Por Carla Gomes
A aquisição em larga escala de terras em países em desenvolvimento teve um aumento notório na última década, impulsionada pelas crises climáticas e do preço dos alimentos, bem como pela liberalização dos mercados. A tese “A justice approach to the African ‘land rush’: Investigating the social dynamics around agricultural investments in Mozambique”, que defendi na Universidade de East Anglia em 2017, em co-tutela com a Universidade de Lisboa, aborda esta problemática a partir de dois estudos de caso realizados em Moçambique, um dos países que mais têm atraído investidores estrangeiros.
O fenómeno, que é comummente apelidado de land rush ou de land grab, tem suscitado nos últimos anos a atenção dos cientistas sociais, bem como a consternação de organizações não-governamentais (ONG) e movimentos de camponeses. Se, por um lado, empresas e governos nacionais têm defendido o aumento do investimento privado como panaceia para aumentar o emprego, desenvolver a economia dos seus países e melhorar a segurança alimentar, as ONG e os movimentos transnacionais como a Via Campesina receiam os impactos negativos sobre os modos de vida das comunidades locais, bem como a soberania e segurança alimentares.
Os investidores provêm das mais diversas origens, consoante as suas prioridades, bem como os sectores de investimento, que incluem a extracção de minérios, a exploração madeireira e a produção agrícola. A agricultura é no entanto, de longe, o sector que tem atraído maior investimento, quer em área quer em número de projectos, de acordo com o Land Matrix (figura 1). A crise climática, ao aumentar a procura de biocombustíveis, está entre os factores que contribuíram para este surto de investimento, além da crise dos preços alimentares (2007/2008), do aumento da população e da liberalização do mercado da terra em muitos países, mesmo que relativa. Em rigor, em países como Moçambique apenas é permitida a concessão do uso da terra, pois esta é propriedade inalienável do Estado. No entanto, a duração das concessões pode estender-se até 50 anos, renováveis por mais 50, de acordo com a Lei da Terra, de 1997.

Governos, empresas e instituições internacionais têm apresentado a ‘Nova Revolução Verde’ como uma oportunidade, ainda mais justificada pela ideia prevalecente de que a terra arável é subaproveitada nestas regiões do mundo. Num processo win-win de modernização da agricultura, os países receptores deveriam, assim, ceder terras e recursos naturais, além da sua mão-de-obra, contribuindo os países investidores com tecnologia, capital e, por conseguinte, garantindo o aumento da produtividade agrícola e a criação de emprego. Pressupunha-se que, as mais das vezes, as empresas se instalariam em áreas isoladas e menos exploradas, que se poderiam desenvolver com recurso a tecnologias e processos de produção modernos.
No entanto, o que se tem vindo a verificar, sendo confirmado pela minha investigação de terreno e por estudos recentes realizados em Moçambique – é que as empresas procuram as áreas mais férteis, acessíveis e ricas em recursos naturais e localizadas junto aos principais rios, estradas, vias férreas e mercados. Portanto, tendencialmente as mesmas que são mais procuradas pela população local. Sobretudo depois da crise financeira global, menor é o apetite por áreas cuja exploração represente custos muito elevados. Acresce que a densidade populacional tem aumentado em muitas destas áreas – devido aos fluxos migratórios (em particular durante a guerra civil) e ao aumento da população.
Um novo ângulo de abordagem sobre a ‘Revolução Verde’
A tese consistiu num estudo empírico de justiça ambiental, focado nas dinâmicas sociais em torno desta ‘corrida’ às terras aráveis – a chamada nova ‘Revolução Verde’ para África – em Moçambique. Tratou-se de uma análise comparativa de duas concessões de terras para fins agrícolas, nas províncias de Nampula e Cabo Delgado, no Norte do país. Ambas as áreas em estudo estão abrangidas por programas nacionais de desenvolvimento rural, respetivamente o Prosavana (Corredor de Nacala) e o Projeto de Desenvolvimento do Vale do Rio Lúrio.

Em termos de enquadramento teórico e conceptual, procurou-se desenvolver um novo ângulo de abordagem sobre esta problemática, uma vez que a análise do tema tem sido dominada pela perspetiva da economia política, que se concentra essencialmente na sua dimensão transnacional. Neste caso, procurou-se obter uma visão mais ‘fina’ desta realidade a nível local e ao longo do tempo, alguns anos após o início da implementação dos projectos. Adoptou-se para tal o modelo tripartido da justiça ambiental, nas suas dimensões distributiva, processual (participativa) e de reconhecimento (figura 3), considerando ainda a forma como estas se projectam em diversas escalas espaciais e temporais.

Em termos de metodologia, seguiu-se uma abordagem qualitativa, incluindo discussões em grupos focais, observação direta e análise documental. Foram ainda realizadas 90 entrevistas semiestruturadas a representantes do governo, de empresas investidoras, consultores e ONG, bem como autoridades locais, líderes tradicionais e população em geral, com ênfase nos camponeses mais directamente afectados pelos projectos.
Conta-se, pois, a história de cada uma destas propriedades agrícolas, do ponto de vista da justiça distributiva, processual e de reconhecimento. Será necessário interrogar como é que os impactos do projecto, incluindo os seus benefícios e possíveis efeitos adversos, se propagam no espaço – redesenhando a paisagem natural e social – e como evoluem ao longo do tempo – através das fases de consulta comunitária, aprovação e implementação (licença de exploração provisória, seguida de licença definitiva de longo prazo). A análise dos diversos ciclos de implementação dos projectos, bem como a observação das movimentações que estes provocam directa ou indirectamente, são fundamentais para ter uma noção mais realista dos seus efeitos no bem-estar e modos de vida das populações locais.
“É terra do dono”: concessões como ‘contratos’ de reconhecimento
Como prevê a Lei da Terra, cada um destes projectos foi sujeito a consultas comunitárias. No entanto, estes processos participativos estão sujeitos a limitações, quer por via das relações de confiança e influência que se estabelecem no terreno, quer pelos constrangimentos que persistem à liberdade de expressão e à afirmação da identidade dos camponeses locais. A percepção de atraso social e tecnológico enraizada entre os próprios camponeses acaba por limitar a sua influência. Estes, apesar de estarem representados nas consultas, aceitam por norma os projectos por uma multiplicidade de razões. Por um lado, por vezes consideram que estes são um facto consumado, dado que as empresas investidoras são apoiadas pelo Governo e, portanto, não devem ser contestadas. Por outro, pela expectativa de receber compensações financeiras, investimentos na comunidade e oportunidades futuras de emprego nas plantações. Ou seja, do ponto de vista formal, as populações dão o seu consentimento, mas este consentimento é, frequentemente, superficial e pouco inclusivo.
A tese analisa os projetos agrícolas como ‘contratos’ de reconhecimento recíproco, cuja manutenção depende da assunção, por parte das populações locais, das áreas de concessão como ‘território reservado’, sujeito a regras de uso e a limitações – “terra do dono”, nas próprias palavras dos camponeses. A existência prévia de projetos empresariais de agricultura favorece a aceitação de novas concessões, mas está, no entanto, condicionada pelo respeito de limites geográficos e temporais. Os marcos das plantações anteriores, bem como o respeito por funções laborais outrora exercidas, são fundamentais para garantir o reconhecimento por parte das populações. Outros recursos materiais, como a maquinaria, no caso das empresas, e a plantação de árvores, no caso das populações locais, revelam-se elementos cruciais na afirmação de um sentido de pertença e de partilha de território.
Vulnerabilidade climática e capabilities para a adaptação
Quando uma concessão de terras implica a cedência de terrenos de cultivo pela população local, ou mesmo o reassentamento de habitações, a falta de reconhecimento das práticas locais de gestão dos recursos naturais pode agravar a vulnerabilidade de certos grupos na comunidade, afetando, por exemplo, as suas estratégias de resiliência climática. Episódios climáticos súbitos, como as cheias no rio Lúrio em 2014/2015 (Nampula e Cabo Delgado), vão por sua vez influenciar as percepções de justiça das comunidades quanto aos processos de reassentamento.


Este último aspecto poderia ser analisado com recurso a uma outra dimensão, a das capacidades humanas – capabilities -, conceito por vezes apresentado como uma possível quarta dimensão da justiça ambiental, outras como uma dimensão transversal às outras três. O controlo sobre o nosso próprio ambiente e a mobilidade pessoal são apenas dois exemplos de capacidades cruciais que têm sido recentemente estudadas no contexto da adaptação climática. As capabilities poderão revelar-se um interessante ângulo de abordagem no contexto da adaptação, ainda pouco explorado como modelo de análise empírica e que importa desenvolver em futuros projectos e publicações.
O texto integral da tese aqui resumida está disponível no repositório da University of East Anglia.
Carla Gomes é doutorada pelas Universidades de Lisboa e de East Anglia (co-tutela), no âmbito do Programa Doutoral em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável. É bolseira de investigação do Instituto de Ciências Sociais, onde tem colaborado em projectos de adaptação, entre os quais o Plano Intermunicipal de Adaptação às Alterações Climáticas do Algarve (PIAAC-AMAL) e o acompanhamento da Estratégia Municipal de Adaptação (EMAAC) de Loulé. carla.gomes@ics.ulisboa.pt
Republicou isto em Cultura & Cidadania.
GostarGostar