Pensamento contraintuitivo em ciência: a propósito de um livro de um historiador-antropólogo que analisa a política a partir da geografia

Por João Ferrão

Olhando por um telescópio ou por um microscópio vemos realidades distintas (uma galáxia e uma célula, por exemplo) ou diferentes facetas de uma mesma realidade? O mesmo se poderá perguntar em relação aos vários instrumentos com um alcance de visão e um poder de resolução entre esses dois extremos, como os satélites de recolha de imagens, os binóculos, o olho humano, as lupas ou as objetivas de máquinas fotográficas. Talvez a resposta mais simples seja dizer que vemos realidades distintas se as consideramos de modo isolado, mas componentes de uma mesma totalidade se interpretadas de uma forma relacional e multiescalar.

Qual é a pergunta equivalente para os cientistas sociais? Não temos telescópios, mas produzimos metateorias. Não recorremos a microscópios, mas desenvolvemos trabalhos a uma escala micro: indivíduos, objetos, espaços de uma habitação, etc. E também podemos usar instrumentos intermédios, desde as teorias de médio alcance aos estudos de caso do mais diverso tipo.

´Vemos`, pois, coisas diferentes conforme a ´escala` adotada. É por isso que necessitamos de desenvolver investigação a várias ´escalas` (das metateorias às microanálises) e procurar identificar as relações que se estabelecem entre o que detetamos em cada uma delas. É também por essa razão que devemos estar conscientes das limitações inevitáveis de resultados obtidos quando recorremos exclusivamente a uma dessas ´escalas`. Por outro lado, conclusões a contracorrente ou contraintuitivas podem resultar, por exemplo, do facto de olharmos para uma determinada questão a partir de uma ´escala` a que os diferentes autores que desenvolvem o seu trabalho nesse domínio habitualmente não recorrem.

Estes comentários vêm a propósito das conclusões a que o historiador-antropólogo Emmanuel Todd chegou no âmbito do seu último livro, Les luttes de classes en France au XXIe siècle, que não só surpreenderam o próprio autor ao contradizerem, conforme salienta com humor, afirmações e ideias presentes em várias das suas obras anteriores, como contrastam com os resultados divulgados em publicações recentes sobre temas como a evolução das desigualdades ou a geografia do ressentimento. O seu último livro levou-o, pois, a “uma interpretação inesperada da evolução social da França entre 1992 e 2018”.

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Todd, Emmanuel (2020). Les luttes de classes en France au XXIe siècle. Paris: Seuil

O autor defende uma tese controversa (tendo sempre a França como objeto de estudo): a introdução da moeda única correspondeu a um falhanço económico (aceleração do processo de desindustrialização, aumento da subordinação a poderes externos, diminuição do nível de vida), mas a um sucesso político (a catástrofe monetária constituiu um choque externo redentor, ao tornar-se uma fonte de solidariedade, criatividade e reunificação nacional). Neste contexto, o autor sublinha o estranho contraste que verifica existir entre a passividade dos franceses em relação a uma decisão tão relevante como a adoção da moeda única, que classifica como um ´projeto de autodissolução nacional`, e o aumento das lutas de classes e da violência em França, sobretudo a partir da crise de 2017/8 despoletada por medidas tomadas pelo governo de Emmanuel Macron e cuja expressão maior correspondeu à irrupção do movimento dos Coletes Amarelos (2018/9).

Todd analisa, sequencialmente, a transformação da estrutura social francesa ocorrida entre 1990 e 2018 (níveis de educação, sistemas familiares, categorias socioprofissionais, valores), a transformação política verificada entre 1992 e 2016 (estrutura partidária, resultados eleitorais, erosão da democracia representativa) e, por fim, a crise de 2017/8 (macronismo, Coletes Amarelos). Grande parte das análises sobre a evolução social e política baseia-se em informação estatística desagregada geograficamente por departamento (96, no total), o que permite uma leitura bastante fina do território francês.

Os resultados obtidos e as relações de associação ou causalidade que o autor estabelece levam-no a concluir que a França está hoje mais homogénea (e não mais polarizada) e mais unida (e não mais fragmentada). Porquê? Porque ocorrem, por um lado, tendências que abarcam genericamente os diversos grupos sociais e, por outro, fenómenos de convergência entre as diferentes regiões.

Em relação às tendências de natureza transversal, verifica-se uma estabilização das desigualdades num contexto generalizado de diminuição do nível de educação médio, de ´despromoção económica`, de empobrecimento e de baixa do nível de fecundidade, e portanto de aumento do sentimento de perda e de falta de esperança, nas várias categorias socioeconómicas. A única exceção é a categoria que designa por aristocracia estatal-financeira (indivíduos que circulam entre a alta administração e a banca, trajetória, aliás, bem representada por Macron), que enriquece e reforça a sua capacidade de domínio no contexto da sociedade francesa, mas que revela uma crescente subordinação à escala internacional.

Ao mesmo tempo, as diferenciações regionais, embora não desapareçam, surgem hoje mais diluídas. É o que sucede no que diz respeito às tradições religiosas, às estruturas familiares, à oposição entre a França central, igualitária e laica e a França periférica, desigual e católica. Mesmo a oposição mais recente entre a ´França das tempestades` (desindustrialização, imigração: Norte, Leste, arco do Mediterrâneo) e a ´França abrigada` (sobretudo Oeste e, no seu interior, as metrópoles e as principais cidades) não se fez sentir de forma relevante em relação à intensidade do movimento (heterogéneo) dos Coletes Amarelos. Mantêm-se, no entanto, as diferenças regionais de estruturas de classes. Isso significa que as dualidades (religiosas, culturais, sociais) são hoje mais “verticais” (entre classes de uma mesma região, metrópole ou cidade) do que “horizontais (entre distintos territórios).

São estes resultados, aqui apresentados de forma muito sumária, que permitem que Emmanuel Todd sublinhe que o essencial da explicação da evolução social e política recente de França não é compatível com os discursos do triunfo do capitalismo neoliberal (dada a omnipresença do estado), do aumento das desigualdades (que se mantêm globalmente estáveis, como consequência do agravamento generalizado do nível de vida, à exceção da aristocracia estatal-financeira), da crescente fragmentação territorial (em virtude da diluição das diferenciações territoriais tradicionais) ou dos conflitos de base étnica. Também considera que os resultados a que chegou não são conciliáveis com leituras simplistas e dicotómicas, como as que opõem elitismo a populismos ou ganhadores da sociedade aberta de Macron a perdedores da sociedade fechada de Le Pen, nem com o discurso recorrente de crescente polarização política da sociedade francesa.

O que importa aqui sublinhar é que as conclusões a que Todd chegou, classificadas por este historiador-antropólogo como surpreendentes, apenas foram possíveis a partir de uma leitura geográfica do país (informação estatística desagregada por departamentos). As interpretações a contracorrente ou contraintuitivas resultam de um enviesamento analítico cientificamente inaceitável ou do recurso a um instrumento com maior poder de resolução? Apenas novas investigações o poderão esclarecer. Mas sim, com os telescópios, os satélites de recolha de imagens, os binóculos, os olhos humanos, as lupas, as objetivas de máquinas fotográficas ou os microscópios das ciências sociais poderemos produzir interpretações contraditórias sobre uma mesma realidade. Isso é um problema? Ou antes um desafio?


João Ferrão é geógrafo e investigador coordenador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

 

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