Por: Marcella Conceição
A seca de 2022 em Portugal foi um evento de grande relevância no cenário das mudanças climáticas no país, tendo este sido considerado o ano mais seco dos últimos 92 anos. A seca meteorológica durou cerca de nove meses, só atenuando em outubro do mesmo ano, quando as chuvas começaram. Segundo o boletim do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), seis ondas de calor e 80% do território em seca severa extrema e temperaturas mais altas foram as características do cenário climático deste ano para os portugueses. Nos últimos meses do ano, o aumento da pluviosidade trouxe 70% das chuvas, o que aliviou as condições de seca em todo o país.
Evidentemente, este tipo de cenário tem interferências diretas no ciclo da água, tanto para o abastecimento das cidades, como para a agricultura (casos de escassez). No sentido de promover a adaptação a estes eventos, a reutilização de água tratada (ApR – Água para Reutilização) vem sendo adotada na rega dos espaços verdes em Lisboa, onde a construção de uma rede para reutilização está em andamento e um dos três pilotos previstos para a cidade já se encontra em funcionamento. A reutilização de águas residuais é uma prática que tem vindo a se estabelecer nos países europeus como solução para promover a reintegração do recurso no ciclo de utilização. Países do sul europeu já vêm estabelecendo a reutilização como forma de assegurar não só maior disponibilidade de água para um território seco, mas também garantir uma economia circular e sustentável no setor.
A Câmara Municipal de Lisboa (CML) adotou a reutilização de água recentemente, tendo o seu primeiro piloto de rega em funcionamento no Parque das Nações desde abril de 2022. Estes primeiros passos em direção à reutilização pela CML, único utilizador licenciado pela APA – Agência Portuguesa do Ambiente, aconteceram depois da criação de instrumentos políticos bem estabelecidos e bastante rigorosos a nível nacional, já em conformidade com o Regulamento (EU) 2020/741, relativos aos requisitos mínimos para a reutilização de água. Além disso, a reutilização é ainda contemplada pelo PENSAARP 2030 – Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais de Portugal que se encontra em análise, após consulta pública. Ainda em fase de testes, o que se espera é que a reutilização seja estimulada a partir de incentivos e experiências no terreno. Já há três fábricas de água, como são chamados os locais de produção, nas ETAR de Lisboa: Alcântara, Chelas e Beirolas.

Alicante, em Espanha, província situada no sudeste do país, apresenta um clima ainda mais extremo em se tratando das secas. A realidade local, que sofre com os ciclos irregulares de precipitação, já levou à adoção da reutilização há alguns anos para o abastecimento de diversos setores, desde a agricultura ao turismo, que tem se estabelecido nas últimas décadas. Com mais de 20 anos de experiência com a reutilização para a agricultura e usos urbanos, Espanha está em fase de atualização de seus instrumentos políticos de acordo com o novo regulamento europeu, que entrará em vigor em 26 de junho de 2023. As principais ETAR da província já são produtoras de água para reutilização e o que é produzido é utilizado pelos diversos setores. Foram estabelecidos também modelos de negócio para a venda de água reutilizada para outros usos, como por exemplo a rega dos campos de golfe da região. A maior fábrica de água para reutilização, que abastece comunidades de regantes que se estabeleceram na localidade, é a ETAR de Rincón de León, que além da agricultura, fornece água para utilização nas regas urbanas.

Estas duas localidades, com características muito particulares quanto ao seu processo de desenvolvimento da reutilização de água, estão a servir como cenário de investigação para a minha pesquisa doutoral, em que procuro identificar as barreiras e fatores impulsionadores para a aceitação da reutilização de água tratada, através da análise do discurso dos atores-chave, a partir da realização de entrevistas e análise documental. Ainda é escassa a investigação sobre a reutilização que se faz em território europeu, principalmente no sul, onde já há um certo grau de experiência em alguns países e outros ainda estão numa fase inicial do processo. O que se espera com esta investigação é uma comparação baseada na diferença entre as características regionais, tendo assim referenciais próximos territorialmente, que compartilham particularidades como o de se encontrarem no sul da Europa, mas com um conjunto de fatores específicos para a aceitação e suporte à reutilização. Neste trabalho doutoral, são consideradas as percepções de risco dos atores envolvidos no setor e da comunidade, bem como os níveis de justiça e confiança nas instituições públicas e entidades de gestão. A aceitação social é um elemento muito relevante para que os projetos de reutilização sejam concretizados. Entretanto, o que ainda tem sido pouco explorado é a aceitação dos diversos agentes envolvidos na implementação e execução dos projetos, construção de infraestruturas e regulamentação da prática, além da aceitação pública.
Entrevistas exploratórias foram realizadas como parte do trabalho de campo, com os atores-chave, demonstrando marcadas diferenças quanto à história de reutilização no terreno, a construção das regulamentações, os incentivos à adoção e motivos que levaram ao desenvolvimento da prática. As secas e a escassez de água em cada uma das regiões são, definitivamente, um fator muito relevante para o desenvolvimento de soluções de adaptação às alterações climáticas.
Os avanços futuros deste estudo apontam para a identificação de fatores importantes a nível social, político e económico que poderão resultar em recomendações de políticas e favorecer a implementação da reutilização nos países europeus e em outras regiões do mundo. O propósito é que o conhecimento sobre as atitudes e comportamentos face à reutilização de água contribuam para reforçar o impacto social das inovações e para implementar uma economia circular para este recurso, contribuindo assim para a adaptação às alterações climáticas nas próximas décadas.
Marcella Conceição é bióloga, doutoranda do programa em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável e investigadora assistente no Projeto H2020 B-Water Smart. Cientista alocada no ICS, tem estudado o papel da aceitação social na implementação e desenvolvimento de soluções de adaptação às ACs no setor da água. Como ativista do clima, é voluntária na ONG YCL, na área da formação de jovens para liderança climática. marcella.conceicao@ics.ulisboa.pt