Por: Luiz Carlos de Brito Lourenço
“É difícil compreender quando não se presta atenção”. É assim que o documentarista cinematográfico e fundador da revista de cultura piauí, João Moreira Salles, entre indiferenças, equívocos e sonhos brasileiros sobre a região da Amazónia, orienta o seu olhar para a floresta em seu livro Arrabalde: Em busca da Amazônia (1ª. ed., São Paulo, Companhia das Letras, 2022). Após a aclamação do Presidente Lula da Silva, em 30 de outubro de 2022, quando os gestores incumbentes revelaram a incúria da área ambiental do país no último mandato, confirmou-se um claro sentimento de desleixo segundo o Relatório Final do Gabinete de Transição Governamental, redigido por autoridades, parlamentares e especialistas. Não foi surpresa ver o descumprimento do dever público no Brasil; porém, choca a sua intencionalidade.
A julgar pela receptividade internacional, a melhor expressão do terceiro mandato de Lula reside possivelmente no avanço da gestão socioambiental que governará o Brasil até 2026. Com o dilema do crescimento económico e rigidez orçamental, ao que se soma uma reforma tributária sob uma conjuntura única de 32 legendas partidárias, num país desigual e polarizado, o novo mandatário terá de contar com suporte do poder judiciário para enfrentar retrocessos normativos.

Quatro anos após a desistência pessoal de seu antecessor para sediar a COP 25 (transferida para Santiago do Chile, em 2019), Lula antecipou-se a apagar a imagem de pária internacional e anunciou o retorno ao progresso multilateral das Conferências da ONU sobre alterações climáticas e biodiversidade. Alemanha e Noruega apressaram-se em anunciar a reativação do Fundo Amazônia, ampliado em fevereiro pela confirmação dos EUA em partilhar a iniciativa. Os primeiros pronunciamentos do Presidente eleito destacaram que “o Brasil e o planeta necessitam uma Amazónia viva”, prevendo metas para a desflorestação zero. Satélites identificaram cerca de 45 mil km² desmatados entre 2019 e 2022, uma área correspondente à soma das Regiões do Norte e Centro de Portugal (INPE/PRODES, 2023).
Assim, durante a COP27 da Mudança do Clima, em Sharm El-Sheikh, (06-18 de novembro de 2022), o Brasil contou com uma representação múltipla. Primeiro, havia a delegação oficial do governo incumbente, com a agenda de buscar mais recursos financeiros, como observou o Instituto de Relações Internacionais da PUC Rio do Janeiro. Noutra escala de hierarquia, dois grupos de alto nível político ocuparam o espaço de eventos: (1) uma delegação de nove governadores dos estados federados membros do “Consórcio Amazônia Legal”; os quais aderiram ao (2) grupo liderado em pessoa pelo presidente Lula, ladeado por Marina Silva, reconhecida ambientalista, posteriormente confirmada para a nova pasta do Meio Ambiente e Mudança do Clima. Com sede no Brasil estavam 65 ONGs, sendo quatro delas de apoio a Sonia Guajajara, deputada que assumiu a titularidade de uma pasta ministerial inédita, a dos Povos Originários. Junto ao Governador do Pará, Lula ratificou a oferta do Brasil para sediar a COP30 (2025) em Belém, um grau de latitude a sul da linha do Equador. Trata-se de um município com 1,5 milhões de pessoas, onde um terço dos domicílios não têm esgotos adequados e apenas 22% de sua área total é arborizada (IBGE, 2023). O governo eleito também presenciou a COP15 Biodiversidade (CBD), em Montreal (7-19 de dezembro de 2022). Da mesma forma, participaram do Foro Económico de Davos também numa missão de ‘redução da notação do rating do país’, sobretudo pelos atos antidemocráticos de 08 de janeiro de 2023.
Em linhas gerais, o diagnóstico traçado pelo Gabinete de Transição Governamental cobriu “três grandes áreas de políticas públicas: (a) desenvolvimento social e garantia de direitos; (b) desenvolvimento econômico e sustentabilidade socioambiental e climática; e (c) defesa da democracia e reconstrução do Estado e da Soberania”. Nas agências ambientais, a equipe reportou um downsizing pragmático do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e do Serviço Florestal Brasileiro. Há registos de atraso na regularização ambiental rural, cancelamentos nos estatutos de Unidades de Conservação da Natureza (estações e reservas biológicas, parques nacionais) e um quadro físico nacional de apenas 700 fiscais. Portanto, Estado e ciência ficaram reféns do mercado.
Com o intuito de expansão da mineração fomentaram-se atividades predatórias. Em consequência, o território amazônico teve o mais alto índice de desmatamento desde 2016. Em 2019, a área do garimpo, dito artesanal, superou a mineração industrial no Brasil. O ouro respondeu por 83% do garimpo explorado em 1,6 mil km², quatro vezes maior que a área do ferro.
Instalou-se, em simultâneo, uma crise humanitária, combinando malária e uma prolongada desnutrição entre populações vulneráveis, como a etnia Yanomami, já em risco de extinção. Para além da tempestade perfeita formada em 2020 pelo surto de queimadas e o desastre da COVID-19 na Amazónia, persistem os históricos conflitos fundiários entre nativos e invasores. De um lado, estão famílias autóctones, de época remota, em esparsos grupos de caçadores-coletores e subsistentes de roçados primitivos, dependentes dos rios e de uma densa floresta pluvial. Disposta ao longo da fronteira setentrional, área de limite do governo central (União) para controle aéreo de combate ao narcotráfico servida por mínimas unidades militares, habita ali uma população antes isolada estimada em cerca de 30 mil pessoas, que por ora ocupa a “Terra Indígena” Yanomami, homologada em 1992, com extensão de 96,6 mil km2 (superior a Portugal), e que se distribui entre os estados de Roraima e Amazonas.
Disputam com hordas de garimpeiros ilegalmente estabelecidos, migrantes igualmente desfavorecidos atraídos pela riqueza mineral da região, porém armados e financiados pelo comércio do ouro de aluvião. Avessos à compreensão do modo de vida dos indígenas, “indolentes” para algumas altas patentes militares, a questão indígena e o vazio demográfico alimentam a teoria da internacionalização da Amazónia, contraparte da doutrina da segurança nacional (Salles, 2022, p.80), consagrada durante os governos militares (1964/1985). No caso, os garimpeiros aproximam-se junto às aldeias e pelas áreas por onde perambulam indígenas isolados. A pesca é impossível no rio Uraricoera, poluído com mercúrio. Com fotografias de Sebastião Salgado, a imprensa documentou o fato em 2019. Dos 414 hectares de garimpos existentes na reserva em 2020, chegou-se a 1.556 hectares um ano depois, segundo a Mapbiomas. Ademais, existem ali 75 pistas de pouso para as aeronaves de apoio ao garimpo.
Esse conflito produz vidas brasileiras miseráveis e invisíveis perante os valores como os consagrados pela Agenda 2030, cujos conceitos são insuficientes para conhecer profundamente aquela realidade. Para impedir a continuação das extrações minerais será preciso o enfrentamento articulado por militares e ambientalistas por um tempo incerto. A reversão desse quadro demanda uma nova organização institucional, concentrada na resolução de questões graves do território. Encerro associando pensamentos do autor de Arrabalde, que observa num século que se organiza em torno do conhecimento: “o que a floresta pede é mais atenção”.
Luiz Carlos de Brito Lourenço tem mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília e desde 2018 é Investigador Associado do ICS-ULisboa.