Mulheres camponesas no Sul do Brasil: transições agroecológicas mudando vidas

Por: Siomara Marques

Os movimentos de mulheres rurais no Brasil tiveram origem nos anos 1980, período de “reabertura” à democracia, e momento pelo qual o país passava por intensa mobilização social e retorno dos movimentos civis, entre eles o feminista, o sindical e mais tarde o ecológico. Organizadas em movimentos específicos como no Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) ou nos movimentos mistos como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), as mulheres trabalhadoras rurais no Sul do Brasil, influenciadas pelo feminismo, mas também pelo movimento sindical, iniciam sua trajetória reivindicando reconhecimento profissional como trabalhadoras rurais e não mais como “do lar”, bem como o direito à previdência social (aposentadoria). A partir daí, através da sua mobilização, as mulheres rurais brasileiras foram obtendo outros direitos, como a titularidade conjunta da terra ou a licença de maternidade. Na atualidade, somam-se às lutas feministas as lutas de enfrentamento ao racismo e à violência contra a mulher. Na agricultura, elas estão incorporando a prática agroecológica de produção de alimentos e de preservação do meio ambiente.

Mulheres que participam desses movimentos comprovam que a consciência política se faz por meio de processos coletivos de conscientização, experienciados na luta cotidiana de sobrevivência da agricultura familiar e camponesa, bem como nos espaços de formação proporcionados pelos movimentos. O aprendizado coletivo foi sendo adquirido nas reuniões de formação política, congressos, manifestações públicas (marcha das mulheres) e na implementação de projetos denominados “sementes crioulas”, “quintais produtivos”, que se tornaram práticas sustentáveis para agricultura familiar. A partir dos saberes tradicionais herdados, somados à ligação afetiva com a vida no campo e recentemente ao contato com os princípios da agroecologia, as mulheres organizadas nos movimentos sociais assumiram a defesa por uma agricultura agroecológica, contrapondo-se à uma agricultura predatória da natureza e da vida humana. 

Para elucidarmos como as mulheres camponesas comprovam na prática as transformações ocorridas em suas vidas por meio da agroecologia, apresentamos alguns relatos de duas entrevistas realizadas com uma dirigente do MMC de Santa Catarina e outra, com uma assentada do MST no Paraná. Elas participam dos movimentos sociais desde os anos 1990. Estando na faixa etária acima dos 55 anos, vivenciaram mudanças políticas na vida das mulheres camponesas, na agricultura dos antepassados transformada em agronegócio, até conhecerem a agroecologia.

A dirigente do MMC é dona de uma pequena propriedade na região oeste de Santa Catarina, e conta que a transição da agricultura convencional para a agroecológica aconteceu após a sua viuvez. No seu caso, não seguiu o modelo agroindustrial imposto por grandes corporações (Sadia, Perdigão, Aurora), o chamado sistema integrado de criação de animais (frango e suíno) com a monocultura de grãos. Procuraram, nesta propriedade, manter uma agricultura de base familiar e tradicional cultivando milho, feijão, pomar, horta, galinha e porco, e preservaram a mata nativa. Ficando somente mãe e filha na propriedade, “tivemos que nos replanejar”. O trabalho precisava ser ressignificado, e a solução veio do conhecimento agroecológico adquirido nos cursos do MMC. Deixaram o sistema convencional de roça e passaram a desenvolver os quintais produtivos consorciando a produção de milho, feijão com hortaliças, frutíferas e animais (galinha, porco, vaca de leite, pato). Atualmente estendem a produção nos moldes dos sistemas agroflorestais (SAFs) cultivando “pancs” (plantas alimentícias não convencionais) e frutas nativas a partir do mato preservado. Outras atividades econômicas incluem a horta medicinal, o quiosque (venda direta ao consumidor), o artesanato, a venda de flores e trilha ecológica. São auto suficientes em água por terem construído cisterna e poço artesiano.

No relato da camponesa assentada, ela conta que a transição da agricultura convencional para a agroecológica veio por meio do MST e da Comissão da Pastoral da Terra (CPT – Igreja católica). Nos primeiros anos no lote do assentamento a entrevistada trabalhou com gado leiteiro e somente mais tarde iniciou o que chama de “projeto agroecológico”. Conta que “[…] das reuniões da CPT comecei a trazer semente, trouxe muda de mandioca, plantamos num pedacinho. […] daí iniciou a mudança. Mudamos por consciência, porque nós tínhamos que mudar, não tinha para nós pequenos continuar daquele jeito [endividado], sem produzir subsistência. Plantamos bastantes árvores no entorno de todo o lote, temos uma agrofloresta e ali plantamos de tudo: frutas silvestres, laranja, limão, banana, erva mate, tudo dentro do mato”. Atualmente cultivam pequenas roças de milho, feijão, arroz, batata doce, batatinha, amendoim, pipoca, criam animais (galinha, pato, ovelha, porco), e plantam flores.

O que as duas entrevistadas, mesmo vivendo em estados diferentes têm em comum? As duas, por meio de um processo de “transição” política aprendido coletivamente, mudaram sua consciência de mulher e camponesa tornando-se protagonistas de uma outra prática de produção de alimentos, a agroecológica. Indagadas sobre como definem agroecologia, elas responderam: “A agroecologia muda a vida das mulheres” (dirigente MMC). “Agroecologia é uma prática porque está de acordo com a natureza, não é um pacote pronto que você tem na mão. Não é um técnico que vem te dizer que você tem que plantar tanta semente por alqueire. Agroecologia você tem que entender, conhecer as épocas de plantio, a lua… Então é toda uma coisa de prática, não é teoria. Teoria hoje usa-se bastante no agronegócio, […], que eles tiram totalmente o saber do agricultor. O agricultor não sabe mais nada, né? Eles dizem que você tem que colocar tanto saco de adubo, tanto saco de ureia. A gente tem que plantar dentro da agroecologia, que são os orgânicos. A gente tem que plantar a planta e cuidar dela. Cuidar se ela está tudo bem, se ela precisa mais de água, mais de adubo, mais… Então você está em sintonia [com a natureza]” (Assentada MST).

Esta compreensão empírica de agroecologia redefine o conceito acadêmico como uma ciência que estuda os agroecossistemas de forma interdisciplinar. Práticas, modo de vida, gênero, diferentes saberes, consciência política de si e da natureza também são fatores a ser considerados na definição de agroeocologia.


Siomara Aparecida Marques é doutorada em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e é investigadora e professora na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFSS – Campus Laranjeiras do Sul). 
Atualmente, desenvolve uma investigação pós-doutoral no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), sob o título: “Mulheres camponesas e agricultura familiar: contribuições e desafios para o desenvolvimento da agroecologia no Sul do Brasil”.
siomarques@uffs.edu.br

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