Navegar a tensão entre ciência e movimentos sociais: notas a partir da soberania alimentar

Por Rita Calvário

A cada dois anos realiza-se o Colóquio sobre Estudos Agrários Críticos. Este encontro junta investigadore/as que trabalham, numa perspetiva crítica e socialmente comprometida, temas ligados à agricultura, mundo rural e alimentação com ativistas e movimentos sociais. O objetivo é proporcionar um espaço de debate que promova a reflexão crítica e a coprodução de conhecimento e contribua para avançar as lutas por um sistema agroalimentar global mais equitativo, democrático e ecológico. Este é também um espaço onde muitas das tensões que ocorrem na relação entre academia e movimentos sociais se tornam visíveis, mesmo que nem sempre de forma explícita.

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Foto de sessão plenária do Colóquio. Fonte: Elikadura21

Este ano foi o País Basco a acolher a organização do Colóquio n.º 7 (24 a 26 de Abril), aproveitando o facto de ser aqui que se vai realizar a VII Conferência Internacional da Via Campesina, de 15 a 24 de Julho de 2017.

A Via Campesina é um movimento internacional que representa cerca de 200 milhões de camponese/as e pequeno/as produtore/as familiares, trabalhadore/as agrícolas, povos sem terra, indígenas e migrantes. Nascido em 1993 como resposta à vaga neoliberal que assolou o Sul global na sequência dos programas de ajustamento estrutural e dos acordos de comércio livre, este movimento lançou, em 1996, a ideia de soberania alimentar. Inicialmente centrada no direito de cada país em definir o seu sistema agroalimentar, desde 2007 a soberania alimentar envolve também a luta pela democratização, desmercantilização, relocalização e ecologização do sistema agroalimentar global, numa perspetiva de igualitarismo radical. Esta ideia, ou projeto político, inspira atualmente a ação coletiva de dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo, mas não é isenta de profundos debates, por exemplo, sobre o papel do Estado.

O Colóquio não é organizado pela Via Campesina, mas tende a juntar académico/as que simpatizam ou militam na organização, ou simplesmente partilham a ideia e o projeto da soberania alimentar. Isto não implica, no entanto, que não existam posicionamentos críticos.

Um momento de tensão ocorreu na sessão de encerramento. Entre o/as oradore/as convidado/as encontrava-se Henry Bernstein, um académico conhecido pelas suas críticas à Via Campesina (entendida como um “saco de gatos” composto por classes com interesses contraditórios), bem como à soberania alimentar (perguntando, por exemplo, se a agroecologia pode alimentar o mundo). Na mesma mesa encontrava-se também um ativista e membro de uma organização agrária do Sul global envolvido nas lutas pela soberania alimentar. O interessante foi o debate que se seguiu.

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La Via Campesina, movimento internacional de camponeses e camponesas. Fonte: viacampesina.org

O académico valeu-se de Lenine, Marx e outros autores para defender que não há campesinato, catalogando de populismo agrário a Via Campesina e o projeto de soberania alimentar. Quando confrontado com argumentos de que este é um movimento real, que existe e é incontornável, que entende o campesinato não como uma classe em si mas como uma reivindicação política que responde a uma “vontade e necessidade de unificação” daqueles e daquelas que sofrem “a violência da mercantilização da terra, trabalho, recursos genéticos e conhecimentos”, o orador manteve a sua posição sem qualquer tentativa de envolvimento com essa “realidade”, terminando a sua intervenção a dizer: “sou um intelectual”.

Este afastamento do “real” para estudar “de cima” os fenómenos sociais não é incomum na academia, mesmo para quem faz ciência crítica e é comprometido com as classes populares. Em parte, tal é fruto da própria separação entre ciência e política, e entre intelectuais “tradicionais” e “orgânicos”, mas reflete também um posicionamento epistemológico, o qual resulta de, mas também produz, abordagens teóricas de leitura do mundo. A questão não é só a falta de reconhecimento de que o/as “de baixo” produzem conhecimento, mas a de entender que é possível compreender o mundo sem atender à prática quotidiana, social e política “realmente” existente em contextos determinados. As relações sociais não são algo abstrato, exigem sensibilidade ao quotidiano e às circunstâncias que influenciam as resistências e estratégias ativistas.

Com isto não quero dizer que apenas a imersão no real produz conhecimento ou que a abstração teórica distanciada da prática não é necessária. Antes pelo contrário. Sem essa abstração dificilmente se pode ser útil a uma prática com ambições emancipatórias. Mas sem capacidade de apre(e)nder a partir da prática e das suas contradições, possibilidades e limitações, dificilmente se pode produzir um conhecimento útil. O que restaria seria  enunciar “o que fazer” a partir de uma leitura fria, distante e “intelectual”, ou então definir a priori o que é ou não político e simplesmente catalogar o que existe na esperança de encontrar o político verdadeiro.

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Marcha no Dia Internacional das Lutas Camponesas, 17 de Abril 2013. Fonte: nyelenieurope.net

Por sua vez, o ativista manifestou descontentamento com uma prática de investigação que considera ser muitas vezes distante dos interesses dos movimentos sociais. Mencionou que são frequentemente abordados por investigadore/as que seguem as suas agendas e pouco retorno dão aos movimentos, especialmente porque os tempos de investigação são longos comparados com as necessidades de resposta imediata do ativismo. Na sua perspetiva, a investigação deveria responder mais a essas necessidades e às agendas dos movimentos se realmente está comprometida com as lutas populares.

Da plateia, um outro ativista referiu a importância de aproveitar o espaço do colóquio para debater como pode a academia fazer avançar o movimento pela soberania alimentar, deixando-se de debates abstratos, por exemplo, sobre o que é ou se existe o campesinato. Uma académica concordou, afirmando que o seu contributo para o movimento faz-se através da afirmação da soberania alimentar e da agroecologia dentro das universidades. Outra investigadora realçou um paradoxo, já que ela tinha deixado de ser uma bióloga “pura” para introduzir na sua investigação uma componente mais social e crítica, mas o que o/as agricultore/as agroecológico/as lhe pedem é investigação aplicada em agroecologia.

Estes posicionamentos levantam questões relevantes. Por um lado, há uma tendência para entender a investigação como um braço do movimento social dentro das universidades com o papel de influenciar os debates teóricos, muitos dos quais produzem pensamento hegemónico e influenciam as políticas. É certo, desconstruir a ciência “normal” e normalizar as alternativas, como por exemplo a agroecologia face aos modelos dominantes da agricultura industrial-químico ou eco-modernista, é parte de uma luta política e requer académico/as comprometido/as. Não há ciência neutra nem apolítica, mas ela pode ser pós-política. Também por isso, questões de posicionalidade e reflexividade são importantes.

Mas há riscos em entender a investigação como uma mera extensão do movimento ou um simples reflexo dos seus debates e agendas internas. Um desses riscos é o dos movimentos abdicarem de aceder a leituras sobre o mundo e a sua ação que os ajudem a ir além do particularismo militante e a enquadrar a sua atividade num quadro mais global, potenciando a capacidade de reflexão crítica e apoiando a definição de estratégias. Aqui a perspetiva crítica é necessária. Se a investigação se limita a fazer a celebração das resistências e das lutas, pouco mais resta do que a autossatisfação.

Por outro lado, há muitas formas da ciência ser útil aos movimentos, por vezes de forma inesperada. Há estudos realizados sem qualquer ligação aos movimentos que a dado momento podem ser cruciais para avançar uma reivindicação. Há outros que aparentemente não trazem nada de novo aos próprios movimentos, mas podem ajudar a visibilizar as suas lutas, a estabelecer ligações com outros movimentos, etc.

A investigação e os movimentos têm os seus próprios espaços e tempos e manter a autonomia entre ambos é crucial. Nem os movimentos devem ser meros “objetos” de estudo de onde se extrai informação para cumprir exigências de publicação, nem a investigação pode apenas responder às agendas, interesses ou anseios dos movimentos. Há muitas formas de estabelecer colaborações produtivas e construtivas, bem como vários métodos que tentam descolonizar a investigação e apostar na ação-participante ou militante, sem esquecer os desafios pessoais e profissionais de conduzir pesquisa em tempos neoliberais.

As ansiedades de parte a parte, entre academia e movimentos sociais, são de certo modo inevitáveis e não há receita para as resolver. Estas tensões são um terreno de permanente navegação e negociação, bem como de problematização sobre a utilidade da ciência.


Rita Calvário é membro da equipa do Observa-Observatório de Ambiente, Território e Sociedade

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