Gestão é tudo (SQN)

Por: Daniel Roedel

No Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, é comum utilizarmos ao final de uma afirmação a expressão “só que não” (SQN). Trata-se de uma ironia que nega a certeza anterior e cria uma piada. Utilizei a expressão no título para abordar o tema da gestão que desde há alguns anos saiu dos estudos e debates da academia e das ações empresariais e entrou no cotidiano das pessoas em diversas localidades. Exemplos podem ser encontrados na entrevista do treinador de futebol em Portugal, que orgulhosamente declara que fez a gestão do banco de reservas; da terapeuta que destaca a necessidade da gestão das emoções; do atleta que enaltece a gestão do esforço. Associar a palavra gestão aos temas em questão parece indicar seriedade e profissionalismo, mesmo que não se saiba bem o que ela significa.

A adesão voluntária e até mesmo entusiasmada a essa expressão, antes de significar um útil intercâmbio de culturas e de práticas empresariais, é um dos símbolos do colonialismo dos tempos atuais. Não basta importar acriticamente receitas e frases gestadas alhures, há que se valorizar e evidenciar uma elevada sintonia. Talvez um bom exemplo seja o touro exposto, e posteriormente retirado, na sede da Bolsa de Valores de São Paulo, no Brasil, cuja inspiração é o touro de Wall Street, em New York. O caso em questão se coaduna com o que na década de 1950 o dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues denominou de “complexo de vira-latas”, ou seja, um sentimento de inferioridade em relação aos países centrais,  dominante no país àquela época e que parece insistir em se afirmar.

Touro de ouro na porta da BOVESPA, em São Paulo
Fonte: A Postagem

De fato, a presença da gestão em vários espaços de convivência parece indicar, aos que a enaltecem, uma conduta “antenada” com o que se entende ser  vanguarda, principalmente se o seu uso for complementado por expressões em inglês, que de idioma de negócios internacionais, passou a ser incorporado internamente. Como exemplo, temos a exaltada task force do governo português na exitosa condução da vacinação da população contra a pandemia da COVID-19 – anglicismo naturalizado também pela mídia portuguesa, ao mesmo tempo em que esta rejeita o português falado no Brasil. Há também a otimista afirmação de jornalistas de televisão brasileira que informaram que durante a pandemia parte do comércio nas cidades funcionava apenas com entregas por delivery (sic).

A assunção da gestão como uma categoria superior de sucesso, acima do bem e do mal, sugere que fora dela não há caminho. Assim, a gestão se estabelece como culto e é pelo que se entende ser ela que se pode alcançar bons resultados no espaço organizacional e até mesmo pessoal. E isso é geralmente ensinado nas escolas de Administração e também encontra desdobramentos em influencers (sim, em inglês) e nos coaches que enxergam uma possibilidade pessoal de fazer negócios, embora a eficácia para os que deles se utilizam possa ser bastante duvidosa. O humorista brasileiro Gregorio Duvivier retrata bem o tema. Em geral, reduzem o entendimento do sucesso ou do fracasso a questões pessoais, como atitude, disposição e uso de técnicas de empoderamento, desconsiderando aspectos políticos, econômicos e sociais que geralmente são determinantes dessa realidade. O que importa é manter a crença no sucesso pessoal.

Nessa moda, qualquer alteração, mesmo modesta, no modo de realizar negócios é vendida pela mídia e por esses “especialistas” como uma reinvenção. E o trabalho precário, tão presente no mercado atual, é apresentado sob o eufemismo de empreendedorismo.

Esse culto à gestão decorre de um sentimento presente nos meios intelectuais dominantes no atual capitalismo neoliberal, de que a economia e a história se esgotaram com o triunfo da sociedade de mercado. Assim, a inovação teórica se desloca para o campo da gestão, como necessidade tanto para empresas como para as pessoas, impondo-se à política, à economia e à organização social, conforme destacam Cláudio Gurgel, em A Gerência do Pensamento e Vincent Gaulejac, em Gestão como Doença Social.

São modelos e técnicas que se pretendem universais, cuja aplicação se apresenta como independente do contexto social e político. Possíveis experiências de sucesso alcançadas em situações específicas são rapidamente disseminadas como receituário de sucesso.

Charles Chaplin no filme Tempos Modernos
Fonte: Wikimedia

É um trabalho ideológico, que se desdobra no exercício profissional, amplia a ideia de uma sociedade pautada pelo mercado e pelo individualismo, e fortalece a crença de que é o indivíduo por si mesmo o único responsável pelo seu sucesso ou seu fracasso, pois o mundo se apresenta igual para todos e as diferenças serão obtidas pelo esforço pessoal.

Reagir a esse modismo, não significa negar a importância da gestão, mas questionar o seu propósito e a quem serve, pois não basta entendê-la restrita a indicadores econômico-financeiros. Há que se considerar outros aspectos, como o alcance social e ambiental da racionalização e da produtividade.

Ademais, o triunfo da gestão sobre a política não permite o confronto de distintos projetos de sociedade, uma vez que as macro-orientações estão previamente definidas. É também o triunfo do curto prazo, impulsionado pelo efêmero e por um presente contínuo, em que o imediato suplanta uma visão de perspectiva. Em função dele se deve arriscar tudo o tempo todo, uma vez que o não agir ou não ser veloz é punido com o sentimento de fracasso ou de morte em vida, conforme destaca Richard Sennet. Aqui, a realização se dá por um consumo intenso e exacerbado, seguido por um descarte e um novo processo de consumo, numa permanente ansiedade que cria uma sociabilidade baseada na mercadoria.

No seu processo de expansão, o neoliberalismo tenta submeter diferentes culturas e universalizar um modo particular de sociedade baseada no “sonho americano” de sucesso individual. É um contexto em que o mercado subsume a sociedade e cria uma sociabilidade egoísta que opera no limite. E a gestão desempenha o papel de conduzir a maximização dos resultados individuais e organizacionais. Aí se cumpre o Fim da História anunciado por Francis Fukuyama no final do século XX. Só que não…


Daniel Roedel é pós-doutorando no ISEG da Universidade de Lisboa. Foi investigador visitante no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. É Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Administrador formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e integrante do núcleo do Rio de Janeiro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública brasileira.

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One thought on “Gestão é tudo (SQN)

  1. Francisco Soriano Julivaldo 8 Dezembro 2021 / 4:04 pm

    Texto Maravilhoso
    Atual , espontâneo e irreverente sem perder a seriedade.

    Gostar

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