Peixe não Puxa Carroça

Por Lúcia Campos

“Peixe não puxa carroça”. “Galinha gorda não precisa de tempero”. Todos nós conhecemos estas e outras expressões populares, que espelham as ideias pré-concebidas que existem sobre a comida.

Mas existem também crenças sobre quem consome os alimentos: estereotipicamente, a carne está associada à ideia de virilidade, enquanto que a fruta e legumes estão associados a uma ideia de feminilidade. Como exemplo de que este efeito é praticamente universal, um estudo conduzido no Japão mostrou que as pessoas associam nomes femininos a sobremesas, fruta e saladas, e, pelo contrário, associam nomes masculinos a pratos de carne. De acordo com o Inquérito Nacional de Saúde (INE/INSA, 2016), em Portugal, de facto, são as mulheres quem mais consome legumes e saladas (61% das mulheres referem consumir frequentemente estes alimentos/refeições, comparativamente com 49% dos homens que referem o mesmo comportamento).

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Proporção da população com 15 ou mais anos que consome legumes ou saladas diariamente por sexo, Portugal, 2014. Fonte: INE/INSA, 2016.

Da mesma forma, também existem pré-conceções em relação à quantidade de comida que as pessoas consomem – pessoas que comem menores quantidades de comida são avaliadas como mais tipicamente femininas (e menos masculinas), comparativamente com pessoas que comem maiores quantidades.

Todos estes estereótipos de género (ou seja, generalizações sobre como determinado grupo, neste caso, homens e mulheres, é ou se comporta) são socialmente construídos e influenciam o nosso comportamento, pois estão associados a normas sociais de género – isto é, a expectativas sociais de como os homens e mulheres se comportam/devem comportar. Ou seja, “homem que é homem” come muito, e maioritariamente carne.

No entanto, e como sabemos, estas ideias acarretam custos muito elevados para o ambiente: está já provado que a produção e consumo de carne, nos moldes atuais, estão relacionados com impactos ambientais profundos e insustentáveis. E de facto, parecem existir diferenças na forma como homens e mulheres percepcionam estas questões. A literatura mostra que as mulheres parecem ter maior predisposição para preocupações ambientais e empatia para com os animais. Relativamente à alimentação, as mulheres apresentam menores níveis de apego à carne, e mostram maior probabilidade de concordar que uma dieta vegetariana tem benefícios para o ambiente.

Contudo, é preciso ter em conta que estas diferenças se podem dever a normas de género a que aderimos, pelo que, não sendo estáticas, poderão variar e até depender do contexto em que nos inserimos. Por exemplo, e relativamente à forma como o consumo alimentar é influenciado pela adesão a normas de masculinidade hegemónica (isto é, o estereótipo de como um homem deve ser: heterossexual, agressivo, fisicamente invencível e capaz de dominar tanto outros homens como mulheres, embora se deva notar que poucos homens correspondem, por completo, a este estereótipo), homens que aderem a normas de masculinidade (especificamente, à norma de playboy, ou seja, a uma ideia de liberdade sexual e romântica) tendem a sub-reportar o seu consumo de vegetais. Por outro lado, a adesão à norma de violência (no sentido de resolver problemas com recurso à força) parece explicar a relação entre o sexo e o consumo de carne. Por outras palavras, as diferenças que se observam entre homens e mulheres no consumo de carne parecem dever-se, em parte, à adesão a normas de masculinidade específicas.

A “luz ao fundo do túnel” surge através do surgimento de novas formas de masculinidade que questionam e se opõem às normas de masculinidade hegemónica, e que estão relacionadas com menor apego à carne, atitudes mais favoráveis ao vegetarianismo e uma maior tendência para reduzir o seu consumo de carne.

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O consumo de carne está associado a normas de masculinidade. Fonte: Pixabay

Em suma, embora devamos ter em conta as diferenças entre homens e mulheres, quer em termos de comportamentos alimentares, quer de outros comportamentos que tenham impacto significativo sobre o ambiente e a sustentabilidade do planeta, devemos também tentar enquadrar e interpretar estas diferenças à luz do contexto e das normas sociais vigentes, de forma a conseguirmos intervir de forma eficaz nestes comportamentos. Ao promovermos novos tipos de masculinidades, que valorizem as emoções, a interdependência e o cuidado para com os outros, poderemos promover a adoção de comportamentos de saúde, incluindo a redução do consumo de carne, e assim reduzir o impacto ambiental da nossa alimentação.


Lúcia Campos é licenciada em Psicologia pelo ISCTE-IUL (2014), tendo também aí concluído o mestrado em Psicologia Social e Organizacional (2016). Especializou-se nas áreas de Psicologia da Saúde e Psicologia Social do Género, com a dissertação “Food as a way to convey masculinities: how conformity to hegemonic masculinity norms influences men’s and women’s food consumption”. Actualmente, é assistente de investigação no projecto “SUSTAINMEALS – Refeições Escolares Sustentáveis”.

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