com a participação da Lisboa E-Nova, da ADENE (Agência para a Energia), das Águas do Tejo Atlântico e da Baseform. 

Crise hídrica requer “abordagem holística”

As alterações climáticas vêm perturbar o ciclo da água, tornando mais desafiante geri-lo ao longo do ano. Por um lado, as secas prolongadas e a redução da precipitação anual têm vindo a agravar o risco de escassez (figura 1). Mas, por outro lado, as cheias catastróficas que têm assolado vários países, como foi recentemente o caso de Valência, em Espanha, vêm alertar para a necessidade de gerir melhor as águas pluviais, criando sistemas de armazenamento que ajudem a prevenir as cheias e a ter água disponível durante o ano. As crescentes pressões sobre os recursos hídricos requerem uma abordagem integrada, que nos últimos anos se tem vindo a assumir sob o conceito de resiliência hídrica. Não está apenas em causa a segurança do abastecimento, como também a manutenção da qualidade da água disponível e a saúde dos ecossistemas. 

O uso de pesticidas, que o Pacto Ecológico previa cortar para metade até 2030, tem sido um grande foco de conflito, tendo contribuído para os protestos de agricultores em Março de 2024. No entanto, o problema da poluição da água causada por pesticidas é grave e as metas previstas na Diretiva Quadro da Água estão longe de estar alcançadas, nem em 2015, como inicialmente previsto, nem no prazo alargado de 2027. Apenas 37%  das águas superficiais da Europa têm um estado ecológico considerado ‘bom’ ou ‘elevado’, sublinha o relatório sobre o estado da água da Agência Europeia do Ambiente.

Perante sucessivos anos secos, o racionamento de água imposto em pleno inverno tornou-se uma realidade em vários países, incluindo Portugal, Espanha e Itália. No Algarve (Janeiro de 2024) rapidamente geraram protestos do setor agrícola, o mais penalizado pelos cortes. Prevê-se que o acesso à água potável esteja comprometido em 35% da área do continente europeu até 2070, pelo que urge garantir a proteção dos grupos sociais mais vulneráveis.

Figura 1 – De acordo com o Observatório Europeu da Seca, mais de 17% do território UE-27 + Reino Unido estava em nível de ‘aviso’ de seca em Dezembro de 2024. Fonte: https://drought.emergency.copernicus.eu/

Este sentido de urgência deu já origem a uma Iniciativa de Cidadania Europeia (ICE), apresentada em Setembro de 2024, que reclama um plano de ação estratégico e holístico para a água na UE. Uma Estratégia para a Resiliência Hídrica, bem como um novo Ato para Economia Circular, estão entre as prioridades da Comissão Europeia no mandato 2024-2029.

No último Eurobarómetro relativo às “Atitudes dos Europeus sobre o Ambiente” (2024), 78% dos inquiridos apoiam medidas adicionais para enfrentar os problemas de gestão de água na Europa. Quando questionados sobre o papel de cada setor socioeconómico na melhoria da eficiência hídrica, a indústria, o sector elétrico e o turismo são apontados como aqueles que têm feito um menor esforço nesse sentido (figura 2).

A chart of water consumption

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Figura 2 – Perguntas sobre água no Eurobarómetro “Atitudes dos Cidadãos Europeus em Relação ao Ambiente” (Maio 2024). Fonte: https://europa.eu/eurobarometer/surveys/detail/3173 (Creative Commons Attribution 4.0 International licence)

Nos inquéritos realizados pelo B-WaterSmart (figura 3), a disponibilidade de dados e a monitorização dos consumos revelou-se a principal prioridade para uma melhor governança da água, seguida da integração entre as políticas setoriais, em particular no nexus água-energia. O financiamento é outra preocupação central, tendo em conta que abordagens eficientes, tais como a reutilização, requerem investimentos avultados em infra-estruturas e sistemas de tratamento.

Figura 3 – Inquérito a stakeholders, B-WaterSmart (N = 60) – Q: Regarding water governance in your region, which of these areas you think need to be improved to ensure the adoption of water-smart solutions, if any?

As soluções desenvolvidas pelo B-WaterSmart, bem como as recomendações de política, pretendem contribuir para uma melhor resiliência hídrica, podendo ser replicadas em outras regiões com desafios semelhantes, na Europa e mais além. Os resultados do B-WaterSmart estão disponíveis nos relatórios publicados ao longo destes quatro anos,  incluindo a análise dos modelos de governança em cada país, com recomendações específicas para uma governança adaptativa, bem como uma análise das principais barreiras e fatores impulsionadores para a aceitação social das soluções de gestão inteligente, abrangendo aspetos económicos, sociais e políticos. 

Carla Gomes é investigadora nas áreas da justiça ambiental e adaptação climática. Colaborou com o ICS-ULisboa em diversos projetos interdisciplinares, mais recentemente no B-WaterSmart – Acelerando a gestão inteligente da água nas regiões costeiras da Europa (Horizon 2020, Grant Agreement N.º 869171), onde liderou o work package Society, Governance, Policy.

50 Anos de Abril: questões ambientais, sociais e territoriais

Por: Mónica Truninger

Este é o meu último post como coordenadora do GI SHIFT. Ao longo destes cinco anos, tive o privilégio de organizar as atividades do GI, contando, numa primeira fase, com a colaboração da Olivia Bina e do João Graça, e, numa segunda e última fase, do João Mourato e João Guerra. De forma a celebrar a atividade deste grupo enérgico, dinâmico e especialista em questões ambientais, sociais e territoriais, aproveito este momento  para realçar neste texto uma obra coletiva do SHIFT, que esteve em preparação ao longo de 2024 e que está prestes a chegar às livrarias. Trata-se da obra 50 Anos de Abril: Questões Ambientais, Sociais e Territoriais, da Imprensa de Ciências Sociais. Esta obra reúne um conjunto de capítulos escritos por vários investigadores do SHIFT, refletindo o trabalho desenvolvido pelo grupo enquadrado no contexto das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974. Este marco histórico marcou a transição para a democracia em Portugal e a libertação de um regime autoritário. A Revolução dos Cravos e, a seguir a Constituição de 1976, permitiu a emergência de um novo regime democrático baseado nos princípios de liberdade, igualdade e justiça, consagrando direitos fundamentais, incluindo o direito ao ambiente e à qualidade de vida. Desde então, o país tem vivido transformações profundas em diversas áreas, mas também tem enfrentado desafios significativos, em particular nas últimas décadas, nomeadamente em relação ao ambiente, sociedade e território. 

Passadas cinco décadas, considerámos pertinente fazer uma análise crítica e reflexiva das principais transformações resultantes da instauração e consolidação da democracia: quais as expectativas cumpridas, quais as mudanças realizadas, mas também quais as promessas que ficaram por cumprir e até os retrocessos que acabaram por ocorrer. O foco dessa análise recaiu sobre as temáticas do grupo de investigação SHIFT: Ambiente, Território e Sociedade, em particular sobre as dinâmicas subjacentes aos desafios socioecológicos e territoriais da sociedade portuguesa, enquadrada não só na escala europeia, mas também na escala global. Será que o espírito de Abril se cumpriu, consolidando a transição para uma sociedade mais justa, resiliente e sustentável? E, tomando a Constituição como mote, será que foram construídos territórios mais ‘justos’ e ambientes mais ‘livres’ de diversas formas de poluição? E que capital de participação cidadã foi sendo acumulado ao longo destes 50 anos? Qual tem sido o contributo das organizações formais e informais de cidadãos para a construção de um país mais coeso, participativo e ‘fraterno’, em matéria de ambiente e território?

Tendo como mote os valores e os princípios que o 25 de abril de 1974 trouxe, e que a Constituição de 1976 consagrou, os contributos dos membros do grupo de investigação SHIFT, incluindo investigadores integrados e doutorandos, foram enquadrados por dois eixos de análise. Por um lado, os textos apresentam uma breve contextualização e trajetória históricas da temática em apreço nos últimos 50 anos, salientando os principais marcos e pontos de viragem. Por outro lado, os autores questionam até que ponto esta trajetória foi cumprida ou descontinuada, afastando-se até do espírito de Abril e fragilizando, assim, a própria democracia. 

A cover of a book

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Figura 1 – Capa do livro 50 Anos de Abril – Questões ambientais, sociais e territoriais (ICS, no prelo). 

O livro está dividido em três partes: questões ambientais, questões sociais e questões territoriais, com capítulos interligados que refletem sobre as conquistas e os desafios dos últimos 50 anos. A primeira parte, dedicada às questões ambientais, inicia-se com o capítulo de João Guerra, Luísa Schmidt e David Travassos, intitulado “Áreas Protegidas – trajetórias da conservação da natureza em Portugal”. Os autores analisam os avanços e retrocessos na política de conservação, destacando a falta de recursos para gestão e fiscalização. No capítulo seguinte, “Energia solar descentralizada: 50 anos de políticas públicas”, Sofia Ribeiro analisa os desafios energéticos em Portugal, desde a eletrificação do território após a Revolução até à promoção das energias renováveis nas últimas décadas. Complementando essa análise, Vera Ferreira, em “A energia comunitária em construção – um caso de democracia em Portugal?”, explora o papel das comunidades de energia renovável como ferramentas de participação democrática e transição energética. Por fim, Joana Sá Couto, no capítulo “A tua política é o trabalho […] O teu único jogo deve ser a pesca: o trabalho na pesca desde o Estado Novo à emergência climática”, reflete sobre as crises do setor piscatório, conectando-as às escolhas políticas e ao impacto das mudanças climáticas.

A segunda parte do livro foca-se nas questões sociais. Ricardo Moreira, em “O Estado Social que a Constituição abriu e as sementes do Estado Ambiental que ainda esconde”, discute como a Revolução impulsionou o Estado Social em Portugal, destacando os avanços em direitos sociais e as limitações na integração de políticas ambientais. Simone Tulumello e Luisa Rossini, no capítulo “A paz, o pão, …, saúde educação: a habitação, a grande ausência do Estado social democrático”, analisam as políticas habitacionais desde 1974, enfatizando as tensões entre as promessas da Revolução e os problemas habitacionais que persistem atualmente. Ana Delicado e Jussara Rowland, em “50 anos de construção de uma democracia participativa em matérias ambientais”, exploram a evolução da participação cidadã em questões ambientais, desde mobilizações espontâneas até a institucionalização de audiências públicas e o papel das ONG de ambiente. Por sua vez, Roberto Falanga, José Ribeiro e João Moniz, no capítulo “Cidadania e participação nos últimos 50 anos em Portugal: a consolidação democrática entre urnas e ruas”, examinam práticas emergentes de diálogo entre cidadãos e instituições, como o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) e os orçamentos participativos.

Na terceira parte, dedicada às questões territoriais, João Mourato, Inês Gusman e André Pereira, em “50 anos de (in)definição regional: convergências e conflitos de governança territorial em Portugal”, analisam a complexidade da governança regional, destacando os paradoxos e conflitos na organização territorial após o 25 de Abril. Kaya Schwemmlein, no capítulo “Variadas crises do sistema agrícola alentejano”, reflete sobre a evolução dos sistemas agrícolas no Alentejo, abordando questões relacionadas com o uso da terra, posse e sustentabilidade. Encerrando o volume, Rosário Oliveira, em “Alimentar as cidades de modo sustentável e saudável é preciso: das hortas urbanas ao sistema alimentar metropolitano”, descreve a transformação das hortas urbanas espontâneas em sistemas alimentares metropolitanos, propondo estratégias para o planeamento alimentar que sejam simultaneamente sustentáveis e saudáveis.

Esta obra apresenta, assim, um cenário misto, composto por avanços e desafios. Se, por um lado, foram alcançados progressos significativos em setores como a educação, a saúde, a segurança social, o abastecimento de água e o saneamento, a legislação sobre ambiente e natureza, o desenvolvimento da rede viária, a democratização das instituições e o aumento da participação cívica; por outro lado, persistem muitas questões por resolver. Entre estas, destacam-se-se as desigualdades sociais e socioterritoriais, os avanços e recuos nos debates sobre a regionalização, o difícil acesso à habitação, a gestão ineficiente da conservação da natureza, as limitações na adoção das energias renováveis, a crise no setor das pescas e os efeitos nocivos da agricultura intensiva para o ambiente e para a saúde humana. Todos estes desafios representam obstáculos à implementação de transições justas, especialmente face aos impactos crescentes das alterações climáticas no nosso país. 

Numa época marcada pelas comemorações dos 50 anos da Revolução, o livro do GI SHIFT oferece, assim, uma reflexão crítica sobre os avanços e retrocessos das últimas cinco décadas, propondo caminhos para uma sociedade mais justa, sustentável e democrática, em consonância com os ideais do 25 de Abril. 

Figura 2,3,4: Desfile comemorativo dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 (Avenida da Liberdade, Lisboa, Portugal a 25 de Abril de 2024)Fonte: figuras 3 e 4 fotos de Luisa Rossini; figura 2 RitaFMatos (https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:25_de_Abril_de_2024_08.jpg).

Mónica Truninger é socióloga e coordenadora (em final de mandato) do SHIFT: Grupo de Investigação Ambiente, Território e Sociedade do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. monica.truninger@ics.ulisboa.pt

Envelhecimento em Portugal: desafios habitacionais em casas frias e sobredimensionadas

Por: Alda Botelho Azevedo

A população portuguesa nunca foi tão envelhecida. Segundo os Censos 2021 do Instituto Nacional de Estatística (INE), 23,4% da população tem 65 e mais anos. São 182 seniores por cada 100 jovens. Diferem entre si em muitas características, entre essas, nas condições habitacionais.  A diversidade de condições e desafios habitacionais marca a experiência de viver e envelhecer em Portugal. 

A maioria das pessoas com 65 e mais anos vive em casa própria (78%). Todavia, cerca de 22% reside em habitação arrendada, de acordo com os dados do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (ICOR) entre 2015 e 2019. Nos adultos entre os 18 e os 64 anos, essa proporção sobe para 26%. A prevalência do arrendamento também varia com o grau de urbanização, sendo mais comum em áreas densamente povoadas e intermédias, onde chega aos 30%.

Pode conjeturar-se que os mais velhos tiveram mais tempo e oportunidades para se tornarem proprietários, seja através de poupanças, heranças, ou do crédito bancário, amplamente incentivado até 2002 por sucessivos governos via juros bonificados. É, por isso, bastante plausível que aqueles que não possuem casa própria aos 65 anos dificilmente o virão a conseguir.

A situação dos arrendatários com 65 e mais anos é diferente da dos mais jovens, sobretudo daqueles que estão no início da vida ativa. Para os mais velhos, o congelamento das rendas, sustentado ao longo dos anos por prorrogações e, mais recentemente, transformado em definitivo, foi um fator decisivo. Já os jovens em início da vida adulta têm compromissos habitacionais frequentemente considerados menos permanentes, como arrendamento ou partilha de habitação, muitas vezes devido à incerteza laboral e económica.

Portugal transformou-se num país de proprietários – talvez por falta de outras opções –, mas ter casa não garante, por si só, condições habitacionais dignas. Um trabalho anterior sobre desigualdades sociais mostra que os arrendatários enfrentam uma situação ainda mais desfavorável do que os proprietários: têm custos de habitação mais altos, estão mais frequentemente sobrecarregados com despesas, em condições de sobrelotação e de privação severa das condições de habitação.

Um dos indicadores mais ilustrativos das condições habitacionais, e um dos habitualmente utilizados para medir a pobreza energética, é a proporção da população com incapacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida. Entre 2015 e 2019, essa dificuldade afetou 18% dos proprietários e 34% dos arrendatários, de acordo com os dados do ICOR. Por faixa etária, mais de uma em cada quatro pessoas com 65 e mais anos relatou não ter recursos para aquecer a casa adequadamente (26%), uma proporção superior à observada entre os 18 e 64 anos (20%). As diferenças são pequenas entre áreas densamente e pouco povoadas. Este quadro resulta da conjugação de vários fatores: baixos rendimentos, custos de energia elevados, falta de isolamento térmico, despesas de habitação elevadas e dificuldade em aceder a programas de apoio que funcionam por reembolso. Como o nome do indicador sugere, é uma questão essencialmente financeira. No entanto, há outros fatores que também contribuem para este problema. Sendo menos debatidos, merecem ser aqui considerados.

Os Censos 2021 revelam uma realidade preocupante. Por um lado, a maioria das casas usadas como residência habitual em Portugal não possui sistemas de aquecimento ou conta apenas com aparelhos móveis, elétricos ou a gás, pouco eficientes tanto no consumo de energia quanto na capacidade de aquecer o ambiente. Esta situação é mais frequente nas regiões com clima mais ameno, como as regiões autónomas, a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve. Mesmo nas áreas mais frias, como o Norte, menos de metade dos lares têm aquecimento central, lareiras abertas, recuperadores de calor ou outros equipamentos fixos.

Figura 1. Alojamentos familiares clássicos de residência habitual (%), por tipo de aquecimento utilizado com maior frequência, NUTS II. Fonte: Censos 2021, INE.

Por outro lado, viver numa casa com mais divisões do que o necessário representa custos adicionais de aquecimento. Os Censos 2021 revelam que Portugal tem uma taxa de sublotação da habitação muito elevada nos alojamentos utilizados como residência habitual (64%). As regiões do Centro e do Alentejo apresentam valores ainda mais altos (73% e 69%, respetivamente). Mesmo nas áreas com maior pressão no mercado imobiliário, as taxas de sublotação continuam extremamente altas: Região Autónoma da Madeira (49%), Área Metropolitana de Lisboa e Algarve (ambas com 57%).

Se adotarmos uma definição menos restritiva de sublotação do que a utilizada a nível europeu — considerando que ter uma divisão a mais possa não configurar sublotação, especialmente à luz da importância do espaço interior evidenciada na pandemia de Covid-19 —, a taxa de sublotação em Portugal ainda seria de 35%. Ou seja, mais de três em cada dez casas têm pelo menos duas divisões a mais do que seria necessário, tendo em conta a composição do agregado familiar.

Figura 2. Alojamentos familiares clássicos de residência habitual, por índice de lotação, NUTS II. Fonte: Censos 2021, INE.

É sabido que a sublotação é mais elevada em casas onde residem pessoas idosas, refletindo um desajuste comum em países com baixa mobilidade residencial: enquanto a dimensão familiar muda ao longo do tempo, a tipologia da habitação permanece fixa. A ideia de “uma casa para toda a vida” está profundamente enraizada nos padrões residenciais em Portugal, mas isso traz diversos desafios, incluindo um esforço financeiro adicional para aquecer adequadamente a casa. A literatura científica aponta para uma relação entre o excesso de mortalidade no inverno e a exposição prolongada a baixas temperaturas internas, sendo a idade um dos principais fatores de risco. Perante isto, estes dados são, no mínimo, preocupantes. 

Portugal, como muitos outros países, enfrenta desafios decorrentes de tendências demográficas de longo prazo, em particular o envelhecimento da população. Esta realidade é o resultado de dinâmicas bem conhecidas: o aumento gradual da esperança de vida, décadas de baixa natalidade e períodos prolongados de saldos migratórios negativos. Este processo só deverá desacelerar na década de 2040, quando as gerações nascidas a partir dos anos 1980, menores em número, atingirem a senioridade. Nesse momento, segundo as projeções oficiais, o grande desafio deixará de ser o envelhecimento e passará a ser o declínio demográfico.

Não basta, porém, viver mais. É fundamental viver melhor, e isso passa por melhorar as condições habitacionais. As casas precisam de ser mais adaptadas às necessidades de uma população envelhecida, garantindo conforto térmico, acessibilidade e segurança. Investir na requalificação dos espaços habitacionais, com melhores isolamentos e sistemas de aquecimento eficientes, não só promove uma vida mais digna para todos, mas também é um passo essencial para responder aos desafios de uma população cada vez mais envelhecida.

A autora agradece o apuramento de dados do ICOR 2015-2019 facultado pelo INE (PED-421796786) no âmbito do Grupo de Trabalho sobre Indicadores das Desigualdades Sociais.

Uma versão deste texto foi publicada na edição n.º 17 (Nov-Dec 2024) da IntelCities, Revista das Cidades Inteligentes.

Alda Botelho Azevedo é investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais (ICS), onde coordena o doutoramento em Population Sciences da Universidade de Lisboa, e professora auxiliar convidada no ISCSP. A sua investigação centra-se sobretudo nas áreas da demografia da habitação e do envelhecimento da população. alda.azevedo@ics.ulisboa.pt 

Nordeste brasileiro: diferentes narrativas sobre desenvolvimento e transição energética

Por: José Gomes Ferreira

O Nordeste brasileiro é constituído por nove estados, que ocupam 1.558.000 km². Segundo o Censo 2022 residem na região cerca de 55 milhões de habitantes. Dado o atraso no desenvolvimento económico, a possibilidade das energias renováveis integrarem os investimentos fez parte, em 1959, das prioridades do documento Uma política de desenvolvimento econômico para o Nordeste, coordenado por Celso Furtado, que deu origem à Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).

Arranque

Foi a partir do apagão no fornecimento de eletricidade, ocorrido em 2001 e resultante da seca que afetou o Brasil, que a produção de energias renováveis foi desenvolvida. Ainda nesse ano, o Governo Federal avançou com o Programa Emergencial de Energia Eólica (PROEÓLICA), substituído no ano seguinte pelo Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA). Data também de 2001 o primeiro Atlas de Potencial Eólico Brasileiro, que mostrou que o Nordeste tem os ventos mais favoráveis à produção eólica. Em 2006, foi publicado o Atlas Brasileiro de Energia Solar, destacando igualmente o potencial produtivo do Nordeste. A implementação de empreendimentos eólicos tem sido muito rápida, enquanto que a produção de energia solar está ainda em fase de expansão.

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Soberania da terra em agro-territórios deprimidos e contestados: Portugal v. Brasil

Por: Lanka Horstink, Kaya Schwemmlein e Gabriela Abrahão Masson

Nota: por opção das autoras, este texto não segue o acordo ortográfico.

O presente post apresenta um resumo dos resultados de uma análise crítica comparativa das políticas fundiárias nos sistemas agro-alimentares de duas regiões rurais marginalizadas em dois países de continentes diferentes com uma história interligada: Portugal e Brasil. A apresentação completa dos estudos de caso e da análise da “qualidade de soberania da terra” pode ser encontrada aqui (em inglês).

Nos últimos anos, as finanças globais, a procura de recursos em sectores como a energia e alimentação e a necessidade de mitigar as alterações climáticas alteraram profundamente as agendas de desenvolvimento sustentável. Esta transformação trouxe desafios interligados, como a concentração de recursos e a monopolização de elementos essenciais, como a água, a terra, a energia e a agricultura (e.g., Dunlap, 2024). Investigadores, como Borras e Franco (2012) e GRAIN (2016), destacaram a natureza multifacetada destes problemas.

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