Por Paulo Granjo
1. Inclusão: uma falsa ideia clara
“Inclusão” tornou-se uma palavra-fetiche, omnipresente quer no discurso político vago e bem-intencionado, quer nos cadernos de encargos para o financiamento de pesquisas sociais.
Como qualquer palavra que utilizemos, pretendendo que seja mais do que um som, está associada a noções e ideias, por vezes muito variáveis. Contudo, na sua utilização predominante nos contextos que referi, constitui por um lado uma “falsa ideia clara” (para utilizar uma expressão cara a Mário Murteira) e, por outro, um traiçoeiro simplismo.
Quando ouvimos “inclusão”, de imediato pensamos “exclusão”. Com isso, tendemos a aperceber ambas as palavras e ideias como um par opositivo, delimitado de forma evidente e com uma carga positiva ou negativa, consoante o prefixo; mas não é, de todo, esse o caso.
Ao estabelecermos essa oposição (fig. 1), não estamos, antes de mais, a constatar uma evidência empírica. Estamos a enfatizar de forma arbitrária – mas de acordo com critérios valorativos, normalmente dominantes – um conjunto, entre muitos possíveis, de critérios ou características que permitam afirmar a semelhança ou a partilha de posse entre quem é “incluído”, ao mesmo tempo que enfatizamos um outro conjunto de características ou critérios de diferenciação ou despossessão, que permitam contrastar esse grupo com o dos “excluídos”. É só em função dessa arbitrariedade negociada que a fronteira entre “dentro” e “fora” (e entre quem está de um e de outro lado) é afirmada e assume um simulacro de evidência.

Isto quer também dizer, face ao hábito de encarar a “inclusão” como positiva e o seu oposto como negativo, que tão pouco o facto de selecionarmos um espaço de inclusão como sendo desejável ou relevante constitui uma evidência. Valorizarmos aquele, em detrimento de muitos outros possíveis, resulta afinal de uma escolha ética e política que deve ela própria ser objeto de análise – uma análise que se requer tão mais exigente e auto-reflexiva, quanto menos consciencializada seja essa escolha.
Este requisito de vigilância epistemológica é reforçado por duas outras características da relação entre inclusão e exclusão, na verdade mais complexa do que a mera oposição entre termos:
Por um lado, qualquer processo de inclusão implica e pressupõe uma prévia situação de exclusão, mas não chega constatá-lo; falta saber precisamente de quê, em que termos e qual o significado dessa exclusão para aqueles que são apontados como excluídos.
Por outro lado (fig. 2), qualquer processo de inclusão é simultaneamente um processo de exclusão, pelo menos em termos conjunturais. Como as pessoas ou grupos não são folhas em branco, vivendo numa abstrata inexistência social, a inclusão num grupo, status, identidade, sistema de práticas, de valores ou de formas de sentir implica a sua exclusão de formas de inclusão anteriores em que se encontrava inserido, fossem elas opostas ou apenas diferentes.

Simetricamente, mas pela mesma razão, um processo de exclusão não pode projetar para o vazio. Assim (fig. 3), uma exclusão implica novas inclusões, em grupos ou sistemas de práticas, de representações e/ou de identidades para os quais os apontados como “excluídos” na perspetiva dominante são empurrados por efeito de exclusão que sofreram, para os quais são puxados pelos seus novos pares, ou nos quais se procuram integrar e ser aceites.

Sintetizando, mais do que faces opostas de uma moeda, inclusão e exclusão são processuais e podem ser uma mesma coisa, olhada de perspetivas diferentes. O que, no mínimo, exige que tenhamos consciência da perspetiva que usamos e das razões por que o fazemos e que, desejavelmente, deverá requerer a mobilização e compreensão das várias perspetivas envolvidas.
2. Inclusão e liminaridade
Posto isto, chegou a altura de salientar que temos vindo a equacionar estes aspetos de acordo com uma simplificação, também ela habitual e dominante, mas raramente verificável: o pressuposto de que, perante cada critério que utilizemos, existem incluídos e excluídos, separados por uma única e nítida fronteira.
Pelo contrário, conforme seria de esperar num fenómeno com carácter processual, aquilo com que quase sempre nos deparamos nos mais variados casos empíricos é com a existência de uma ampla “terra de ninguém”, uma área de ambiguidade que, aplicada à lógica de inclusão e exclusão, corresponde ao espaço e situação daqueles que já não são “outros” mas ainda não são “nós”, que deixaram de ser excluídos tout court, mas tão pouco foram plenamente incluídos. Utilizando uma linguagem antropológica, quando olhamos os processos de inclusão e de exclusão, somos sistematicamente confrontados com situações e estados de liminaridade.
Mas, de novo, liminaridades há muitas. Tal como são muitas e bem diferentes as suas potenciais consequências no desenlace de um processo de inclusão e/ou exclusão.
Na sua forma mais clássica, aliás coincidente com a cunhagem original do conceito, a liminaridade corresponde a parte de um percurso – transitória, delimitada e colocada fora do tempo normal – que conduz à integração e inclusão, num grupo de práticas, de valores, de atitudes ou de estatuto. Poderíamos chamar-lhe uma liminaridade integradora (fig. 4), correspondente a estatutos como o de aprendiz, ou a fenómenos como os ritos de passagem estudados por Arnold van Gennep.

No entanto, a liminaridade pode também ser, em vez de um percurso transitório que conduza à plena inclusão, um estado intermédio que se eterniza e que, de facto, reproduz e fixa estruturalmente um estatuto ambíguo, do qual só em condições excecionais uma pequena parte das pessoas envolvidas se poderão libertar (fig. 5). É aquilo a que poderíamos chamar liminarização estrutural, da qual poderíamos apontar como exemplos estatutos como os dos goeses, dos cabo-verdianos letrados e dos assimilados, no contexto colonial português.

Por fim, a liminaridade pode não conduzir à inclusão mas, após um período mais ou menos longo que a torne confundível com a forma anterior, ter como desenlace a exclusão (fig. 6). É, por exemplo, aquilo que se torna a prazo expectável, em contextos de precariedade laboral predominante.

Veremos, na segunda parte deste post, em que medida estas reflexões e instrumentos serão úteis para compreender um fenómeno bem atual: a precariedade científica e as movimentações em torno dela.
Paulo Granjo é investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. paulo.granjo@ics.ulisboa.pt
Republicou isto em Museu AfroDigital – Estação Portugal.
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