A Era das Omnipresenças

Por: João Baptista

É capaz de cuidar de algo que não vê? Preocupar-se com o que não consegue tocar, ainda que esteja ao seu lado? Abdicar de consumir o que gosta por aquilo que não consegue sentir? Mudar as suas rotinas em prol de algo que está para além do seu conhecimento, mas que encontra em todos os sítios onde vai?

Este é, talvez, um dos maiores desafios que a humanidade enfrenta hoje. O de acordarmos, todos os dias, junto a algo que não sentimos, não vemos, não conseguimos tocar, mas pelo qual somos responsáveis. Timothy Morton deu-lhes o nome de hiperobjetos. A ideia de hiperobjectos é genial. Mas a designação é frustrante. O prefixo “hiper-” e a palavra “objeto” desviam-nos da condição espiritual que as entidades globais a que a conjugação se refere têm. O termo “hiperobjecto” atribui-lhes um carácter explícito, tangível. Materializa essas entidades. Dá-lhes um significado mais concreto do que elas requerem. Daí preferir chamar-lhes omnipresenças. Bem-vindo à Era das Omnipresenças.

Imagem do autor.

Vivemos um tempo preenchido por muitas coisas que ocupam todo o espaço. São coisas tão vastas que estão em toda a parte e, por isso, renunciam à noção de distância: suprimem a diferença entre aqui e ali. Pense nisto: a que distância está das alterações climáticas? Estão perto? Longe? Consegue tocar-lhes? Afastar-se delas? Onde é que o Antropoceno não está presente? E os microplásticos? Consegue evitá-los? “Não”, é a resposta que (sobretudo) os cientistas nos dão. “Estão em todo o lado”: nos alimentos que comemos, na água que bebemos, e até dentro dos nossos corpos. Não há como escapar. Na Era das Omnipresenças, o planeta ficou sem espaços para o refúgio, sem alternativas ao abismo que essas entidades omnipresentes trazem.   

As omnipresenças diferem dos tipos de presença familiar. Uma dessas diferenças é a ausência de forma. As omnipresenças são extensões de coisas sem-forma que alcançam todos os sítios, em simultâneo. O espaço físico é-lhes irrelevante. Não têm cimo. Não têm parte de baixo. Nem fundo. Fim. Fora. Dentro. São livres dos limites impostos pela materialidade e escapam ao sentido do tato – “o mais desmistificador de todos” os sentidos, segundo Roland Barthes. As omnipresenças são por isso enigmáticas porque, apesar de estarem em todo o lado, significam distanciamento. Tal como o místico, sobrenatural, transcendente, as omnipresenças são intocáveis. Estão perto, mas não conseguimos tocar-lhes. Vivemos com elas, mas não nos “tocam”. Pertencem ao “além”, apesar de estarem aqui. Não é por acaso que a palavra “omnipresença” é tão comum nos ensinamentos das religiões abraâmicas. A sua magia está na forma como liga pessoas a entidades invisíveis, desperta a intensidade do sentimento sobre algo ubíquo, sem que isso tenha de ser real – apenas verdadeiro. A “omnipresença” faz parte da gramática essencial da fé. Liberta-nos da pressão dos factos, das evidências. É um conceito aplicável a deuses e demónios.

Mas hoje os deuses e demónios omnipresentes têm forte concorrência: aquecimento global, mudanças climáticas, microplásticos, o Antropoceno, o oceano. Em relação ao último, muitos cientistas marinhos falam do oceano não apenas como um espaço preenchido por água salgada e com limites definidos. Para eles, o oceano não tem limites. É líquido, sólido, gasoso, invisível. Está nas nuvens, na chuva, no oxigénio, nos nossos pulmões; está em toda a parte. É tudo! Por exemplo, para os cientistas marinhos, um pingo da chuva denota uma jornada longa de origem incerta. Encerra várias transmutações, do oceano para o ar para a terra. Um pingo da chuva (tal como a sua ausência) é um sinal oceânico, um sintoma da omnipresença do oceano.

Imagem retirada do filme Abissal. O filme foi realizado pelo Pedro Neto e por mim (2021). Ainda não foi publicado. Mas caso queira vê-lo, basta contactar-me e terei todo o gosto em fornecer-lhe a palavra-chave para aceder ao filme através do link: https://vimeo.com/601203182

Os cientistas marinhos não são os únicos cientistas a proselitizar a omnipresença. Hoje é a ciência em geral que mais propaga sobre o que está presente em todo o lado, mas que ao mesmo tempo é impercetível ao olhar comum. Em particular, as ciências exatas e os seus cientistas estão a invadir o campo da espiritualidade. As omnipresenças que dizem saber abarcam aquilo que está para lá da objetividade, replicação, fragmentação; ou seja, desafiam os principais atributos do conhecimento científico: não cabem na consciência (cons + ciência [com ciência]).

Um paradoxo?

Acho que não. 

Vocacionadas para trabalhar e demonstrar verdades concretas e sólidas, as ciências exatas têm agora o desafio de comunicar sobre o que costuma ser do domínio espiritual. Sejam as alterações climáticas, o oceano oceânico, deuses ou demónios, as omnipresenças são difíceis de entender através da linguagem moderna e secular das ciências exatas. Para que as omnipresenças da crise planetária “toquem” nas pessoas não basta comunicá-las através de gráficos, mapas ou estatísticas. A linguagem positivista e secular é inapta para a tarefa. Está ultrapassada. A Era das Omnipresenças chama por uma nova espécie de ciência e por uma nova espécie de cientistas. Pede por cientistas que comuniquem fatos mas também crença, tragédia mas também esperança. A Era das Omnipresenças chama por cientistas que sejam fluentes na linguagem da emoção tanto quanto da “consciência”. Face à emergência ecológica e existencial contemporânea, a mediação entre a pessoa e as entidades omnipresentes – tipicamente uma competência atribuída aos padres, profetas, gurus, xamãs – tornou-se uma missão científica.


João Afonso Baptista é antropólogo interdisciplinar no ICS-ULisboa. Trabalha contra o pensamento binário contemporâneo, nomeadamente contra as divisões Norte-Sul, morte-vida, terra-mar, secularismo-religião. Publicou recentemente o livro The Good Holiday e os artigos Bodyland, Edible Zombis (com Mónica Truninger), Fieldwork in Silence e Eco(il)logical Knowledge. Atualmente desenvolve o projeto: www.portugal-is-sea.org.
Contacto: joao.baptista@ics.ulisboa.pt.              

 

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