Uma viagem à Amazónia

Por: Luiz Carlos de Brito Lourenço

O Brasil é um continuum de espaço e tempo ainda a ser revelado quando o tema é a Amazónia. Através do olhar vocacionado do cinéma du réel, o reconhecido produtor cinematográfico e documentarista brasileiro, João Moreira Salles – realizador de, entre outros, o corajoso Notícias de uma guerra particular (1999) e os biográficos Santiago (2007) e  No intenso agora (2017) –, escreveu Arrabalde: em busca da Amazônia (anteriormente referido neste blogue). São fotogramas de viagem a lugares do mais extenso cenário de biodiversidade do planeta. Salles compõe um abrangente registo de evidências e emoções sob a perspectiva ambiental, científica e socioeconómica, que multiplicam o conhecimento dos estudos sobre o bioma da Amazónia brasileira. Como numa novela, parte do texto foi periodicamente antecipada, a partir de novembro de 2021, em seis artigos densos para a revista de cultura Piauí, da qual Salles é editor. A versão impressa generosamente incorporou, pelo menos, um terço a mais de relatos.

Salles recorda o conceito de Olga Tokarczuk (Nobel da Literatura 2018) em “O Original e a Cópia”, publicado em Viagens, para quem as coisas importantes são aquelas “sob terrível ameaça de destruição (…) sob a nossa guarda”. O cineasta foi justamente movido pela série de prováveis crimes de prevaricação pelas autoridades do Brasil contra o ambiente, ardilosamente estimulado pelo desmonte do controle oficial estabelecido pela Constituição Federal de 1988, abertamente negligenciado no país entre 2019-2022. 

De acordo com o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, no Brasil, mato ou mata têm a acepção de área de vegetação inculta ou silvestre, algo sem qualquer serventia. O sentido de marginalidade do título representa o real e o simbólico da adversidade histórica do tratamento brasileiro dado à hileia de Humboldt. Entretanto, Salles alerta para estarmos vigilantes.  

Afinal, são cerca de 16 mil espécies dispostas entre 390 mil milhões de árvores (Steege, 2013) cada uma a gerar até mil litros de vapor de água/dia, segundo o INPE. O mesmo bioma oferece 20% da água doce do planeta. Oceano, rios e árvores juntos evaporam humidade para a atmosfera, onde os ventos alísios equatoriais formam correntes de rios aéreos ou voadores, que se espalham a oeste para os Andes e o centro-sul do continente. Contudo, a precipitação já escasseia na mesma Amazónia, devido à extração antrópica radical, potencialmente ampliada por incêndios criminosos e a consequente elevação da temperatura na superfície.

Figura 1. Capa do livro.

Apoiado por colaboradores do IMAZON (ONG inspirada na sustentabilidade, ética e método científico), Salles iniciou sua intensa jornada a partir de Belém (Pará), na chamada Amazónia Oriental, futura sede da Conferência da ONU sobre Alterações Climáticas de 2025 (COP 30). Paradoxalmente situada junto à foz da colossal bacia hidrográfica, Belém é a capital brasileira com menor percentual (22,4%) de áreas arborizadas do país, seguida por Manaus (25,1%), capital do Amazonas – dados de 2010 até que se conheçam resultados do Censo IBGE 2022. Aliás, o Pará é campo da contínua atividade extrativa nas latitudes amazónicas, com destaque para as polémicas hidrelétricas de Tucuruí e Belo Monte. 

Tanto o clima quanto o relevo da cidade são hoje distintos dos encantadores relatos de Bates e Wallace, naturalistas ingleses do final do século XIX, cujas viagens o livro resgata também em Ferreira de Castro, Euclides da Cunha e Mário de Andrade. Recupera, ainda, a primeira viagem científica pelo Amazonas do francês La Condamine, em 1785 (pág. 358). Na capital, o exotismo da floresta foi radicalmente substituído por valores contemporâneos de prosperidade individual e reconhecida carência de solidariedade frente ao quotidiano em um país desorganizadamente urbanizado. Não escapa a Salles um curioso olhar sobre o vestuário soturno, um figurino cinematográfico men in black, do segurança privado que protege uma igreja evangélica, em dissonância com o calor equatorial e o betão abrasivo nessa Belém distópica.  

Investigadores detalham as inter-relações entre vegetação, fauna, arbovírus, fungos, líquens e doenças à espera de um elefante negro, explorado no capítulo quinto. Certamente, Salles oferece um daqueles “trabalhos e estudos acurados que levam ao saber”, trecho de Raízes do Brasil (pág. 16), de Sérgio Buarque de Hollanda, referido no documentário dirigido por Nelson Pereira dos Santos (produzido por João Moreira Salles, em 2004). Recorde-se que o historiador enfrentava aí os conservadores da primeira metade do século XX, para quem obras assim “assemelham-se por sua monotonia e reiteração aos ofícios vis que degradam o homem”.  

Naquela altura do Estado Novo (1930-1945), decidiu-se por uma ação civilizatória, que acelerou a vilania do descuido com a floresta. A geopolítica de habitar os vazios demográficos desconsiderou as pessoas ali antes estabelecidas. Assim, foi lançada a Marcha para o Oeste, destinada originalmente a garantir direitos trabalhistas para a extração de látex nos seringais, e que despertaria a construção de Brasília, em 1960, vontade projetada desde 1823 e confirmada pela Constituição republicana de 1891. Dessa época, ilustra a figura a óleo Progresso Americano (1872), de John Gast (pág. 76). 

Figura 2. American Progress, John Gast (1872), Autrey Museum of American West.

Salles menciona brevemente a “doutrina de segurança nacional” crescida durante o regime militar (1964-1985). Com o propósito de defesa do território, o Programa de Integração Nacional, criado em 1970, fez avançar batalhões de engenharia do exército para a construção da Transamazônica (BR-230), a rodovia de 4.270 km iniciada no litoral da Paraíba, que no Pará iria chegar às reservas minerais de Serra Pelada (1972) e da Serra dos Carajás (1980), abrindo espaço a desfavorecidos de todo o país. 

O capítulo sexto fala da transição tímida para a sustentabilidade. Fruto do cruzamento com a estrada Belém-Brasília, a 300 km a sudeste da capital paraense, em Paragominas, Salles colheu manifestações do orgulho em dizer que ali “não existia nada”, além da mata que lhes é invisível. Levado pela pobreza, um entrevistado influente justifica sua partida do Espírito Santo, um estado “apertado” no litoral sudeste, onde “a terra ia ficando pequena”, e tinha “só duas vaquinhas”. Para o leitor europeu, vale referir que o estado tem 46 mil km2, área maior que os Países Baixos. Paragominas (quase 100 mil habitantes, 2010) é epicentro de arranjos políticos que alargam a compreensão sobre o país real; aplicou o conceito de município verde e o cumprimento de exigências ambientais, enquanto na Terra do Meio a cidade de Novo Progresso (25,7 mil habitantes, 2010) segue ideologicamente reativa. Note-se que na “Amazônia Legal(marco legal que demarca a macrorregião dos nove estados que partilham o bioma), as eleições presidenciais de 2022 apuraram que o candidato à reeleição venceu em 265 municípios que têm 70% de áreas desflorestadas (MapBiomas, 2022).  

Sem afeição é “mais fácil destruir”, admite Salles. Houve escolhas equivocadas nesse desenvolvimento esterilizante diante dos maus exemplos pelas estradas percorridas. Do que viu, a floresta não está a vencer a agropecuária de baixa produtividade. Resulta, então, “uma França” de áreas improdutivas, desoladas, prioritárias para restauração florestal, opção privilegiada pelo mercado, em detrimento das medidas de redução de carbono, defendidas por cientistas ambientais.  

O Brasil queima incessantemente ativos de seu capital natural, porque boa parte de seus representantes age sem compreender a floresta. Resta a esperança que não seja a pata do boi que prevaleça sobre aquelas do espírito onça, de Joseca Yanomami, retratado na capa.


Luiz Carlos de Brito Lourenço é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (Brasil), e Investigador Associado do ICS/Universidade de Lisboa.

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