Livre-comércio e desenvolvimento sustentável: Obstáculos e contradições do acordo UE-Mercosul

Por Luís Balula

Após 20 anos de negociações, o acordo de livre-comércio entre a União Europeia e os países do bloco económico Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) foi aparentemente alcançado no encontro do G20 em Osaka, em 29 de junho passado. O texto do acordo, divulgado em 1 de julho com o sub-título “The agreement in principle” (“O acordo em princípio”), estabelece, em dezassete capítulos, as regras segundo as quais se irá processar, gradualmente, a liberalização das trocas comerciais entre os dois blocos ao longo dos próximos dez/quinze anos.

Sem pretender fazer uma análise completa do acordo, este artigo aborda apenas o capítulo 14, intitulado “Comércio e desenvolvimento sustentável”, que procura garantir que o aumento da atividade comercial não irá ocorrer à custa do ambiente ou das condições de trabalho.

Assim, em linha com os objetivos da Agenda 2030, os dois blocos comprometem-se a prosseguir as suas relações comerciais de forma a contribuir para o desenvolvimento sustentável, baseando-se nos compromissos multilaterais já existentes nas áreas do trabalho e do ambiente. São referidos, em particular, o Acordo de Paris sobre alterações climáticas e as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre trabalho forçado e trabalho infantil, não-discriminação, liberdade de associação e direito à negociação coletiva.

As duas partes comprometem-se ainda com o combate ao desmatamento e com a boa gestão da floresta Amazónica, por forma a garantir que o comércio entre os blocos apoie a agenda da sustentabilidade, incluindo a implementação de cadeias de valor baseadas em desmatamento zero. Trata-se de uma ambiciosa listagem de boas intenções que deixa antever, contudo, numerosas dificuldades e obstáculos no processo de implementação e, principalmente, expõe uma séria contradição.

Em primeiro lugar, as dificuldades começam porque o acordo – que tem ainda de ser ratificado por todos os países membros do bloco europeu e aprovado pela Comissão Europeia – fere os interesses de poderosos grupos económicos em ambos os continentes. Por um lado, os agricultores europeus receiam a competição dos produtos agrícolas e pecuários mais baratos da América do Sul, tal como demonstram as recorrentes manifestações de agricultores que concentram frotas de tratores diante da Comissão Europeia em Bruxelas, ou as críticas dos produtores de citrinos de Valência, ou ainda a pressão dos agricultores e ambientalistas franceses para que Macron não assine o tratado. Também na Irlanda e em Itália membros do governo pedem que o acordo seja rejeitado. Por outro lado, nos estados membros do Mercosul a indústria automóvel receia a competição dos carros europeus, tornados mais baratos pelo acordo.

Mas antevêem-se ainda obstáculos de outra ordem. Se, por um lado, temos os grupos ecologistas e uma pequena parte da esquerda que se opõe, tradicionalmente, ao livre-comércio, por outro temos uma direita cada vez mais inclinada para o protecionismo e que menospreza os valores ambientais. No Brasil, por exemplo, o atual presidente, que recentemente assumiu também a presidência (rotativa) do Mercosul, não só declarou estar pronto a abandonar o Acordo de Paris, como nos primeiros seis meses da sua presidência, desde janeiro passado, o desmatamento da Amazónia brasileira aumentou 39% em relação ao mesmo período do ano anterior. E os dados do mês de julho indicam um aumento de 68% em relação a julho de 2018. Ao mesmo tempo, as multas contra o desmatamento caíram 23%.

amaz
Na Amazónia o desmatamento legal e ilegal acelera, acompanhado de ameaças e intimidações às ONGs ambientais e tentativas de expropriação forçada de terras às populações indígenas.
Fonte: Google maps, 3/9/2019.

Além disso, a atual administração brasileira, ao criticar e negar a veracidade dos dados oficiais recentemente divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) – a entidade brasileira que monitoriza o desmatamento da Amazónia através de informação proveniente de satélites de diversos países – demonstra o analfabetismo científico e o desprezo pela verdade a que os recentes líderes de ultra-direita nos têm vindo a habituar. Conclui-se assim, que apesar dos tweets do presidente do Brasil comemorando o acordo enquanto “um dos mais importantes de todos os tempos”, os objetivos de desenvolvimento sustentável assumidos no acordo, muito em particular no que toca à proteção do bioma Amazónia, vão ser muito difíceis, senão impossíveis, de concretizar.

Entretanto, durante o passado mês de agosto, os fogos descontrolados da Amazónia – e a falta de resposta das autoridades brasileiras – incendiaram a opinião pública mundial, exacerbando as tensões entre líderes europeus e a administração brasileira e provocando uma guerra de palavras entre Macron – que anunciou a sua oposição à assinatura do acordo e sugeriu a ideia de um estatuto internacional para a região amazónica – e Bolsonaro, cujas declarações de desprezo pelas questões ambientais têm estimulado abertamente o desmatamento ilegal e a invasão de reservas protegidas. Um acordo difícil de implementar depara-se assim com mais um obstáculo político de peso.

Mas a maior contradição do acordo UE-Mercosul é outra. O livre-comércio pode até contribuir para a prosperidade das nações. No entanto, se levamos a sério a crise climática, devemos interrogar-nos se o aumento da atividade comercial gerado pelo acordo, que reduz o preço – e portanto aumenta o consumo – de bens como automóveis (da UE), carne animal, soja, etanol e açucar (do Mercosul) é realmente desejável no longo prazo. Para sectores tão críticos para as alterações climáticas como estes, aparentemente seria desejável manter, ou mesmo aumentar, os preços. Em vez disso, procura-se com este acordo que se tornem mais baratos…

O exemplo do acordo de livre-comércio entre a UE e o Mercosul serve-nos assim para compreender que não basta prosseguir políticas climáticas per se, isoladas de outras áreas políticas – e vice-versa. A compatibilização do livre-comércio com o desenvolvimento sustentável que o capítulo 14 do acordo procura assegurar está, como vimos, tudo menos garantida. Além disso, o acordo é abrangente e complexo e portanto requer uma cuidadosa avaliação – e, se necessário, revisão – que os governos dos países europeus, incluindo Portugal, devem agora iniciar, antes de decidir se o ratificam ou não. Em nome do futuro, espera-se que as considerações ambientais prevaleçam.


Luis Balula (Ph.D. Planning & Public Policy) é consultor em projetos e investigador na Universidade de Lisboa.

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